Resenha

Até que o sacrifício nos separe

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Até que o sacrifício nos separe Gabriela Silva com sua obra "Sacrifício negado". Foto: Divulgação

“O que precisa ser dito sempre determina a maneira de dizê-lo, determina a escrita e também a estrutura do texto”, diz a francesa Annie Ernaux em um dos livros que não me separo: A Escrita como Faca e Outros Textos. Nesse mesmo conceito de produção, tenho sempre por perto o Escrever é Muito Perigoso – ensaios e conferências, da polonesa Olga Tokarczuk. Dois livros com muito em comum, vindos diretamente das melhores sinapses de duas escritoras nobelizadas.

Talvez não fique muito bem eu usar o verbo nobelizar aqui no Brasil. Pode parecer muito informal, ou o que é pior, que estou patifando o poderoso substantivo que dá nome ao mais relevante prêmio literário do planeta e do universo, e incluo o Cosmos porque, até onde sabemos, não há nenhuma outra forma de vida inteligente em ponto pálido nenhum escrevendo e lendo. Mas o fato é que, em Portugal, o verbo nobelizar está na ponta das línguas, como o patifar, que escrevi no odiado gerúndio, também está por aqui, e a escritora sobre quem hoje escrevo, além de ser uma autoridade em Literatura Portuguesa, é também uma professora capaz de rir com essas coisas. 

O escritor Luiz Ruffato, mineiro, hoje vivendo na terra de Camões, uma vez disse achar divertido e interessantíssimo esse nosso jeito gaúcho de transformar substantivos em verbo. Ou interessante. O superlativo deve ser coisa minha. Eu sou uma pessoa um tanto hiperbólica. Dito isso, passo ao que não é meu em um certo sentido, mas que me pertence em outro, porque o li, o livro Sacrifício Negado, segundo livro de poemas da Gabriela Silva, uma brasileira de palavras com aroma lusitano e que na poesia, como a Ernaux na prosa, também encontra os contornos, a arquitetura e o tom certos sobre o que deve ser revelado.

E por que falo em aroma? Provavelmente, porque há poemas sensoriais no Sacrifício Negado, e eu sou uma pessoa conectada com os sentidos do corpo. Brás Cubas diria que eu tenho narinas machadianas. Concordo, sem ressalvas, com a frase: “há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo”. O olfato é a minha perdição. Eu esqueci, por exemplo, da voz de minha mãe. Demorei uns vinte anos e parece mesmo que foi ontem, porque “a morte não envelhece”. O seu cheiro, no entanto, pretendo manter comigo até o fim. Minha mãe, na curva perigosa dos cinquenta anos, derrapou. Não na do amor, como Carlos Drummond de Andrade diz no poema Quarto em desordem. Meus pais encontraram-se e, contrariando o poema Quadrilha, amaram-se. 

Gabriela Silva domina o verbo amar. Escreve sobre o amor, o desamor e o antiamor e o mau cheiro que ele exala. Esse último, não desejo a ninguém. Ou quase. O antiamor está diretamente ligado a relacionamentos abusivos, em que um narcisista se empenha pela decomposição da estima e para que a outra pessoa deixe de gostar de si mesma. Esse tipo de personalidade bem que merece provar de si mesma, inalar-se um pouco. Escreve Silva, acrescentando o hífen para, quem sabe, afastar o amor de quem o despreza: “Das vezes que o anti-amor/Se aproxima do mundo/As flores murcham/Um gato se perde na noite” e, em outra estrofe: “O leite azeda/O bolo não cresce/A unha quebra/O disco aparece arranhado” e, ainda em mais outra: “O anti-amor chama de paz/O silêncio da mágoa causada/A solidão da conversa suspensa/A ausência proposital”.

E quando Silva fala em “ausência”, lembro da poeta brasileira Hilda Hilst, que também compreende faltas e explora os vazios, as inquietudes de nossos espaços internos e o limbo em que, volta e meia, uma mulher é colocada. Não há como ler uma sem lembrar da outra. “Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes/ Antiquíssima ave, marionete de penas/ As asas que pensou lhe foram arrancadas”, escreve Hilst no livro Do Desejo

Dialogam, Silva e Hilst, por meio de seus escritos e dialogam, ambas, com um Deus menos tolerante com as filhas que com os filhos, um ser segregador. O Deus, de Hilst, mais distante, não é de afagos. Silencioso, prefere contemplar a humanidade e, dela, espera apenas que o mantenha vivo. O Deus, de Silva, no entanto, quer mais. Move-se. Almeja ser a própria obra, apropriar-se das mentes, dos nervos e da carne de cada corpo. “Vês? Ainda há sangue nas minhas mãos/ das feras que abati para te alimentar/cacei algumas no meio da floresta/usando o meu faro, meus olhos”, a autora escreve no poema que dá nome ao livro e em que todo o empenho e força de uma mulher são testados e desprezados até o fim.


Sacrifício Negado, de Gabriela Silva
95 páginas
2022, Editora Bestiário


Helena Terra nasceu em Vacaria e vive em Porto Alegre. Publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013), Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021) e Os dias de sempre (Editora Besouros Abstêmios, 2023). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber O Que é O Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). É jornalista e editora na Editora Peripécia e na Editora Besouros Abstêmios. É também conselheira e vice-presidente da Associação Literatura livre, no Rio de Janeiro.

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