Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CXIV – 1975: O Ano da virada

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Capítulo CXIV – 1975: O Ano da virada O show de estreia: Bixo da Seda esgualepando o pequeno teatro. E o pessoal literalmente invadindo o palco

Talvez mais do que em qualquer outra capital brasileira, certamente mais do que em muitas, a pergunta que persegue os artistas de Porto Alegre desde, pelo menos, o Partenon Literário é: o que nos torna o que somos? O que (nos) imaginamos que nos torna uma comunidade?

Centremos a pergunta na canção popular: em que momento – em que quando, em que onde – começa a fazer-se, em Porto Alegre, uma música que não poderia ter sido feita em nenhum outro lugar?

Em que momento há, em Porto Alegre, um sistema de música popular? Sistema do jeito que o professor Antonio Candido pensava para a literatura:

  1. Autores criando; com a consciência de fazer parte de uma ou mais tradições (internacionais – rock, pop -, nacionais – MPB – e regionais – milongas, xotes e chimarritas); 
  2. Produzindo arte para um público concreto e significativo, que anseia por e recebe essa produção; 
  3. Com a parte central do processo já desenvolvida em emissoras de rádio, teatros e gravadoras.

Minhas apostas: 

Me parece que isso tudo só foi acontecer no ano de 1975 (anteontem), e com o ápice do processo sendo os Almôndegas. O grupo originalmente formado por Kleiton e Kledir Ramil, Quico Castro Neves, Gilnei Silveira e Pery Souza misturou pampa, Tropicália, Beatles, folk, rock e Lupicínio Rodrigues. 

Gravou – e vendeu, o que é importante – muitos discos, teve música em trilha de novela da Rede Globo, fez shows importantes e prestigiados, tornou-se conhecido fora da cidade e do estado. Era a ponta mais bem acabada (e/ou mais domesticada, depende do ponto de vista) de uma geração que desde uns poucos anos antes buscava essa síntese – realizando o que, mais uma vez parodiando o professor Candido, a gente poderia chamar de manifestações musicais (mas não de sistema): Carlinhos Hartlieb, Claudio Levitan, Grupo Pentagrama, Grupo Utopia. Ou o primeiro Raul Ellwanger.

(Para o professor Antonio Candido, em fases iniciais, 

é frequente não encontrarmos esta organização (o sistema), dada a imaturidade do meio, que dificulta a formação dos grupos, a elaboração de uma linguagem própria e o interesse pelas obras. Isto não impede que surjam obras de valor, – seja por força da inspiração individual, seja pela influência de outras literaturas. Mas elas não são representativas de um sistema, significando quando muito o seu esboço. São manifestações literárias.)

Mas o ano de 1975 não foi só isso. Representou para a música popular da capital do Rio Grande do Sul, em diferentes níveis de leitura, muito mais que a explosão do Almôndegas.

Se a gente pensar na classe média letrada da cidade, ok: talvez seja apenas o ano dos dois primeiros discos do grupo. 

Para quem fosse um pouco mais interessado em música, a gente pode acrescentar que é em 1975 que a rádio Continental AM, graças ao que hoje se chamaria de “vontade política” do seu radialista Júlio Fürst, começa a tocar massivamente músicos locais, gravados no próprio estúdio da emissora – e a reunir pequenas multidões em shows coletivos chamados Vivendo a Vida de Lee.

Mas se a gente aprofundar e chegar na figura do porto-alegrense “antenado” daqueles anos, contatado com o underground – então chamado “udigrudi” – 1975 era mais.

Eram as Rodas de Som do Teatro de Arena, coordenadas por Carlinhos Hartlieb (hoje se diria “com curadoria de”), apresentando novos e novíssimos artistas para públicos de pouco mais que uma centena de pessoas, madrugadas adentro. 

Era a quarta edição do festival da PUC, o Musipuc. 

Eram os shows do Clube de Cultura. 

Eram até mesmo as mudanças no festival de música regional Califórnia da Canção (em Uruguaiana, fronteira com Argentina, mas de reflexos importantes na capital).

Tudo isso: um sistema.

Para o professor, há um sistema formado quando temos 

um conjunto de produtores (…), mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos outros.

* * *

Estávamos no Brasil de Ernesto Geisel. A ditadura civil-militar entrando na sua segunda década, mas desde o ano anterior sem o mais sanguinário dos presidentes militares, Médici.

Na prefeitura, o prefeito nomeado pela ditadura, Guilherme Socias Villela – que ficará no posto até 1983 –, inauguraria o Parque Marinha do Brasil e o Centro Municipal de Cultura. A cidade acabara de ultrapassar a cifra de um milhão de habitantes.

1975 foi o ano da virada. Que começou com As Rodas de Som do Arena.

* * *

Mais do que rodas, janelas. Coordenadas por Carlinhos Hartlieb, num clima totalmente cult muito antes da palavra chegar a estas terras, as Rodas reuniam “o pessoal” no mítico teatrinho criado por uma turma de esquerda, quase secretamente, no porão de um prédio do viaduto da Borges de Medeiros, no centro da cidade.

Já na estreia, dia sete de março, o show do Bixo da Seda deixava claro o quanto um determinado segmento da população jovem ansiava por uma janela assim: numa lotação de 120 pessoas havia 240 se espremendo, mais as mil que ficaram nas escadarias do viaduto, na vã esperança de entrar.

Começava um novo capítulo na música da cidade. 

O projeto se sedimenta com a fórmula Grupo Mais Consagrado + Artista ou Banda Iniciante – sempre à meia-noite de sexta-feira. 

Nesse esquema, apresenta-se gente tão diferente quanto – na mesma noite! – o conjunto regionalista Os Tapes e o roqueiro Mutuca. 

Nesse esquema, as noites eram sempre abarrotadas.

Nesse esquema estrearam compositores futuramente bastante importantes na cidade, como Jimi Joe, Zé Caradípia e Nelson Coelho de Castro. 

Jimi lembra que, ao lado de Carlinhos, havia também… 

…um cara chamado Nelson Rolim, que morava num edifício ali na praça do antigo cine capitólio, e (acho) era filho de um coronel do exército. Foi justamente o nelsinho, naquela fase Geisel pré-abertura, que deu uma “esquerdizada” nas rodas de som que (…) eram legais, mas era uma coisa rock’n’roll bixo grilo. O Nelsinho começou a dar espaço pra caras que faziam uma coisa mais digamos “engajada”, tipo canções de protesto – como eu, já seguindo os passos de mestre Dylan. Acho que com o Carlinhos a coisa detonou mas foi com o Nelsinho que a coisa ficou mais política, começou a haver uma participação maior de músicos e grupos ligados ao movimento universitário, aquela coisa toda. Menos bicho-grilice e mais cuca, saca?

As noites, escreveu o jornalista Juarez Fonseca, testemunha ocular e auditiva, terminavam sempre em celebração. Nas quais, por exemplo, o grupo Utopia – de Bebeto Alves, Ricardo Frota e Ronald Frota –, passou a ser cultuado como os Beatles no Cavern Club.

E conclui Juarez:

Ninguém imaginava que a cidade abrigasse tantos jovens músicos enrustidos.

Foram apenas oito semanas – até 25 de abril, quando o projeto encerra com um show do próprio Carlinhos. Pela sua importância histórica, parece que foram meses (ou anos) de público surpreso, não imaginando que houvesse tanta coisa sendo feita quase secretamente pela cidade, esperando um palco para florescer. Na verdade, ninguém imaginava. No dia da despedida, Carlinhos deu uma definidora entrevista para Juarez:

Nunca houve esse tipo de promoção antes. Fora isso, muito mais importante é o fato dos músicos se conhecerem lá, porque não havia um lugar; ninguém se transava. Só se ouvia falar em fulano aqui, fulano lá, fazendo isso e aquilo. E dentro do Arena já surgiram muitas associações de músicos, gente que trabalha sozinha e que de repente, pelo conhecimento, passou a pensar em formar um grupo, coisas assim. Isso estimula o trabalho de todos. (…) Tudo isso já é novo, mas o resultado só vai se poder avaliar daqui a algum tempo

Estava certíssimo.  


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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