Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXXII: Fernando Ribeiro 

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Capítulo CXXII: Fernando Ribeiro  Foto: Divulgação

Lembra dos festivais Musipuc, dos quais falamos lá atrás?

Só lembrando: eram a grande vitrine local desde o ano de 1972 – promovidos pelo Centro Acadêmico São Tomás de Aquino, da faculdade de Filosofia e Letras da PUC-RS. 

Pois a canção vencedora da sua primeira edição foi E Viva Fernando Pessoa, de Fernando Ribeiro e Arnaldo Sisson – mais Paulinho Buffara. Pra que se entenda o que isso significou: Vento Negro estava no mesmo festival, e perdeu pra canção de Fernando e Arnaldo. 

No ano seguinte, a dupla leva o segundo lugar, com Quando Viajar pro Norte (e aí, para que se entenda o horizonte de perspectivas desse momento, praticamente a única coisa a fazer era esperar mais um ano para mais um Musipuc).

Das cinco primeiras edições do festival, Fernando ganhou três, tirou segundo lugar em duas, e aí virou hors-concours e jurado. Fernando Affonso Fernandes Ribeiro (Porto Alegre, 28/09/1949 – São Paulo, 10/08/2006) tinha 23 anos e era a grande promessa da música de Porto Alegre. Arnaldo Sisson (Porto Alegre, 20/09/1950) tinha 22.

O flautista e baixista Ayres Pothoff, num lindo texto que escreveu sobre o amigão Fernando para a Parêntese, conta a gênese da dupla:

Fernando e Arnaldo se conheceram no colégio primário do IPA. O pai do Arnaldo costumava dar carona para o Fernando pois moravam perto, na rua Cel. Bordini, em Porto Alegre. Segundo Arnaldo, o Fernando era tipo malandro, casaco de couro, cigarro, bom na bolinha de gude, e por outro lado ele era retraído, gostava de ler, tipo crente. 

A parceria musical entre eles começou na praia de Imbé, quando eram adolescentes. Num desses encontros, chapados, Fernando mostrou a canção “Beijos Noturnos”, que tinha feito em parceria com sua irmã Bete. A música chamou atenção de Arnaldo por ser, segundo ele, “lindamente pré-tropicalista”, e o levou a pensar em escrever uma letra para que Fernando musicasse. 

Dali em diante, Fernando & Arnaldo seriam a versão gaúcha dos inseparáveis (nos anos 1970) João Bosco & Aldir Blanc.

Logo depois desse primeiro Musipuc, acontece I Mostra de Música de Porto Alegre, idealizada pelo autor de Vento Negro, o então professor José Fogaça. Nela, Fernando foi novamente destaque, como autor de um quarto das canções interpretadas.

Também, pudera: fazia uma música sofisticada, cantava bem, tocava um violão de respeito e ainda tinha a parceria afiada de um dos melhores letristas do pedaço. Logo se juntariam ao time dois dos melhores instrumentistas da época (e de décadas seguintes): o violonista e arranjador Toneco e o flautista e baixista Ayres Pothoff. 

Ele, que começara estudando violão clássico na adolescência, só resolvera fazer música popular a partir de Arnaldo, que insistiu muito para que eles começassem a escrever canções. E com um objetivo claro: mandar pro Musipuc.

Ayres:

O processo de trabalho era curioso. Arnaldo deixava as letras das músicas na caixa de correio da casa de Fernando, que o chamava para ouvir quando estivesse pronta.

Arnaldo (citado por Ayres):

Nunca aconteceu um ‘vamos falar disso ou fazer desse modo porque o fulano fez assim’. O Fernando conseguia musicar as letras porque se preocupava com o significado e com a sonoridade, ele estudava um jeito de declamar antes de começar a musicar

Por pelo menos meia década, a dupla será a maior referência da MPB do estado, com shows frequentados não só pelo público “comum”, como também por grande parte de quem fazia ou iria fazer a música porto-alegrense desses anos. Era a maior referência dessa geração.

O primeiro deles acontece em abril de 1975: Fernando Ribeiro em Concerto. O palco escolhido é o pequeno teatro do DAD, Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Uma única apresentação. Mas caprichadíssima para os padrões da época: dirigido por Luciano Alabarse (até hoje um nome respeitado das artes cênicas da cidade), tinha luz de João Acyr e cenário. Os arranjos eram do Toneco, que tocava violão com Fernando, acompanhados por Ayres na flauta, Beto Roncaferro no baixo e Neusa Campos no piano.

Alabarse, em 2024:

Fernando era um cara muito carismático.  Forte e doce ao mesmo tempo. Éramos um grupo onde sua liderança era incontestável.

Desses primeiros dias de sonho e trabalhos repartidos, lembro dos ensaios na garagem da casa de minha vó Joana. Aqueles músicos talentosos trabalhando na casa de minha família, ensaiando duro.

Acompanhei de perto os ensaios. Depois em outros lugares, como o Clube dos Flautistas. As negociações para o primeiro disco… São memórias boas, bonitas. E o Fernando Paulista sempre mandando notícias, me hospedando em sua casa numa outra fase da vida dele, dono de estúdio. Sempre amoroso, forte e talentoso. Com uma força arrebatada cantando as canções do seu repertório.

Mas calma, que ainda falta pro primeiro disco. Quando desse primeiro show nem havia ainda as gravações feitas no estúdio B da Rádio Continental nem os shows coletivos Vivendo a Vida de Lee – onde Fernando era um dos destaques. Nada mais justo, afinal fora um dos artistas que mais impressionara o radialista Julio Fürst, o Mister Lee, que começou todo esse processo quando foi júri do quarto Musipuc, em junho de 1975.

Das músicas gravadas na rádio Em Mar Aberto (Fernando / Arnaldo / Toneco) e Estado de Espírito emplacaram entre as mais pedidas da emissora. A frase tudo depende do meu estado de espírito vira um bordão entre os jovens de Porto Alegre.

E aí, muitíssimo mais conhecido, Fernando monta no Teatro de Câmara seu segundo show: Allegro com brio.

Ayres relembra:

Controvertido nome para um espetáculo nada alegre – mas com muito brio.

No cenário, cordas emporcalhadas enforcam figuras humanas suspensas, que chocam o público. Atores que representam o sofrido povo da América Latina carregam cartazes com frases de efeito: “A Liberdade é como a maior das sinfonias…só não existe quem as harmonize…talvez por incapacidade”.  A opressão, o medo e o desespero pairam no ar. As canções – muitas delas gravadas posteriormente no disco O Coro dos Perdidos – são musicalmente fortes, e algumas são cantadas como um berro, um pedido de socorro.

Fernando impressionava por sua força interpretativa. Sua alma estava sempre à disposição da canção. Havia (…) uma verdade expressa na sua voz. 

E aí, logo depois dos Almôndegas e de Hermes Aquino gravarem seus discos de estreia, em 1976 vêm o convite da poderosa EMI-Odeon para que a terceira das maiores atrações dos Vivendo a Vida de Lee gravasse seu LP. Milton Miranda, um dos diretores da gravadora, veio a Porto Alegre especialmente pra conferir os concertos feitos no Teatro Leopoldina dias 30 de abril e 1 de maio.

Em outubro começam as gravações.

Aí quem conta é o o jornalista Emílio Pacheco, no encarte da reedição em CD do disco, que saiu pelo selo Discobertas em 2011:

Contrato acertado, decidiu-se que o músico gaúcho ficaria sob a coordenação do diretor Mariozinho Rocha, responsável pelos medalhões do cast, como Milton Nascimento e Egberto Gismonti. Ainda que parecesse bom demais para ser verdade, o estreante receberia um tratamento VIP reservado aos raros talentos.

Nascia ali um clássico esquecido da discografia porto-alegrense: Em Mar Aberto.

Ayres:

(Fernando) sabia que estava levando para o Rio o sonho de muitos e não queria desapontá-los, assim como, igualmente, não pretendia desapontar a si mesmo. Se acontecesse, como aconteceu, voltaria para casa sem remorsos.

O homem que estava em todas, Juarez Fonseca, entrevista Fernando e Arnaldo às vésperas da viagem para o Rio pra gravar. A manchete da matéria publicada no jornal Zero Hora é 

Fernando Ribeiro e Arnaldo Sisson: “O fundamental é a gente nunca sair daqui”. 

A expectativa de Fernando era alta:

– Acho que esse elepê se sairá bem, o segundo ainda mais e o terceiro muito melhor. O Brasil vai ter que existir na palma da minha mão, constantemente. (…) Mas o fundamental é nunca sair daqui. Que a gente passe um ano viajando pelo Brasil, mas que continue morando em Porto Alegre, pelo amor de Deus! Do contrário, nunca se forma droga nenhuma.

Diariamente Fernando dava relatórios por telefone para o programa de Julio Fürst na rádio Continental.

No texto pra revista Parêntese, Ayres define o repertório desse primeiro disco como existencialista, com as letras fortemente influenciadas por Fernando Pessoa, paixão de Arnaldo e Fernando.

Apesar de todo o status prometido pela gravadora – um dos melhores estúdios do Rio de Janeiro, os melhores instrumentistas e arranjadores cariocas e até a mesma orquestra de cordas que tinha acabado de gravar nos discos de Egberto Gismonti e Milton Nascimento –, Fernando bateu pé e levou junto Toneco e Ayres.

Deu muito certo. Além dos produtores Milton Miranda e Mariozinho Rocha terem mantido vários arranjos de Toneco, ele toca vários dos violões. E Ayres, além da flauta, divide os baixos do disco com ninguém menos que Luizão Maia, de igual pra igual, por sugestão do maestro arranjador Eduardo Souto Netto. Entre os cariocas convocados, tem Paulinho Braga na bateria, Gilson Peranzetta no piano, Octávio Burnier nas guitarras e violões, e os vocais do Trio Esperança + Golden Boys. 

Tinha excelentes duzentas horas de estúdio pra fazer tudo.

Dava e sobrava.

A música-título tinha tirado segundo lugar no IV Musipuc, no ano anterior. Mas o disco foi puxado pelo maior sucesso da carreira de Fernando, o samba de métrica muitíssimo peculiar Ultimamente (Fernando / Arnaldo): 

 

Ultimamente eu tenho andado
Um pouco preocupado comigo
Até parece que alguma coisa vai acontecer 

Meu violão decididamente
Está de mal comigo e desafina
Bem na hora do samba canção 

E as mulheres que antigamente
Me pareciam tão belas
Hoje não passam de esquecidas e frias donzelas 

É porque tá mais pra urubu
Do que pra colibri
E tá mais verde do que pra maduro 

Um sol escuro, vou fugir daqui 

Ultimamente eu tenho andado
Um pouco preocupado comigo
Até parece que alguma coisa vai acontecer 

Mudei o penteado, comprei um carro novo
Troquei de apartamento, mas essa dor
Não parece que vai acabar 

Comecei a sonhar alto com muitos milhões
E vi meu nome em letras garrafais
Em todas as colunas sociais

E os bons ventos me levaram a acreditar
Que na casa onde mora o bem
Provavelmente também pode morar o mal 

 

O resto do repertório era tão eclético quanto era a MPB desses anos 1970. Tem – além do já citado samba – as quase psicodélicas Não Demora e Estado de Espírito; o samba-canção abolerado Pedra Sobre Pedra (Fernando / Arnaldo / Toneco, com a frase já faz tempo que é mentira / a nossa sede pelo novo); os boleros Imagina, Olhos de Freira e Hora Imprópria – de onde sairia o título do disco seguinte (Coro dos Perdidos):

 

Um dia vou fazer uma canção de amor
Livre, tola e debochada
Os perdidos vão me fazer coro
E na hora imprópria vou dizer seu nome
Junto a um palavrão

 

Mais as baladas Ocidente e Lucidez; a quase-milonga Aqui e Ali (Fernando / Arnaldo/ Toneco) – um raro aceno regional de Fernando, que pouco dialogou com os ritmos do sul, ao contrário da maioria dos seus companheiros gaúchos de geração; e dois momentos dramaticamente épicos: Delírio e a canção-título Em Mar Aberto (ambas Fernando / Arnaldo / Toneco).

 

Já não quero a calmaria
A revolta me queima
Antes ser como o barco que aderna
Lutando nas vagas, às vésperas do porto

Jamais a calma do cais seguro
Curvado com medo do tempo
Meu lar é a escuna
Que em meio à noite, em mar aberto,
Despreza a espuma
Que acaricia os rombos no casco

 

O show de lançamento acontece de 18 a 20 de março de 1977, no (grande) teatro da Assembleia Legislativa. Lançamento sem LP, porque ele a gravadora atrasou o lançamento e ele só chegou às lojas semanas depois. 

 


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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