Resenha

Uma valsa para Karl Valentin

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Uma valsa para Karl Valentin Foto: Divulgação

Em abril deste ano, ministrei no Goethe-Institut a oficina Brecht Pulsa Poesia, que resultou em uma performance teatral com 20 artistas inspirados pelos poemas do alemão Bertolt Brecht. Ao aprofundar os estudos sobre a obra brechtiana, cheguei até uma de suas principais influências, o cômico Karl Valentin. As descobertas sobre a obra de Valentin foram tão envolventes que decidi compartilhá-las com a minha turma de montagem teatral do projeto Cena Aberta. O resultado dessa aventura “valentiniana” será apresentado nos próximos dias 23 e 24 de agosto no Auditório do Goethe-Institut, com o espetáculo teatral VALSA VALENTIN. Então, trago aqui neste texto o convite para a peça e também um pouco de história. Afinal, quem foi Karl Valentin?

Valentin Ludwig Fey nasceu em 4 de junho de 1882, no subúrbio de Munique. O menino magro e travesso era popularmente conhecido como “O terror de Au”, um bairro popular marcado pela violência e por constantes festejos, o que certamente influenciou a formação de um dos nossos maiores ícones da comédia.

De família protestante e filho de um tapeceiro, Valentin era o mais jovem dentre quatro irmãos, sendo o único que sobreviveu a doenças que, com frequência, vitimavam as crianças da época. Talvez essa tragédia familiar justifique a severa hipocondria desenvolvida por Valentin durante toda sua vida.

Ainda jovem, aprendeu o ofício da marcenaria, o que posteriormente colaborou na construção dos inventivos cenários que acompanharam a sua trajetória de ator. No ano de 1902, Valentin ingressou no Münchener Varietéschule, uma escola de teatro de variedades dirigida por Hermann Strebel. O aspirante a artista tinha o objetivo de tornar-se Volkssänger (cantor popular) e Salonhumoriste (humorista sofisticado de salões), carreiras artísticas tradicionais e bem remuneradas na época, pois valorizavam a cultura alemã. 

Em 1905, diante de compromissos familiares, após a morte do pai e o nascimento da filha, Valentin afasta-se do palco para ganhar as ruas. Com o pseudônimo de Charles Fey, o engenhoso artista criou uma “orquestra de um homem só”, na qual tocava vinte instrumentos de forma simultânea. A ousada empreitada terminou com uma fracassada turnê pela Alemanha, o que fez Valentin destruir o seu pitoresco invento.

 De volta a Munique, escreveu textos cômicos que apresentava acompanhado de uma cítara. Aos poucos, Valentin encontrou um estilo pessoal de escrita marcado por um humor diferenciado. Os figurinos que usava destacavam as suas peculiaridades físicas, tornando o corpo um ponto central da sua comicidade. Calças justas, casacos curtos e botas enormes tornavam o seu tipo físico alto e esguio ainda mais excêntrico. O nariz postiço desproporcional, acrescentava a sua figura um ar de distinção e petulância.

Ao trabalhar nos cabarés e cervejarias tradicionais de Munique, o modo de atuar de Valentin chamou a atenção pelo uso original da língua alemã. Ele brincava com as palavras, usando a repetição, a ironia, a metáfora, a ambiguidade, a cacofonia e todos os jogos de palavras possíveis para criar neologismos e comicidade.

Em 1911, Valentin conheceu aquela que seria a sua grande companheira de palco por quase três décadas: a experiente e carismática cantora, dançarina e atriz Liesl Karlstadt (Elisabeth Wellano). 

O contraste físico e a capacidade de improvisação em cena tornava a dupla de comediantes imbatível. Muitos afirmam que Liesl Karlstadt seria a autora de muitas cenas apresentadas por Valentin, o que é provável, pois juntos apresentaram mais de 400 esquetes. 

Em um período no qual o povo alemão necessitava da arte e do entretenimento para expurgar as dificuldades de um cotidiano marcado pela guerra, Valentin obteve o reconhecimento das mais diversas classes sociais. Reverenciado por artistas, intelectuais, burgueses e trabalhadores, sua arte era, ao mesmo tempo, popular e refinada, sendo apresentada nos mais diferentes locais, com ilustres admiradores: Samuel Beckett, Paul Morgan, Heinrich Mann, dentre outros.

Sempre atento e em busca de novos desafios artísticos, Valentin vislumbrou no cinema a possibilidade de perpetuar sua obra para a posteridade. Trabalhou como ator, produtor, escritor, diretor e cenógrafo em mais de quarenta filmes marcados por um humor ingênuo que retratava a miséria da pequena burguesia.

O casamento de Karl Valentin (1913), foi o seu primeiro filme, realizado antes mesmo de Chaplin iniciar sua trajetória cinematográfica, em 1914. 

Hollywood interessou-se pela produção de Valentin, então comparado a Charles Chaplin e Buster Keaton, mas o comediante alemão não aceitou nenhum tipo de adaptação da sua obra, o que impossibilitou uma maior repercussão do seu trabalho. Um destaque na filmografia de Valentin é Mistérios de um Salão de Cabeleireiro (1923), com direção de Bertolt Brecht,  filme classificado entre o dadaismo, o expressionismo e o surrealismo, embora sua  rotulação seja difícil por agregar elementos dos três movimentos.

Brecht em inúmeros escritos destaca a enorme influência de Valentin na concepção do que veio a ser o seu teatro épico, pois o humor transgressor de Valentin desafiava os padrões artísticos da época ao distanciar-se da emoção e do sentimentalismo. O foco na comicidade física dos atores trazia à cena o caos da vida burguesa através do lúdico, do grostesco e do riso. A classe média alemã que ria de Valentin, ria do seu próprio fracasso e moralismo conservador, enquanto o povo tinha ali uma espécie de revanche aos patrões. 

Valentin ao provocar o riso, oferecia à plateia uma oportunidade de olhar o mundo a partir de uma outra perspectiva e lógica. O público era incitado a participar das peças através da quebra da quarta parede, assim como os acontecimentos do momento passavam a fazer parte das cenas, que eram inesperadamente interrompidas por canções folclóricas descontextualizadas. Personagens inusitados surpreendiam os espectadores com pernas de pau ou elementos postiços (barbas, barrigas e narizes gigantes). Valentin era mestre ao misturar ilusão e realidade. Em certa ocasião, por exemplo, colocou uma atriz na plateia, que, aos gritos, pedia o seu dinheiro de volta e acusava os atores de serem péssimos intérpretes. 

Brecht concretizou de forma aprofundada no seu teatro épico os elementos usados por Valentin para alcançar o desejado efeito de estranhamento (Verfreindung), que primeiro apresenta ao público algo familiar, para logo depois desconstruir uma suposta  “normalidade” com algo inesperado que instigue o pensamento crítico. Em especial, a técnica de interpretação de Valentin inspirou Brecht, pela relação distanciada com a personagem e o rompimento com a ilusão.

Apesar de Karl Valentin nunca ter sido filiado a partidos políticos, sua obra é carregada de posicionamentos, alguns mais implícitos, devido ao medo da censura.

Em 1917, o artista foi proibido de atuar por seis semanas após satirizar o Rei Ludwig II da Baviera. Durante a Primeira Guerra, diante da obrigatoriedade de temas patrióticos nas apresentações dos teatros, Valentin gerou risos incontidos na plateia ao entoar uma canção de moralidade de guerra com tom de seriedade exagerado. 

Em 1933, com a ascensão do nazismo, muitos artistas e intelectuais abandonaram a Alemanha, mas Valentin permaneceu e sua popularidade cresceu. Apesar dos censores, em certa ocasião, Valentin apareceu em cena, levantou o braço direito e gritou: “Heil… que droga, agora esqueci o nome dele!”. Cenas explicitamente antinazistas foram escritas entre 1941-1946, quando o cômico estava afastado dos palcos. 

Durante a guerra, Valentin publicou um anúncio no qual oferecia aos soldados que iriam aos campos de batalha, pela quantia de 10 marcos, a gravação de suas vozes em disco como herança aos familiares, em caso de morte. O anúncio, em tom de deboche, evidenciava a postura antimilitarista de Valentin diante da difícil situação do povo alemão. Importante destacar que ele foi dispensado como soldado devido ao seu quadro asmático.

Em meio às incertezas políticas, sociais e econômicas que assolavam a Alemanha após a II Guerra Mundial, o cômico não conseguiu retomar o sucesso da sua carreira. No ano de 1948, aos 66 anos, depois de dormir em um camarim sem calefação durante o inverno alemão, Valentin morreu em decorrência de uma pneumonia.

Considerado por muitos um fracassado, Karl Valentin sobreviveu de forma subversiva à sociedade que tanto criticava e manteve-se fiel artisticamente à sua visão de mundo. Hoje, no centro de Munique, temos um museu dedicado a Valentin com fotos, figurinos, publicações e estranhos objetos criados pelo artista, como um penico revestido de tecido felpudo para ser utilizado em dias frios. Na entrada do pequeno museu, um aviso instaura o espírito do local com uma das clássicas frases do cômico:  “A entrada é livre para pessoas acima de 99 anos acompanhadas pelos pais”. 


Referências:
BATTISTELLA, Roseli Maria. O Jovem Brecht e Karl Valentin: A cena cômica na República de Weimar. Universidade do Estado de Santa Catarina, 2007. 
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
HEIDERMANN, Helena Mel. O mestre do besteirol – uma arte para todos. QORPUS, v.10, p.144-151. 2020.


Juliana Wolkmer é atriz, pesquisadora e professora. Doutora em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas- UFRGS.


Espetáculo Teatral VALSA VALENTIN
QUANDO: 23 e 24 de agosto 
HORÁRIO: 19h30 
LOCAL: Auditório do Goethe-Institut
ENTRADA FRANCA

Sinopse:
A peça VALSA VALENTIN é o resultado final da Oficina de Montagem Teatral Cena Aberta e traz para o palco algumas esquetes do fabuloso cômico alemão Karl Valentin. Como prólogo da peça, o público será contemplado com um breve panorama histórico sobre a obra de Karl Valentin, apresentado por Juliana Wolkmer, que também assina a direção do espetáculo. 

Ficha técnica:
Direção: Juliana wolkmer
Elenco: Alê Vasconcellos, Bruno Medeiros, Fernie Canto, Laura Alcaíde, Luciana Peres, Jorge Devantié, Jussara Oliveira e Roseti Marques.
Iluminação: Pati de La Rocha
Trilha sonora e figurinos: O grupo
Produção: Cena Aberta
Fotos: Adriana Marchiori
Apoio: Goethe-Institut

*Antes do início do espetáculo, a partir das 19h, o filme mudo Mistérios de um Salão de Cabeleireiro (1923/ Direção Bertolt Brecht), uma das comédias mais famosas de Karl Valentin e Liesl Karlstadt, será exibido no hall de entrada do Goethe-Institut.

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