Resenha

Oprimidas não, empoderadas! Mulheres venezuelanas em Porto Alegre: Histórias de superação

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Oprimidas não, empoderadas! Mulheres venezuelanas em Porto Alegre: Histórias de superação Foto: Reprodução

Recentemente estamos sendo arrebatados pelos percalços causados em virtude do pleito venezuelano ocorrido em 28 de julho deste ano. A disputa que parece não chegar a um consenso, atinge em cheio seus cidadãos que já há muitos anos se veem mergulhados em uma crise que beira a desumanidade. A reeleição de Maduro, em meio a tantas controvérsias, é parte de um processo histórico de instabilidade política e econômica que fizeram seus nacionais deixar o país em busca de novas perspectivas de vida. 

Assim, durante meu mestrado na Pontifícia Universidade Católica, tive meu primeiro contato com este povo, oriundo de um dos maiores contingentes de migrantes da América Latina, hoje com cerca de sete milhões fora da Venezuela. “Elas Merecem ser Lembradas” nasceu de uma pesquisa pautada na História Oral, enquanto metodologia, orientada pela Drª Claudia Musa Fay (PUCRS), que tinha como objetivo evidenciar as mazelas de mulheres venezuelanas em nossa capital. Foi dessa forma, tomando conhecimento por um grupo de mulheres venezuelanas residentes hoje em Porto Alegre durante o período de meu mestrado, e com a ajuda de minha orientadora, que percebemos o quanto essa roupagem que as subjuga como oprimidas e submissas não lhes cabia.

Os Estudos de Gênero: Um novo olhar para o fluxo de mulheres

Grande parte dos estudos que envolvem os processos de migração coloca a mulher em uma posição de invisibilizada. Se pensarmos pela lógica das políticas públicas, das iniquidades dos sistemas de acesso ao trabalho, regulamentação, pobreza, raça, entre tantas lógicas de submissão, sim, podemos vê-las como oprimidas por um sistema que colabora para seu apagamento social. Esta noção veio a se modificar ao longo do tempo, muito em virtude da introdução dos estudos de gênero, e pelo aumento do contingente feminino que se desloca para outros espaços, sendo as figuras centrais deste percurso. 

Oriundas desses novos processos de migração do século XXI, e principalmente vindas de um país cujas graves crises de origem humanitária, econômica e política repercutem na vida de seus nacionais, a simples escolha de romper com esse padrão e optarem por deixar a Venezuela já as coloca em uma posição de destaque. São inúmeros os obstáculos nos quais migrantes enfrentam quando deixam suas nações. Mulheres estão, sem dúvida, mais suscetíveis a abusos, ao tráfico humano, ao trabalho escravo. No entanto, quando o desejo e necessidade batem à porta, a única forma de sobreviver é ignorar os perigos e o desconhecimento que circundam as mobilidades, e se aventurar na busca de uma vida mais digna. 

Retomando meu objetivo inicial em denunciar todas as formas de opressões que essas venezuelanas enfrentaram desde a tomada de decisão de migrar, passando pelo percurso à aceitação no país de acolhida, tal noção foi sendo quebrada ao longo de nossas entrevistas. O rompimento do silêncio de nossas protagonistas trouxe a possibilidade de entender a dimensão da complexidade e os desafios que permeiam a vida de mulheres migrantes em seus diferentes contextos, mas também o quanto isso não as afetava. Por qual motivo? Ver seus filhos passando fome, com necessidade de atendimento médico, entre outras questões em que a Venezuela vem sendo deficitária, criava um mecanismo de força e empoderamento que as motivou a deixar o país e toda uma história de vida. Nossas venezuelanas buscaram forças para romper com o papel de gênero que as submete à passividade e partiram em busca de uma nova perspectiva de vida. 

 

“Tu não sabe como é ver teu filho dizer que está com fome. Meu marido ficava sem comer porque eu com o problema no estômago doía muito se ficasse sem comer. Mas ele também precisava comer né? Ele saía, trabalhava e trazia um pouquinho de farinha e de massa, para dar pras crianças e pra mim. Era muito triste. Antes era tudo muito bom lá. Mas as coisas ficaram muito políticas e se tu não tivesse dinheiro, tu não conseguia nada”. (Entrevistada nº 4, 2022)

 

Fui acometida diversas vezes pelo sentimento de impotência e tristeza, mas resolvi assumir um posicionamento de aprendizagem com minhas entrevistadas. Como olhar para os meus problemas, se existem emergências ainda mais complexas cujos atores te presenteiam com sorriso e um brilho de esperança? Dessa forma, questionei-me como poderia contribuir para a construção de uma nova perspectiva a partir da coragem dessas mulheres em sua realidade migratória. Percebi que a maneira mais fiel ao meu estudo seria descrever suas expectativas, seus projetos de vida, seus sonhos, suas dores e tristezas, trabalhando a categoria do protagonismo, mediante a realidade vivenciada e compartilhada comigo por cada uma delas. Suas falas estilhaçadas seriam importantes para romper com seus silêncios e os antigos paradigmas que colocam sempre a mulher em um lugar de passividade e invisibilidade dentro de nossa sociedade. 

Meu contato se deu em dois momentos. O primeiro foi por intermédio da amiga Ivete Spindola, cuja rede de ajuda aos migrantes me proporcionou uma gama de entrevistadas que compartilharam comigo suas experiências. A tomada de decisão ainda na Venezuela, como viver no país, e a recepção aqui na capital. Foram relatos emocionantes, que muitas vezes me puseram em lágrimas, principalmente por entender as iniquidades que a Venezuela vem enfrentando nos últimos anos e que têm levado seus nacionais a deixarem o país de forma massiva. 

O segundo momento se deu pela uma imersão no Centro Ítalo-Brasileiro de Instrução e Assistência a Imigrantes (CIBAI Migrações), cuja coordenação de Anderson Hammes – pessoa a quem eu devo muito da realização de meu trabalho – busca assistir imigrantes dando-lhes suporte, desde documentação, abrigo, cestas básicas até cursos de capacitação para o mercado de trabalho. Lá pude presenciar uma aula de corte e costura para mulheres migrantes e conversar com cada uma das delas ali presentes. Os relatos, descontraídos, escondem todas as dificuldades que até então nossas protagonistas enfrentaram, e não velam a vontade de crescer, tampouco a garra que essas mulheres possuem, que as faz passar por tantas dificuldades sem desanimar.

Foram entrevistadas enfermeiras, contadoras, escritoras, mulheres com formação que aqui buscaram se reinventar em uma nova atividade cujo objetivo fundamental é garantir a sua sobrevivência e a de seus familiares, elevando a força, o protagonismo e o empoderamento que o gênero feminino traz em seu íntimo. Todas as intercorrências que sofreram ficaram para trás. Um novo capítulo passa a ser escrito. A partir de suas falas, não podemos colocá-las em um lugar de oprimidas e invisibilizadas. A determinação que carregam é algo motivador. Mesmo que o fato de deixar sua terra natal imponha condições precárias para a reconstrução de uma nova vida, elas não desanimam. São, hoje, empreendedoras de suas vidas. 

Tal experiência em conhecer de perto suas vidas me possibilitou compreender que, mesmo com todas as estruturas sociais precárias que envolvem o processo de migração – e para a mulher torna-se ainda mais complexo –, nada as impede ou impediu de reverter tal quadro. Como resultado? Apresento um trabalho intitulado: “Elas Merecem ser lembradas. Mulheres Venezuelanas em Porto Alegre”, construído para valorizar, para protagonizar essas mulheres, em primeiro plano. São protagonistas e não subalternas. São lutadoras e não passivas. Portanto, a partir de suas narrativas evoco aqui o grito de liberdade: “Echa PA’LANTE!” Vocês merecem ser lembradas. 

 

 


 

Foto: Fi Editora/Divulgação

Elas merecem ser lembradas: migração venezuelana para Porto Alegre – uma análise a partir das interfaces gênero-migração, de Giselle Perna
Cachoeirinha : Fi, 2023. 272p.
Disponível em: http://www.editorafi.org

 


Giselle Perna é formada em História e Jornalismo. Mestre em História pela PUCRS e atualmente cursando doutorado em História também pela PUCRS, cuja pesquisa foca nas migrações venezuelanas para o Estado do Rio Grande do Sul. Autora do livro: Elas Merecem ser Lembradas: Migração venezuelana para Porto Alegre – uma análise a partir das interfaces gênero-migração pela editora Fi.

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