Resenha

A antecâmara do invisível 

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A antecâmara do invisível  Foto: Divulgação

De uns dias para cá, tenho pensado na redação nota zero que um professor de Educação Religiosa me devolveu na oitava série, como se eu não tivesse escrito uma única linha ou se eu fosse um completo desastre em Língua Portuguesa. E tenho pensado porque me dei conta de que ela foi a primeira punição que recebi de um homem por eu não me encaixar em sua cartilha. O tema do texto não podia ser mais fácil: o final de semana. Minhas colegas, de modo geral, escreveram sobre a missa de domingo, a que nem foram, e a presença de Deus em suas vidas. E eu escrevi sobre a maldade das freiras que discutiram com o meu pai, no sábado, quando ele se negou a fazer uma curetagem, sem anestesia, em uma prostituta que havia abortado. Condoeu-me a fragilidade da Madalena pecadora, como as irmãs a chamaram, e revoltou-me a perseguição e o ódio. Senti-me, portanto, sem escolha.

“Sempre é mais fácil odiar mulheres do que homens”, Marcia Tiburi diz no livro Feminismo em Comum para Todas, Todes e Todos, e a realidade, patriarcal e impiedosa, confirma ano após ano, talvez, por sermos, dentro da lógica cristã, desdobramentos de Eva, o que entendo como um enorme desrespeito à condição humana e à individualidade de cada uma. As mulheres, assim como os homens, e apesar de toda a opressão social, não são, nunca foram feitas em série, ainda mais no que se refere ao caráter. Gênero não confere boa ou má índole a ninguém. Pessoas com mau-caráter, o Judiciário que o diga, usam ternos e bigodes e também vestidos e máscaras para cílios. Opções de máscaras, inclusive profissionais, não faltam para ninguém. Na pediatria, por exemplo, usa-se a de que quem trabalha com crianças é porque gosta muito delas e de suas mães.

No romance A pediatra, a escritora paulistana Andréa Del Fuego desenvolve esse tema pouco abordado na literatura. Não lembro de ter lido em nenhum outro livro o assunto. Talvez ele esteja no rol dos supertabus. Mulheres que assumem não gostar de crianças e cuidam delas sem negligenciá-las ou agredi-las não fazem parte do imaginário coletivo. Cecília, a protagonista, diferentemente de Medeia, de Eurípedes, por exemplo, não seria capaz de matar uma criança. Pelo contrário, apesar de detestar seus pequenos pacientes, zela por eles. Quem os trata não é a mulher Cecília, é a medicina que ela domina, carreira escolhida por uma questão de praticidade. Sendo filha de um endocrinologista pediátrico bem-sucedido, seguir seus passos garante a sua independência financeira e o seu alto poder aquisitivo. Só isso. Não há vocação, desejo materno nem bons sentimentos em jogo. Há, no entanto, o constante desejo sexual pelo pai de um menininho, o que torna Cecília uma personagem bastante incomum. Explico. Não. Passo a palavra à Cecília. Que ela fale por si até o fim:

“Se eu não morasse longe, você podia fazer o parto do meu filho, disse Celso. Eu o lembrei que não fazia parto, mas era neonatologista e conhecia a melhor obstetra do país. Ele convenceu a esposa de que o filho chegaria com mais segurança se acompanhado por uma equipe competente. A grávida estava de licença da empresa que advogava e aceitou o plano. O casal deixou o apartamento no Sul com o quarto da criança pronto, alugaram um flat em São Paulo, vieram no último mês da gestação. Com a grávida na cidade, nos encontrávamos num hotel no mesmo bairro, para que ele não chegasse atrasado em casa. Marquei uma reunião com o casal antes do parto, era praxe. Uma hora antes da consulta ele passou no meu consultório para ensaiar nossa relação de desconhecidos quando viesse com a mulher. Transamos no banheiro, minha vagina estava inchada quando a grávida, uma hora depois, entrou com ele”.

 


 

Foto: Companhia das Letras/Divulgação

A Pediatra, de Andréa Del Fuego
159 páginas
2021, Companhia das Letras

 


Helena Terra nasceu em Vacaria e vive em Porto Alegre. Publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013), Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021) e Os dias de sempre (Editora Besouros Abstêmios, 2023). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber O Que é O Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). É jornalista e editora na Editora Peripécia e na Editora Besouros Abstêmios. É também conselheira e vice-presidente da Associação Literatura livre, no Rio de Janeiro.

 


As opiniões emitidas pela autora não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.          

        

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