Resenha

A cidade letrada, 40 anos depois

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A cidade letrada, 40 anos depois Foto: Autor desconhecido

Ángel Rama (1926 – 1983) é sem dúvida um dos maiores intelectuais latino-americanos. Sua morte prematura, em um acidente de avião, adicionou o componente trágico a uma biografia já excepcional. Filho de imigrantes galegos, nasceu em Montevidéu, em 1926, época em que o Uruguai ainda se imaginava a Suíça da América. Estudou na Faculdade de Humanidades e Ciências de sua cidade e em 1955 passou uma temporada na Europa, onde teve aulas com Fernand Braudel (o conceito de longa duração será determinante nas formulações de Rama). De volta a Montevidéu, durante a década de 1960, atuou como diretor da seção literária da mítica Revista Marcha, por onde também passaram outros uruguaios extraordinários – Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti, Eduardo Galeano, Ida Vitale (com quem Rama se casou e teve dois filhos), pra citar os mais conhecidos.  

Em 1962, outro feito mítico: fundou a Editorial Arca, com suas coleções que incorporavam escritores uruguaios então desconhecidos (Felisberto Hernández, Armonía Somers) ou conhecidos localmente (Horacio Quiroga, Juan Carlos Onetti) ao nascente boom da literatura latino-americana. Foi um ensaio para o projeto editorial que capitanearia a partir dos anos 1970, já exilado na Venezuela, reduto democrático frente ao autoritarismo que ascendeu via golpe militar em boa parte dos países sul-americanos. Trata-se da Biblioteca Ayacucho – e se já estávamos definindo como míticas a Revista Marcha e a Editorial Arca, agora nos falta uma qualificação à altura.        

Rama reuniu os principais intelectuais da esquerda latino-americana (Antonio Candido foi o brasileiro mais atuante) em torno desse projeto que publicou mais de 300 livros fundamentais da literatura, crítica, história do continente, originalmente escritos em espanhol ou, no caso dos escritos em português e francês, traduzidos especialmente para a Ayacucho. Com a Biblioteca, Rama se firma como intelectual latino-americano por definição, com formulações abrangentes que superam os limites nacionais – suas comarcas são uma alternativa instigante à escala nacional como única forma de compreensão literária. Sua maturidade intelectual está registrada em livros hoje obrigatórios do pensamento latino-americano: Rubén Darío y el modernismo: circunstancia socioeconómica de un arte americano (1970), La generación crítica, 1939-1969 (1972), Los gauchipolíticos rioplatenses (1976), Transculturación narrativa en América Latina (1982), além dos póstumos La ciudad letrada: un ensayo (1984) e Las máscaras democráticas del modernismo (1985).    

O clássico La ciudad letrada (A cidade das letras, em discutível tradução para o português) completa este ano 40 anos. O contexto que envolve sua redação é digno de nota. Desde o final dos anos 1970, Rama encontrava-se nos Estados Unidos – ele teve uma carreira importante em universidades de lá. Em 1981, o republicano Ronald Reagan se elege presidente, o que dificulta bastante a vida de gente de esquerda. Encurtando a história, o serviço de imigração nega a renovação do visto de residência de Rama nos EUA, um processo com tintas kafkianas. Rama e Marta Traba (estupenda crítica de arte, sua companheira à época) se instalam então em Paris, onde Rama finaliza o livro em 1983, poucos dias antes de embarcar, junto com Marta, no fatídico avião. A filha de Rama é quem vai encaminhar o texto para publicação.

O livro é publicado em 1984 nos EUA, por uma pequena editora especializada em língua espanhola. Terá outras edições no Uruguai (1998), no Chile (1994) e em Madri (2009). Agora em 2024, por ocasião dos 40 anos, a editora Trampa, de Barcelona, lançou nova edição a partir de outro original, em que o crítico havia feito pequenas correções – o acréscimo do subtítulo “um ensaio”, por exemplo. Se o texto de La ciudad letrada não apresenta mudanças substanciais em comparação às edições anteriores, a nova edição, a cargo de Nora Catelli e Edgardo Dobry, com prólogo de Adrián Gorelik, marca a efeméride com grande qualidade.

La ciudad letrada abre com uma seção de Agradecimentos em que Rama não se furta a referir o processo kafkiano imposto pela burocracia estadunidense. Assim, o livro é político desde a abertura, em que Rama deixa muito claro seu objetivo: “[este é] um ensaio que explora a letrada servidão ao Poder e advoga pela ampla democratização das funções intelectuais”. Gorelik, no prólogo, em interpretação atilada, afirma que o simples fato de o livro incluir Agradecimentos afasta uma leitura até então corrente de que Rama não tinha concluído o texto – ninguém escreve Agradecimentos para texto inacabado. Seja como for, os seis capítulos em que se estrutura La ciudad letrada dão conta de enunciar uma longa duração, do início da colonização espanhola à segunda metade do século XX, em que Rama persegue o problema da subserviência dos intelectuais ao poder.

O primeiro capítulo, La ciudad ordenada, começa assim: “Desde a remodelação de Tenochtitlan, depois de sua destruição por Hernán Cortés em 1521, até a inauguração, em 1960, do mais fabuloso sonho de urbe de que foram capazes os americanos – a Brasília de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer – a cidade latino-americana vem sendo basicamente um parto da inteligência, pois ficou inscrita em um ciclo da cultura universal em que a cidade passou a ser um sonho de ordem e encontrou, nas terras do Novo Continente, o único lugar propício para encarnar”. O arco da capital asteca ao monumento vanguardista brasileiro dá mostra da criatividade da argumentação de Rama; a cidade como parto da inteligência e sonho de ordem que encontrou lugar propício no Novo Mundo, quer dizer, na periferia do capitalismo, são sínteses que Rama vai tratar de desenvolver ao longo do livro.   

A “conquista” da América inventou cidades regidas por uma ordem social hierárquica transposta na ordem distributiva geométrica: se pode ler a sociedade no mapa de uma cidade. Os princípios reguladores das cidades latino-americanas são unidade, planejamento e ordem rigorosa, que traduziam a hierarquia social. As cidades representam o sonho de uma ordem para perpetuar o poder e conservar a estrutura socioeconômica e cultural que esse poder garante. Ficará evidente o confronto entre a abstração, racionalização e sistematização europeias e a particularidade, imaginação e invenção autóctones.       

No segundo capítulo, que leva o mesmo título do livro, Rama aprofunda o papel dos letrados como “anel protetor do poder” e executor de suas ordens. São religiosos, administradores, educadores, escritores, intelectuais que a partir do púlpito, da cátedra, da administração, do teatro demarcavam e dirigiam as sociedades coloniais. Os letrados constroem a supremacia da cidade letrada, um grupo restritamente urbano, em oposição à sociedade majoritariamente rural. Exercitam a letra em um meio desguarnecido de letras, são os donos da escrita em uma sociedade eminentemente oral. Rama explora os encontros e desencontros entre a cidade real, a sociedade como um todo, e a cidade letrada, o elenco intelectual dirigente.

Em La ciudad escrituraria, o terceiro capítulo do livro, se dilata a distância entre a sociedade geral e os letrados, entre a fluida palavra e a letra rígida, a escrita dominada por uma minoria. Mesmo a criação de universidades na América Hispânica desde o início da colonização, algo que nós brasileiros invejamos já que não marcou a colonização portuguesa – nossos letrados se formavam em Portugal – é tratada por Rama como um reforço da concentração de poder letrado. Idealmente, a criação de universidades deveria acompanhar a de escolas de primeiras letras. Para Rama, os letrados vão assumir o papel de tradutores do Novo para o Velho Mundo, explicando em língua culta (espanhol, português) o funcionamento da sociedade americana, marcada pelas línguas indígenas e africanas.

Rama valoriza letrados que viam como problema a distância entre o intelectual e a sociedade. Um exemplo é o venezuelano Simón Rodríguez (1769-1854), tutor de Simón Bolívar, que defendia repúblicas feitas de cidadãos e não de doutores; Rodríguez é uma exceção se comparado à elite criolla que se empenhava em continuar concentrando poder. Com essa valorização, Rama reafirma o objetivo que expôs desde as primeiras páginas do livro: democratizar as funções intelectuais. Se durante a Colônia essa não era pauta corrente, o cenário começa a mudar a partir das Independências e avança na segunda metade do século XIX, quando as cidades passam a se modernizar. 

O quarto capítulo se intitula justamente La ciudad modernizada, e Rama examina os impactos da modernização pós 1870 na incorporação de novos setores às letras, que passam a ser uma forma de ascensão social. A imigração em escala que marcou diferentes cidades latino-americanas no final do XIX leva dissidência à cidade letrada; se configura, então, um pensamento crítico que responde às diferenças de classe. O próximo passo é uma politização abrangente da cidade letrada, tratada no quinto capítulo: La polis se politiza. A Revolução Mexicana de 1911, levante camponês que tinha a educação popular como meta, é tratada por Rama como um marco para a atuação dos letrados. A partir daí, a democracia que timidamente começou a ser praticada em diferentes países do continente amplia o círculo de poder e diversifica a classe social do intelectual.

No sexto e último capítulo, La ciudad revolucionada, Rama traça um arco de ondas democratizadoras que imprimiram mudanças na cidade letrada ao longo do século XX: a já citada Revolução Mexicana, a presidência de José Batlle y Ordóñez no Uruguai, de Hipólito Yrigoyen na Argentina, Arturo Alessandri no Chile, Getúlio Vargas no Brasil, Perón na Argentina, Rómulo Gallegos na Venezuela, Fidel Castro em Cuba, Salvador Allende no Chile, o sandinismo nicaraguense. Esses governos de base popular foram acompanhados por uma geração intelectual intermediária, de setores médios, que ajuda a consolidar a fórmula da democracia no continente. Nas palavras de Rama: “a fórmula ‘educação popular + nacionalismo’ pode ser traduzida sem problemas por ‘democracia latino-americana’”. Essa renovação na cidade letrada, que agora incorpora outros estratos sociais, que vê uma integração maior dos intelectuais, via partido, à política dos governos, vai gerar uma base democrática e de solidariedade nacional. Emerge um novo público leitor que conduz a uma ampliação da elite intelectual. 

Esta minha síntese precária dificilmente faz jus ao texto. Por certo, simplifiquei problemas e tensões que Rama se empenhou em enunciar de forma complexa. Por outro lado, um livro que percorre 400 anos de história intelectual latino-americana precisa lançar mão de generalizações. Mesmo um dos maiores feitos da crítica de Rama – incluir o Brasil na América Latina – implica desconsiderar especificidades em nome de uma visão de conjunto. Está no horizonte de La ciudad letrada um intelectual crítico em relação aos poderosos de turno e ciente de sua função social. Quer dizer, o intelectual que Ángel Rama soube ser. 


Karina de Castilhos Lucena é professora do Instituto de Letras da UFRGS.

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