Reportagem

Sarandizuela: as muitas mudanças de Olga Moreno

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Sarandizuela: as muitas mudanças de Olga Moreno Bairro Sarandi foi o mais atingido pela enchente de maio | Foto: Geovana Benites/Matinal

Sexta-feira, 3 de maio de 2024, Olga Moreno chegou do trabalho às 16h em sua casa no bairro Sarandi em Porto Alegre. Tinha sido liberada mais cedo por conta da chuva intensa. Fernando Rivera recebeu uma ligação de um amigo avisando que a água que estava descendo da serra poderia inundar a região. Cesar Blanco ouviu avisos da Defesa Civil na mídia. Esse foi o último dia que eles passaram em suas casas no bairro, mal podiam imaginar, mas na madrugada do dia 4 às ruas começaram a alagar, uma a uma, sem parar. Além de vizinhos, os três têm mais em comum: são imigrantes venezuelanos que chegaram no país buscando melhores condições de vida.

Esses estão longe de serem casos isolados. Atraídos pelos aluguéis baratos, e a relativa facilidade de transporte público, a região do bairro Sarandi, na Zona Norte de Porto Alegre, acolhe estrangeiros de diversas nacionalidades: haitianos, colombianos, mas principalmente venezuelanos, tantos que ganhou o apelido de Sarandizuela. Segundo a Procempa o bairro tem uma população de 59.711 pessoas, desses, segundo a Unidade de Saúde Asa Branca que atende os moradores mais ao centro do bairro, pelo menos 507 são venezuelanos, divididos em aproximadamente 90 famílias. Esses números, é claro, são de antes da enchente.

O Sarandi foi uma das regiões de Porto Alegre mais atingidas pela inundação de maio de 2024. Passando mais de um mês alagado, com pontos em que a água ultrapassava quatro metros de profundidade. Olga, que mora no Brasil há mais de quatro anos, é uma dos muitos venezuelanos que foram diretamente atingidos pela inundação. Essa não foi a primeira vez que ela precisou recomeçar a vida.

Primeiras mudanças

Olga deixou seu país, a Venezuela, pela primeira vez em 2019. Primeiro, cruzou a fronteira para Colômbia com um de seus filhos, na época com 14 anos. Nesse novo país, já morava sua outra filha, e ficou ali por dois meses, quando novamente se mudou, agora para o Equador. Permaneceu oito meses no país andino, mas enfrentou dificuldades em encontrar emprego e regularizar a documentação. Foi então que recebeu uma mensagem de um amigo seu, que havia se mudado com a família para o Brasil, e descreveu uma situação mais positiva para os imigrantes. Por isso ela decidiu se mudar de país, pela terceira vez em menos de um ano.

Depois de passar dois meses de volta à Venezuela para resolver pendências, em fevereiro de 2020 ela cruzou a fronteira do Brasil. O primeiro lugar que morou no país foi na casa desse amigo, que havia se estabelecido no mesmo bairro que muitos venezuelanos que chegavam a Porto Alegre, o Sarandi. Chegando aqui, logo conseguiu uma entrevista de emprego. Mas antes que pudesse começar em seu novo trabalho, chegou a pandemia de Covid-19.

Foi um período muito difícil economicamente. Olga conta que procurava trabalhos como faxineira, mas ser recém chegada, a falta de indicações e pessoas que a conhecessem se tornaram empecilhos. Com o passar do tempo ela conseguiu começar a trabalhar e a se estabilizar financeiramente. Mudou de casa mais quatro vezes, mas todas dentro do Sarandi, até que se estabeleceu no segundo andar de um sobrado, onde mora até agora com dois dos filhos.

Novas mudanças

“Todo dia chovia”, é assim que ela se lembra da última semana de abril deste ano. Na sexta-feira um grupo de amigos, também imigrantes, que moravam no bairro passaram para avisar do risco de inundação. Um deles se disponibilizou para buscar ela e seus filhos se precisasse. 

Ela ficou acordada com uma vizinha na parte de baixo da casa, até que perto da 1h da madrugada, em meio a penumbra da noite, viram ao longe um reflexo no chão: a enchente. Três quadras separavam a sua casa da água que avançava lenta, mas constantemente. Então ligou para o amigo com carro, acordou seus filhos e pegou suas mochilas com o básico. Às 3h da manhã do sábado, 4 de maio, Olga deixou tudo para trás pela quarta vez em quatro anos.

Olga conta que conversou  com alguns vizinhos que acreditavam que não seria necessário sair de casa, “nós não pensávamos que ia passar tanto tempo, tínhamos feito mercado um dia antes, não pensava que ia ser tão forte”, conta Olga. O próprio dono da casa, que mora no andar debaixo, disse que ela não corria perigo, a água não ia chegar até lá em cima, nunca havia chegado. O que convenceu ela a sair foi o medo de ficar ilhada em casa, sem água, sem luz e sem maneira de escapar.

Primeiro foram para um apartamento de um amigo, que é usado como escritório, “não tinha nada, dormimos com as cobertas no chão e comemos pão com presunto e queijo”, até que trouxeram almoço no dia seguinte. No domingo, às 5h, foram para a casa de um conhecido na cidade de Viamão, junto com uma família de vizinhos colombianos. 

Lá também não tinham nada no início. A casa era de campo, “não havia água, era uma casa para passar um dia, fazer um churrasco, não para ficar”, lembra Olga. Ficaram ali por 19 dias, nesse tempo receberam cestas básicas e roupas. Até que Olga recebeu uma ligação de seu patrão, dizendo que tinha um apartamento disponível em Porto Alegre no condomínio onde ela trabalha. 

Olga se mudou com os dois filhos para o novo apartamento. “É um apartamento que está em construção, e também não tinha chuveiro, também não tinha água, só tinha luz no quarto”, lembra Olga. Durante o mês que passou ali, usavam a cozinha e os chuveiros dos funcionários do condomínio. 

No dia 19 de Maio, Olga conseguiu ir de barco até a sua casa. A água tinha alcançado quase um metro do segundo andar. Ela conta que conseguiram recuperar alguns documentos e um monitor, mas as camas, fogão, geladeira e roupas foram todos perdidos.

A volta 

Às 16h de uma terça-feira, enquanto Olga passava café no seu trabalho, ela é avisada que precisa sair até sexta do apartamento que estava morando com seus filhos. Então, sem ter para onde ir, decidiu voltar para sua casa no Sarandí, “eu fiquei louca, não sabia o que fazer, então vim sozinha às 9h, com botas e luvas, e sozinha comecei a limpar, tirar tudo que estava podre, fiquei oito horas limpando tudo.” Além da dificuldade física de limpar uma casa destruída pela água, vem a dificuldade emocional, “eu me senti muito mal limpando a casa, comecei a chorar e chorar.” No dia seguinte Olga conseguiu terminar de limpar a casa com a ajuda de um colega de trabalho, que também é venezuelano e também foi desalojado pela enchente.

Na sexta juntou tudo que tinha, algumas roupas e os colchões, e voltaram para o Sarandí. De volta à casa, Olga diz que “ainda estamos dormindo na sala, nos colchões e as roupas guardadas em sacos de lixo”. 

Os efeitos das muitas mudanças

Sobre as sensações vividas, Olga ressalta a impotência: “dá vontade de chorar, não esperávamos isso, emocionalmente afeta bastante, eu não vim desde a Venezuela para passar por uma situação assim, muitas pessoas querem voltar para o país porque ficaram com medo. Agora já conseguimos uma geladeira, ganhamos um fogão e pouquinho a pouquinho vamos juntando as coisas, mas por enquanto está tudo um desastre”, conta ela com bom humor ao final.

Olga ressalta a importância dos programas de assistência social, e da solidariedade de outras pessoas: “recebemos roupa, recebi os R$ 2.500,00 [programa do governo do estado],pudemos fazer mercado, e pagar o aluguel, já que o dono também perdeu tudo”. 

Mas Olga não foi a única afetada. Fernando Rivera, também venezuelano e agora ex-morador do Sarandi, vivia a algumas quadras de distância de Olga. Junto com sua família, teve de sair de casa. Rivera, porém, decidiu não voltar ao bairro. Essa história será contada no próximo sábado.


Rodrigo Flores é estudante de jornalismo na UFRGS e também morador do Sarandi. Contato: [email protected]

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