Resenha

Bem longe da mesma coisa

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Bem longe da mesma coisa

Não costumo ler ficção de escritores anglófonos diretamente na língua inglesa, devido a uma mistura invencível de incompetência e preguiça. Por isso sempre agradeço, quase de joelhos, quando um bom tradutor (ou tradutora) me oferece um prato daquilo que Umberto Eco chama de “quase a mesma coisa” mantendo os temperos e a consistência da receita original. Recentemente devorei quase toda a obra de John Fante graças ao talento de Roberto Muggiati. Duvido que tenha perdido algo essencial do universo de Fante. Ou, se perdi, prefiro pensar que não perdi, para não estragar o prazer da leitura. Obrigado, Muggiati.

Depois dos livros de Fante, numa virada estética e histórica bastante radical, li “Middlemarch”, de George Eliot, da editora Martin Claret, em tradução de Solange Pinheiro. Devo algumas genuflexões a Solange, que cumpriu uma tarefa bem diferente de Mugiatti, mas sem dúvida tão difícil quanto. Em vez das frases curtas e do estilo violentamente cômico (e econômico) de Fante, em “Middlemarch” temos longos períodos elegantemente arquitetados por Eliot, sustentados  por vírgulas em profusão. Pratos diferentes, ambos deliciosos. Às vezes, é bom ir direto ao ponto. Às vezes, bons são os apostos. 

Por isso, ao abrir “O moinho à beira do rio Floss”, também de George Eliot, obra que me foi recomendada com entusiasmo por quem conhece bem a escrita vitoriana (e lê no original), eu estava com água na boca, e nem um pouco assustado pelas 466 páginas que me espreitavam sob a linda capa criada pela editora Pedrazul, que (presumo eu) é uma tentativa de proporcionar ao leitor uma imagem idílica do moinho Dorlcote, lar da família Tulliver em meados do século 19, na região de York, norte da Inglaterra. Fui direto ao texto, sem observar índice e outras anotações. Desde as primeiras frases, notei que a prosa bem ritmada de Eliot em “Middlemarch”, que se passa no sul do país, não longe de Londres, não fizera uma boa travessia para York. 

Até aí, tudo bem. Estou acostumado a ler prestando mais atenção à história que ao estilo vertido à língua portuguesa quando este não demonstra ser muito apetitoso. Porém, enquanto a pequena Maggie, em seus nove anos, se deparava com os infortúnios de ter uma família pouco imaginativa, um irmão de doze anos com testosterona demais e uma biblioteca limitada, eu tinha que superar obstáculos cada vez mais espinhosos nos parágrafos à minha frente, mesmo os mais curtos e livres de apostos. Então recuei e fui olhar o nome do autor da versão brasileira. Para minha surpresa, apenas no Livro 1 (entre as páginas 7 e 117) há cinco diferentes tradutores listados. Confesso que nunca tinha visto algo parecido. O resultado é ruim, e não apenas pela falta de elegância no estilo.

Nada contra trabalhos coletivos, e imagino que eles não sejam tão raros assim, especialmente em obras longas e desafiadoras. Contudo, infelizmente, desta vez não deu certo. Um exemplo da página 103: “A garota alta e o pivete maltrapilho, também com seus bastões, foram escoltando-nos, obedientes, pelos primeiros cem metros, com muitos gritos e de paus, escoltavam-nos obrigatoriamente pelos primeiros cem metros, com muitos gritos e pancadas.” Alguém aí entendeu? A coisa fica pior porque a narrativa não é em primeira pessoa (no caso, seria a voz de Maggie), de modo que o “escoltavam-nos” e o “escoltando-nos” são inadequados. Um parágrafo adiante, temos o seguinte final de frase: “… foi um alívio descobrir que o burro não paria ali”. Demorei um pouco para entender que o pobre burro, duplamente impossibilitado de dar à luz – é macho e geralmente estéril – não  “pararia” ali. 

Sei que, às vezes, não se trata de erro de tradução, e sim de revisão. Pode até ser uma confusão na hora de lidar com as revisões e correções enviadas por diferentes softwares, de diferentes autores (no caso de “O moinho à beira do rio Floss”, são 22 tradutores listados!). Mas será que não existe mais a velha e boa revisão de provas impressas? O texto jornalístico contemporâneo já está bem maltratado, sobretudo aquele que vai direto para as redes. Seria bem triste se a mesma falta de cuidado atingisse a literatura. E, no caso de George Eliot, um pecado capital. A editora Pedrazul tem em seu catálogo várias obras estrangeiras clássicas e se orgulha de lançar textos inéditos (ou raros) em versão brasileira. Torço para que seus demais títulos não contenham as mesmas deficiências. Em tempo: sigo lendo o romance e vencendo os obstáculos, pois George Eliot é uma escritora fantástica, décadas à frente de seu tempo. E muito mais divertida que Jane Austen.


Carlos Gerbase é cineasta, professor e escritor, mítico baterista da banda Os Replicantes.

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