Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CIV: O Fim dos almôndegas

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Capítulo CIV: O Fim dos almôndegas

Faz um tempo que eu parei de contar aqui, cronologicamente, a história da música popular de Porto Alegre. Minha última coluna sobre isso tinha sido sobre o último disco dos Almôndegas, Circo de Marionetes

Tô retomando daí, com uma tristeza grande: quando escrevi essa coluna anterior, o grande Zé Flávio não só estava vivo como brilhando no show da volta dos Almôndegas.

As próximas colunas vão dedicadas pra ele, no céu, com diamantes.

Pra retomar o fio da meada, você clica aqui (LINK) e vai pra lista com todos os mais de 100 textos dessa série – que foram a base do meu livro “Porto Alegre, Uma Biografia Musical – Volume 1”(Arquipélago Editorial, 2022). 

Daí, se tu quiser, vai lá e pega de onde a gente parou.

*

O fim dos Almôndegas

Kleiton, junho de 2023: 

Cada um, a sua maneira, destacava-se aqui e ali em função de seu talento, mas tudo era sempre decidido por todos, com votos de mesmo peso. Foi um belo exercício de democracia.
Nunca quis que o Almôndegas acabasse e quando percebi que a banda estava afundando, tomei o maior porre no baixo Leblon, com o Pezão e o João Baptista. 
Gilnei já estava fora, Kledir havia decidido ir para a Venezuela. Eu fui para a Europa a convite da Denise Cunha, que havia percebido que eu estava entrando em depressão. Essa viagem me jogou pra cima, uma bela terapia que durou 2 meses e 10 dias circulando pela Europa com o violão a tiracolo.
Quando voltei para o Rio, queria saber como as coisas andavam. João Baptista e Zé Flávio, em ritmo de espera, faziam alguns trabalhos para ganhar uma grana. Kledir seguia sumido. Decidi então retornar a Porto Alegre para terminar a faculdade (faltava um ano para ter o diploma, havia trancado a matrícula e era a última chance). Minha ideia era: enquanto a banda não retorna vou seguindo com o curso. Em nenhum momento nenhum de nós disse: a banda acabou. Odeio terminar com qualquer coisa, qualquer tipo de relação, e eu acreditava, em relação ao Almôndegas, que ainda teríamos oportunidades pela frente. Tanto que fui eu que plantei a ideia e organizei tudo para fazermos o show na Reitoria da UFRGS, pois morria de saudades e quem sabe tudo poderia recomeçar dali. 
Na verdade tornou-se uma despedida, porque aquele tempo parados e distantes, realmente esfacelou o grupo.

Como havia acontecido meia década antes com os roqueiros gaúchos do Liverpool, alguma essência da banda havia se perdido entre as areias cariocas. 

Quando Kledir finalmente volta da Venezuela, fica morando no Rio. Enquanto Kleiton se forma em engenharia em Porto Alegre, ele termina a faculdade de Composição & Regência na capital carioca.

Na viagem de Kleiton pela Europa ele fica amigo de Eugénia Mello & Castro, uma então produtora cultural que queria ser cantora. E é para ela – que se tornaria um grande nome da canção portuguesa – que, na volta a Porto Alegre, morando no apartamento da tia, ele compõe a valsa-fado Vira Virou

Conclui meio a força o curso de Engenharia na UFRGS, e aceita dirigir um show do então iniciante Musical Saracura (ainda sem Fernando Pezão, que entraria depois no Sara).

Por volta de março de 1979, com uma inquietação que não parava de coçar, convence os ex-parceiros a fazer pelo um show de despedida.

 Dias 30 junho e 1º de julho, o show O Adeus do Almôndegas lota o Teatro da Reitoria da UFRGS:

Porto Alegre, o RS, merecia ser o último a assistir Almôndegas. 

Fui uma espécie de faz-tudo naquele espetáculo. Consegui um pequeno patrocinador, negociei preços baratos em tudo para poder fazer o projeto, pagar todos os custos (tinha gente morando no Rio) e ainda ficarmos com algum no bolso, para continuar… (…) Foi a primeira e última vez que fui produtor/artista de um espetáculo. Nunca mais. (…) os caras envolvidos na parte de produção, o gerente que alugava o teatro, os técnicos me puxando pela manga pedindo mais dinheiro, quando eu queria subir no palco para me apresentar. (…) Era um misto de alegria e tristeza, (…) o ponto final de um processo de muitos anos. 
(…) 
Não lembro de nenhum mau-caratismo entre nós. Porque, antes de tudo, éramos amigos para caralho – e, na sequência, uma banda. (…) A relação entre nós, essa cola gigante da amizade que existe até hoje, é algo menos comum do que se imagina1

Ninguém acompanhou melhor a música de Porto Alegre nos últimos 40 anos do que o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca. Nessas quatro décadas, incontáveis vezes o tempo se encarregou de comprovar suas apostas e análises. 

Pois então. 

Juarez:

O Almôndegas foi talvez o grupo mais determinante da nova geração musical gaúcha. Foi o primeiro a gravar e o único que chegou a quatro discos, o primeiro a fazer sucesso em nossas rádios, o primeiro a se mudar para o centro do País, o primeiro a aparecer em programa nacional de televisão. Foi o Almôndegas o primeiro grupo urbano, jovem, a se voltar para temáticas regionais, rompendo um longuíssimo período de desencontro e preconceito. Foi o primeiro grupo a se alimentar de bases profissionais; foi o que teve, relativamente, mais público. Foi o único a procurar novos horizontes (…). 
Precursor é a palavra que sintetiza isso. E também é do Almôndegas a primeira música da nova safra gravada por intérprete de fora daqui: Haragana, a faixa de mais sucesso do disco de estreia de Fafá de Belém, executada por todas as rádios, desde o Amazonas. Mais: ainda do Almôndegas é a primeira música de autor gaúcho quer virou tema de novela, Canção da Meia-Noite, sucesso nacional2.

Ao contrário do que você provavelmente está achando, este texto não é de hoje. Mas sim, parte da matéria do jornal Zero Hora que anunciava o show do Almôndegas, no calor da hora de junho de 1979.

Segue Juarez, agora com um depoimento de Kledir:

Kledir: 

“(…) o grupo começou com uma transa muito romântica, um sonho quase juvenil. E de repente nos vimos vivendo no Rio de Janeiro, de repente tudo caiu por terra, tudo aquilo que a gente imaginava sobre carreira, sobre os ídolos, sobre a MPB, era apenas um sonho dourado. (…) Foram quatro anos de aprendizado, de descoberta, de consciência nova. O ´sonho dourado´ ficou pra trás. Hoje, como diz a letra de Circo de Marionetes, estamos mais ásperos.”3

Hoje, duas gerações mais tarde, reamaciado, Kledir reflete sobre a gênese do fazer almondegueano. Sobre, em última instância, a gênese do que hoje fazemos, os compositores de música popular em Porto Alegre que tem algum gesto em direção a uma geografia estética localizada neste ponto do mundo:

É interessante analisar o que os argentinos da nossa geração vinham fazendo na mesma época: Sui Generis, La máquina de hacer pájaros, Seru Girán… e continuou com Charly Garcia, Fito Paez, Leon Gieco, Pedro Aznar… quando descobri a nova música que vinha sendo feita do outro lado da fronteira fiquei fascinado, tive a sensação clara de que “somos todos hermanos” – é a mesma pegada, as mesmas influências, a mesma tribo.
Evoluções de rancheiras, chacareras, chamamés, guarânias… a música Mantra, do Zé e do Kleiton, é pra mim o melhor resultado desse caminho – na continuação, Vira Virou do Kleiton, por exemplo, é filha disso tudo.
Havia sempre em nós uma vontade de fazer a música gaúcha do nosso tempo, sem sermos saudosistas e nem iconoclastas, até porque não havia uma linha evolutiva que precisasse ser rompida e questionada. O que se fazia era natural para todos ali: usar os ritmos tradicionais da nossa terra, com uma pegada mais contemporânea, alinhada com a nova música popular brasileira que surgia depois dos festivais e com o pop/rock internacional (destaque para a influência fundamental da música dos Beatles e a identificação com Crosby, Still & Nash, a partir de Woodstock). E mais: as letras buscavam uma temática que refletisse o mundo e a época em que se estava vivendo, canções com sotaque gaúcho, sem necessariamente ter que falar das coisas do campo – tudo isso ia surgindo de maneira espontânea, mas vinha sempre acompanhado de reflexões, do fazer consciência. Ou seja: havia um pensamento inteligente por trás de tudo, sem perder a espontaneidade, a natureza orgânica do processo criativo
Viajei… acho que botaram alguma coisa nesse chimarrão.
Fui!
Bjs
Kledir. 
P. S. Ainda faltou ao Almôndegas desenvolver ritmos como o Chote, a Polca, o Bugio… talvez na próxima encarnação4

Kleiton:

Houve realmente nos anos 70 uma mudança profunda na música que se fazia em Porto Alegre/ RS que por sua vez gerou uma nova atitude diante de tudo. Essas duas transformações na verdade andaram de mão dadas, sendo difícil dizer o que veio antes: se nós estávamos mordidos pelo maravilhoso poder de saber transformar, ou se nós nos transformamos embalados pelas músicas e eventos que surgiam. O folclore onde nos apoiamos, em algumas realizações, era fluido e indefinido. 
Mesmo conhecendo o trabalho sério e intenso dos regionalistas, ao observar a história milenar do continente europeu, por exemplo, tudo aqui parecia um trabalho de principiantes, uma cultura ainda rasa e em construção. Por isso a expressão “reinventar a vida”, reinventando a música no sul, nunca foi mais apropriada do que no processo onde estávamos mergulhados, mais ou menos conscientes disso. Sabíamos que muito outros, em muitos outros lugares, em muitas outras épocas, já haviam vivenciado experiências semelhantes. Mas o prazer e o poder que se sentia em estar ali, no olho da uma “revolução” cultural, por medíocre que fosse, por provinciana que fosse, era gigante porque era algo nosso, apesar de todos as referencias anteriores nacionais ou internacionais que haviam feito parte de nossa formação. 
Quando viajei pela primeira vez para a Europa, logo depois da banda acabar, fiquei rodando por lá durante mais de dois meses. O último país por onde passei foi Portugal. Quando me dei conta, ao invés de passear, desfrutar bacalhaus, vinhos e cachopas, estava mergulhado pesquisando a cultura portuguesa, buscando a raiz da raiz da raiz… As conexões que nunca se acabam e nunca são suficientes. Mas constatava irremediavelmente, depois de tanto ouvir, de tanto buscar, de tanto comparar e analisar formas e expressões musicais, que nosso grande trunfo, por mais sofrimento que isso nos traga, é entender que nascemos em um lugar onde ainda há muito para se inventar. E que não estamos engessados como em outras regiões e culturas do planeta. Pas mal!
Um aspecto também que me chamou atenção em relação a menor evidência da música do sul, no panorama geral do país, é acreditar que em parte a culpa vem de nosso próprio despreparo ou ingenuidade, nas exigentes questões técnicas e até na imaturidade e falta de habilidade com instrumentos musicais. (…)
(…) nossos artistas precisavam “evoluir”. O Almôndegas esforçou-se muito para merecer as benesses de todo o prestígio e sucesso que veio em nossa direção. Havia algo, na época, de cegueira geral em relação ao como fazer, mas mesmo assim nossa experiência transformou-se em uma bem sucedida história de desbravadores solitários que resistiam unindo forças e desejos individuais. Quando chegamos ao Rio de Janeiro e as coisas começaram a dar para trás, ouvimos muitas vezes “vocês chegaram cedo demais”. Não há dúvida que Almôndegas estava a frente de seu tempo. Até lá na terra dos “deuses” da MPB isso foi reconhecido.
Hoje há um preparo melhor em todos os setores da música popular no sul, sobretudo pela maturidade e visão profissional dos novos artistas. Caíram os sentimentos de inferioridade – não vivemos no eixo Rio/ São Paulo – e mais que o processo global internacional, o sul conquistou esse direito com coragem e criatividade abrindo os olhos em direção a si próprio de forma irreversível.
Abraços,
Vamos juntos…
Kleiton5

*

P.S do Gilnei: A verdadeira história dos Almôndegas (falsa, é claro), mandada por ele pra mim em 2011, quando eu terminava uma dissertação em literatura brasileira sobre eles.  

  1. O Almôndegas era fake. Foi uma idéia do (pesquisador) Paixão Côrtes, que andava irritado com o marasmo do tradicionalismo na época.
  2. Quem gravava eram músicos de estúdio paraguaios.
  3. Nos shows, a gente dublava, que nem o Milli Vanilli.
  4. Kleiton e Kledir não são irmãos. O primeiro nasceu Bertolino Assis, em Capão do Leão, antigo distrito de Pelotas. O segundo foi batizado como Martín de las Nieves, em Puerto Juan Caballero.
  5. O Quico na verdade atende por Herbâneo Krina. E sua voz é parecida com a do Ney Matogrosso. Só que totalmente desafinada.
  6. O nome do Pery é Pery mesmo. Mas, o resto tem muitas versões. De qualquer maneira, é gente boa.
  7.  João Baptista. Esse só cortando a cabeça. É o único caso de um sujeito que casou porque estava sem cigarros (pede pra ele contar). Ele realmente é primo do Herbâneo e se chama Minerâneo.
  8. O José Flávio Alberton de Oliveira, aliás, Oliva Alberto Josezon de Flavieira, nunca tocou guitarra na vida. Ele sempre carrega gravações desconhecidas de Jimi Hendrix, Steve Ray Vaughan e muitos outros, que solta na hora certa (esse é seu único mérito).

Espero sinceramente ter ajudado no teu trabalho.
Seu criado para serviços levíssimos.
Gilnei, ou melhor, Eustáquio Leal Córdova (O Vero).


Notas

1 – E-mails de Kleiton Ramil, em 11/2012
2 – Caderno de Variedades do Jornal Zero Hora, edição de sábado, 30/06/79, página 5. Texto de Juarez Fonseca.
3 – Idem, ibidem.
4 – E-mail de Kledir, em 11/12/12
5 – E-mail de Kleiton Ramil, em 11/12/12.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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