Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXV: Mister Lee

Change Size Text
Capítulo CXV: Mister Lee

Em junho de 1975 – Dois meses depois do encerramento das Rodas de Som, acontece a quarta edição do Musipuc. Nela, brilha mais uma vez Fernando Ribeiro e aparecem para o grande público Status 4, Inconsciente Coletivo, Léo Ferlauto e Gilberto Travi & Cálculo IV – batizado em homenagem a cadeira da faculdade de engenharia onde Gilberto sistematicamente tomava pau. Todos – exceto Fernando – transitando entre o rock, o folk e o regionalismo, com doses variadas de ironia e humor e quase nenhuma ligação com a dita MPB. Era como se houvesse uma ligação direta entre Beatles e Noel Guarany. 

E não foram as Rodas de Som, mas sim o IV Musipuc que revelou o efervescente cenário local para o homem certo na hora certa. Júlio Fürst[1], figura-chave no rádio porto-alegrense deste momento, participava do júri. E já da primeira noite saiu muito impressionado com palco e plateia. Quando aconteceu a final, ele deu um jeito de gravar, ao vivo. Em seguida, falou com a direção da Rádio Continental – onde desde abril, de segunda a sexta, 22h, ele apresentava Mister Lee in Concert, um programa criado pra lançar a versão brasileira das calças Lee. 

A proposta de Júlio tinha tudo pra não ser aceita.

Vamos ao contexto.

Foi uma feliz conjunção de coisas. A Lee estava fechando uma parceria com as gaúchas lojas Renner para fabricar e lançar nacionalmente seus produtos, objetos de desejo de 11 entre 10 jovens da década de 1970. Até então, calças ou jaquetas Lee só se conseguia trazendo de fora do País – legal ou ilegalmente. 

Contrataram a agência MPM para pensar a campanha. E foram eles que sugeriram a criação de um garoto-propaganda, o tal Mister Lee. Júlio foi convocado para encarná-lo. 

Baterista desde os anos 1960, quando tocava rock na banda The Rockets ou bossa nova com um trio de piano, baixo e bateria, Júlio era então dono da Mozart Discos – loja que, apesar do nome, tinha seu foco nas novidades nacionais e internacionais da música pop e do rock, e que foi o primeiro lugar para se comprar LPs fora do centro da cidade (ficava na esquina da 24 de Outubro com a Dr. Timóteo, bairro Auxiliadora). 

Mantendo a Mozart Discos, ele começara sua carreira radiofônica na Rádio Pampa, em março de 1972. Lá, assinava a programação – com ênfase no lado menos comercial do rock daquele momento – e produzia e apresentava Soul Power, onde encarnava Julius Brown, um DJ “negro” que apresentava o melhor do soul e do funk estadunidenses.

Em 1973 a Continental, rádio jovem por excelência, compra seu passe. E o personagem segue com tanto sucesso que se torna o primeiro DJ de uma festa de black music em Porto Alegre – os bailes Black Power Show que aconteciam no Floresta Aurora, clube da comunidade negra.

(cantado por Hermes Aquino) – Olha que já são 10 da noite. Julius Brown vai começar… O som é uma viagem, Mister Julius Brown está no ar!

(falado por Júlio Fürst) … – Pela superquente Con-ti-nen-tal! Comunicação tropical! Julius Brown e as magníficas do soul of America! [2]

Mesmo com todo o sucesso, desde 1º de abril de 1975 Júlio não era mais Julius Brown. Ele agora era… Mr. Lee, mais branco impossível: chapelão de caubói, botas e calça Lee. O programa tocava única e exclusivamente música country – afinal, Lee era calça de cowboy

Só que, em seguida, aconteceu o que contamos acima. Júlio ficou doido com o que ouviu no Musipuc.

O problema é que não havia como tocar aquela turma nova na rádio, pelo simples fato de que ninguém ali tinha disco gravado (fita demo então, nem se sabia o que era). 

Mas Júlio não se micha.

O Almôndegas já rodava na programação da rádio, tanto com gravações feitas no próprio Estúdio B da emissora quanto com seu primeiro LP, lançado em abril (é possível inclusive que tenham sido usados como argumento). Mas eram só eles. Mais ninguém. Aí entra no jogo uma série de influências internas: os redatores da rádio, Wanderley Falkemberg (nosso velho conhecido) e Emílio Chagas (também produtor de shows), ajudam a pressionar a chefia. Logo o trio, com Anele, consegue liberar o Estúdio B para que toda aquela turma começasse a gravar sua produção. 

Os primeiros chamados são os vencedores do Musipuc, já que o registro ao vivo do festival não tinha ficado bom. Em pouco tempo tinham passado pelo estúdio Almôndegas, Inconsciente Coletivo, Fernando Ribeiro, Gilberto Travi & Cálculo IV, Zezinho Athanázio, Mantra, Bobo da Corte, Byzarro, Nelson Coelho de Castro. 

Sempre gravados pelo Anele, que contou num post de Facebook, em 2012:

Era com somente um microfone Neumann, e os guris espalhados pela sala de acordo com o volume do instrumento. Fazia-se a captação numa máquina de dois canais Sony – mais tarde, a Globo [dona da rádio Continental] mandou uma Ampex de quatro canais. As músicas rodavam no ar em cartuchos. A console era aquela tradicional de rádio Gates, originalmente mono, que foi adaptada para estéreo invertendo as chaves. O grande trunfo do operador era um equalizador acoplado com o padrão da Neumann que o Egon Alsher da Cotempo e o Bertoldo Lauer Filho montaram. Era só dar uma giradinha e a equalização vinha.

Agora só faltava organizar a coisa.

Quem conta a história é Lucio Haeser, no seu excelente livro Continental – A Rádio Rebelde de Roberto Marinho:

Em junho, (Júlio) procura a administração da Lee. Fala com o diretor de marketing, Américo Bender, responsável pela entrada da marca no Brasil, e diz: “O negócio é o seguinte, cara: nós vamos botar música gaúcha. Tá dando a maior repercussão, o maior pedal, telefonema, audiência, uma resposta altamente positiva”.

Américo ri e retruca: “Tu tá louco? Nós estamos fazendo um programa de música country americana pra vender calça Lee e tu quer vir com música de Porto Alegre. Tu enlouqueceu?”

Júlio não se intimida com a primeira negativa de Américo. Considera-o um sujeito de visão e oferece mais argumentos. “Lembrei que a Lee promovia concertos nos Estados Unidos e fazia até uma cadeia de rádio pra transmitir esses concertos costa a costa, fazia de três em três meses. E reunia caras como B. B. King, Bob Dylan, só feras, pra fazer os concertos patrocinados pela Lee”.

A ficha cai e Américo também se entusiasma: “Se tá dando pedal, daqui a pouco vamos fazer um concerto desses”[3].

Em pouco tempo, a segunda metade do programa de Mister Lee – a que ia ao ar das 22h30 às 23h – seria exclusivamente ocupada por artistas locais. 

E o sentimento geral dos ouvintes podia ser assim resumido: eles são bons, eles são nossos, e falam como a gente. Podiam ser roqueiros como o Byzarro, Mantra ou o Bixo da Seda, folks como o Utopia, Hallai Hallai ou Inconsciente Coletivo, emepebistas como Fernando Ribeiro, Hermes Aquino ou Zezinho Athanázio. Ou ainda inclassificáveis como Gilberto Travi e Cálculo IV ou o Em Palpos de Aranha. 

Almôndegas, já com disco, mais que todos. 

Kledir:

Foi uma emoção muito grande ouvir nossas músicas tocar em uma rádio para milhares de pessoas pela primeira vez. É indescritível a sensação. Esse momento foi um dos mais lindos que vivi. Além, naturalmente, do grande prazer pessoal que sentia e o incentivo para continuar com a música, eu via os olhos das pessoas do sul brilhando com aquilo de ‘é gente daqui’ fazendo música boa, moderna. Virou um movimento que mudou o Rio Grande para sempre[4].

Em pouco tempo Leonardo Ribeiro, Inconsciente Coletivo e Hermes Aquino também teriam seus discos. E aí houve mês em que 80% da programação geral da Continental AM foi ocupada por músicos gaúchos. O iniciante Nelson Coelho de Castro lembra bem (também no livro de Lucio): 

Quando então o Júlio Fürst anunciava Versos de Proa, de Nelson Coelho de Castro, (…) era uma explosão e ao mesmo tempo um xiiiss – pedindo silêncio – para escutar a música. Logo após a música, outra explosão, e comemorávamos como se fosse um gol, tomávamos cerveja e ficávamos até de madrugada comentando as músicas dos outros músicos e compositores… 

Pueril, humano, demasiado humano, demasiada província, demasiado começo, demasiada saudade desta fragilidade amadora e sincera.

Bebeto Alves, menos romântico:

A Continental contextualizou isso tudo. Primeiro, porque estavam existindo várias coisas na cidade, e que ninguém exatamente tomava conhecimento de um e de outro. Não se sabia. Então a Continental, de uma maneira, além de ter contextualizado, ela formatou um movimento musical que estava existindo na cidade. Eu não sabia que existia o Fernando Ribeiro, o Inconsciente Coletivo. Eu conhecia o que tava mais próximo. Sabia que existia Carlinhos Hartlieb, que era próximo de mim culturalmente.

Zé Flávio, compositor do Almôndegas e integrante do Mantra e do Palpos de Aranha:

Um belo dia eu digo: ‘Bah, cara, eu tenho que gravar também”. Fui lá, procurei o Júlio Fürst – o Mister Lee -, o Anele… e começamos. O Mantra começou a gravar. E a gente gravava com uma certa regularidade, sempre abastecendo a rádio. Sempre tinha alguma coisa.

 (…) A primeira vez que nós fomos gravar lá foi um absurdo. (…) o Mantra chegou e gravou umas 10. (…) um disco inteiro. (…) O Anele deixava rolar: ‘Vai tocando que eu vou gravando’.

(…) Tudo era movido a uma grande amizade. Tu entrava na rádio como se estivesse entrando na tua casa. Eu vivia lá naquela discoteca, fuçando, conversando.

E então os concertos. 


Notas:
1 – Nascido Júlio Cézar Fürst, em Porto Alegre, dia 08/10/49.
2 – Tirado de uma gravação cedida por Lucio Haeser.
3 – HAESER, Lucio. Continental: a Rádio Rebelde de Roberto Marinho, Florianópolis: Insular, 2007, p. 189-190.
4 – Idem, p.191. Itálicos meus.


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.