Reportagem

Sarandizuela: sair para salvar a vida

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Sarandizuela: sair para salvar a vida Bairro Sarandi. Foto: Rodrigo Flores

Fernando Rivera havia passado parte da sexta-feira, 3 de maio, avisando vizinhos e amigos sobre o perigo da enchente, mas a verdade era que ele mesmo tinha suas dúvidas. Junto com a esposa e o filho, decidiram ficar em casa aquela noite. Um dos motivos que os levaram a escolher o Sarandi era porque parecia um bairro estável, tranquilo e organizado, nem os moradores antigos tinham relatos de desastres ou coisas do tipo na região. Mas na manhã do dia 4, tudo tinha mudado, o bairro estava um caos, pessoas carregando os carros com tudo o que coubesse, ou então pelas ruas levando nas mãos o que conseguiam, as avenidas congestionadas e muitos moradores ainda sem saber o que fazer. Naquela madrugada, a enchente havia chegado ao bairro, estava apenas a algumas quadras da casa de Fernando e Yaneth, e continuava a avançar. 

Com pressa, os três pegaram mochilas, roupas de frio, comida e colchões, colocaram no carro e deixaram sua casa às 10h. Onde moravam a água chegou até o teto, perderam tudo. Mais uma vez os Rivera precisariam reconstruir sua vida. A família, assim como muitos moradores do Sarandi, é natural da Venezuela, e imigrou para o país há poucos anos. A história de como eles tiveram de reconstruir sua vida começa em 2019, quando seu filho mais velho veio ao Brasil.

Recomeçar

Junior Rivera recebeu um convite para vir ao Brasil por meio de um amigo que já estava aqui. Deixou para trás seus pais, o irmão, a irmã e o cunhado. Com o passar dos anos, principalmente com a pandemia, a situação no país caribenho não melhorou. Fernando conta que o que o motivou a sair foi o salário, que já não servia para as contas, e a saúde do filho mais novo, Jonnayker, e de sua esposa, Yaneth. Ainda assim, não foi uma decisão fácil: “toda a vida vivendo na Venezuela, toda a família e toda a vida que eu conhecia estava ali, nunca imaginei sair para outro lugar”.

Em 2021, Fernando saiu com a esposa, com os dois filhos que ainda estavam no país e com o genro. Junior ajudou seus pais tanto com as passagens, quanto com um lugar onde morar aqui. O processo começou ao saírem da cidade de La Victoria, no norte do país. Foram três dias de viagem até a fronteira com o Brasil. Fizeram o translado pagando a um amigo que buscou eles em casa e conseguiu hospedagem para os dias de viagem. Em Santa Elena de Uairén, a última cidade venezuelana ao sul, se despediram de seu país e cruzaram para Pacaraima, no Brasil. A partir daí vieram de avião até Porto Alegre.

Sair do país não é um processo simples, nem financeiramente, nem emocionalmente. Fernando relata que tinha medo: “não sabia que coisas íamos enfrentar, tinha medo de não conhecer o idioma, medo de não conseguir emprego porque já tinha 45 anos”.

O primeiro lugar que viveram no Brasil foi com o filho mais velho, todos juntos em uma casa alugada no bairro Santa Fé, onde Junior já vivia. Ficaram ali um mês até encontrarem um apartamento para alugar em Alvorada. Cerca de quatro meses depois se mudaram de volta para Porto Alegre, no bairro Sarandi. No novo bairro, se mudaram mais algumas vezes até que, no final de 2023, encontraram a casa onde viveram até a enchente. 

A intenção era juntar dinheiro e voltar para a terra natal, mas com o tempo perceberam que isso não iria acontecer. “Depois de uns seis ou sete meses tínhamos uma sensação de perda, sabíamos que não iríamos voltar, não tão cedo”, disse Fernando. Ao longo de dois anos, os Rivera foram se reerguendo, construindo novamente sua vida, no novo país. 

“Salimos para salvar la vida”

“Na verdade não entendíamos nem sabíamos que era possível isso acontecer. Primeiro porque era um bairro tão estável e sabíamos que tinha se estabelecido há muito tempo, não imaginávamos que isso era possível. Um amigo nos ligou e disse que deveríamos sair dali porque a água estava vindo das montanhas e iria inundar o Sarandi. Então vimos avisos da Defesa Civil e nos demos conta de que a nossa casa seria inundada. Não imaginávamos que com tanta água, então esperamos até o último momento, porque ainda não acreditávamos que isso ia acontecer”, conta Fernando sobre o dia da enchente.

Eles encheram o carro com o que conseguiram e saíram para a casa que um amigo havia oferecido. Lá ficaram durante todo o mês de maio, junto a um grupo de 15 pessoas, desabrigados pela enchente, e os donos da casa. Junior, o filho mais velho que não morava mais com os pais, também vivia no bairro e teve de deixar seu apartamento, foi para a mesma casa que o resto da família, junto da irmã e o cunhado que também alugam uma casa no Sarandi.

Deixar a casa em Porto Alegre foi bem diferente da experiência de deixar a casa na Venezuela, “é diferente, porque lá tomamos uma decisão de sair por conta própria, aqui fomos obrigados, saímos para salvar a vida”, explica Yaneth. 

Pouco mais de um mês após o início da enchente eles encontraram uma casa para alugar no bairro Passo das Pedras, também na zona norte de Porto Alegre. A nova casa não é muito longe do Sarandi, mas em uma região mais alta, sem riscos de alagamento. Para lá se mudaram Fernando, Yaneth e os dois filhos.

Quando perguntados se pensavam em voltar ao Sarandi, o casal respondeu um firme: “No!”. Yaneth explica os motivos: “Vimos como ficaram as ruas, destruídas, inabitáveis, o lixo espalhado por tudo. Então decidimos não voltar para lá e começamos a procurar outro lugar”. 

“Empieza de nuevo”

Eles conseguiram ver a antiga casa cerca de um mês depois, ainda com água. Puderam entrar com botas e aí perceberam que tinham perdido tudo. Depois de uma semana a água havia baixado, e eles puderam retirar os móveis que foram todos para o lixo.

“Ver tudo destruído, fora do lugar que havíamos deixado, ficou tudo destroçado, é horrível” diz Yaneth quando descreve a sensação que tiveram ao entrar em casa pela primeira vez após a enchente. Fernando fala da sensação de perda: “uma tristeza de perder tudo que construímos em pouco mais de dois anos, quase já tínhamos todas as coisas que se necessita para viver, e de repente outra vez sem nada, começa tudo de novo”.

Apesar do momento terrível que é a reconstrução, Yannet diz que a situação já está melhorando: “Já estamos com certo grau de comodidade, tranquilidade e estabilidade. Ainda faltam algumas coisas, mas a sensação de perda que tínhamos no início já passou, porque conseguimos recuperar boa parte da vida outra vez”. Fernando destaca a ajuda de amigos e colegas de sua religião que ajudaram principalmente no sentido emocional, tanto ao chegar ao Brasil quanto para se recuperar da enchente: “foi de muita importância para superar a tristeza e a sensação de perda que tínhamos quando chegamos a primeira vez e agora por causa da enchente”.

Fernando não foi o único que recebeu um aviso inesperado para sair do bairro antes da enchente, Cesar e Magda Blanco receberam notícias parecidas. O casal também é venezuelano e chegou no país há poucos anos. Eles também decidiram morar no bairro Sarandi. A história deles, a última dessa série, estará na Parentese do próximo sábado. 


Rodrigo Flores é estudante de jornalismo na UFRGS e também morador do Sarandi. Contato: [email protected]

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