Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo CV: Kleiton & Kledir

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Capítulo CV: Kleiton & Kledir

Com o fim dos Almôndegas, a solução foi meio natural. 

Afinal, da formação original da banda só havia sobrado os irmãos Ramil. Já tava pronta a dupla. Eles é que não sabiam.

Mas voltemos a 1960.

Kleiton, sete anos, Kledir, seis, atuam pela primeira vez juntos. Os pequenos Ramil cantam Maringá no colégio Assis Brasil de Pelotas, onde Dona Dalva Ramil dava aulas e os meninos estudavam. 

Era Noite de São João.

Kledir (com música do primo Pery Souza):

Era Noite de São João. Eu saía com meu irmão de bigode de rolha, de chapéu novo em folha, brim curinga e alpargata. Toda Noite de São João eu sonhava em pegar na mão de uma prenda bonita de vestido de chita e maria-chiquinha.
Soltando foguete, pulando fogueira: era Noite de São João.
Toda Noite de São João a quermesse era um festão: bendeirinhas no arame (de papel celofane), pau-de-sebo e de-fita. Era Noite de São João, e depois de comer pinhão vinha pé-de-moleque, puxa-puxa e um pileque de caninha ou de quentão. 
Era Noite de São João, eu voava que nem balão.
Namorava as estrelas – que são primas-terceiras e afilhadas de São João.

Cinco anos depois, Kleiton escreveria sua primeira música: A Bruxa, que a futura dupla gravaria já no terceiro milênio, no disco infantil Par ou Ímpar.

Enquanto os guris cresciam, o talento musical da família aparecia… 

Só que não neles, mas em Kleber, o primogênito dos quatro guris e duas gurias, três anos mais velho que Kleiton. 

Em 1969 ele classificou três músicas na segunda edição do festival pelotense Samba Jovem. Kleiton e Kledir fizeram coro na apresentação. E as canções foram então gravadas no primeiro LP lançado em Pelotas – duvida? Tá escrito na capa! 

Como cada autor só podia concorrer com duas músicas no festival, uma delas, chamada Em Tempo, foi inscrita no nome de Klayton (sic). Ficou em segundo lugar e é o primeiro registro das vozes da dupla.

Quer ouvir?

No ano seguinte os irmãos se mudavam para Porto Alegre pra estudar. Foram morar no apartamento que até hoje é da família, no bairro Rio Branco quase Bom Fim. Na época, ali viviam a Vó Ramil e a Tia Didi. Amontoando mais dois, Kleiton foi fazer cursinho pra entrar na faculdade de Engenharia da UFRGS. Kledir foi fazer o último ano do científico no Julinho, o Colégio Júlio de Castilhos.

Na terceira edição do festival Samba Jovem, em 1970, Kledir classifica duas canções, que interpreta com quase um pré-Almôndegas: ele, Kleiton e Pery (um quarto futuro Almôndega, Quico Castro Neves, também entrou com duas músicas no mesmo festival). 

Os festivais, como vimos no volume anterior, estavam em alta. Então, no mesmo ano, em Porto Alegre, Kleiton e Kledir inscrevem uma canção escrita pela dupla, Escoteiro Boca Aberta, no Festival do Colégio Israelita. Tiram terceiro lugar. Quem mais estava concorrendo no mesmo festival? Quico e Pery.

Aí, cronologicamente, entra o capítulo anterior: a história dos Almôndegas.

(Quer ir espiar?)

* * *

Voltou?

Então retomemos dali. 

Estamos em dezembro de 1979.

O cenário é o Festival de Música Popular promovido pela Rede Tupi de Televisão em São Paulo, onde surgiram talentos tão díspares quanto Arrigo Barnabé e Oswaldo Montenegro. 

Pois ali estão nossos rapazes, cantando um divertido vanerão estilizado, muito original e um tanto quanto almôndega: Maria Fumaça

Kleiton estava morando em Porto Alegre, Kledir no Rio, mas tinham escrito juntos a canção, e a inscreveram também juntos. Quando souberam que ela tinha sido classificada, precisavam decidir com que formação e com que nome iriam se apresentar. 

Foi aí que lembraram como Dona Dalva os chamava pro almoço: 

Kleiton e Kledir, tá na mesa!

Tava batizada a dupla. 

Com uma música daquelas, não podia ter erro: era praticamente um curta-metragem passado num tempo nada distante, em que se andava de trem pelos interiores do Rio Grande do Sul (e do Brasil, o que tornava tudo muito mais decodificável): 

Essa Maria-Fumaça é devagar, quase parada!
Ô, seu foguista, bota fogo na fogueira que essa chaleira tem que estar até sexta-feira na estação de Pedro Osório, sim senhor! 
Se esse trem não chega a tempo vou perder meu casamento!
Atraca, atraca-lhe carvão nessa lareira – esse fogão é que acelera essa banheira!?! O padre é louco, e bota outro em meu lugar!

Se chego tarde não vou casar,
Eu perco a noiva e o jantar.
A moça não é nenhuma miss,
Mas é prendada e me faz feliz.

Seu pai é um próspero fazendeiro, 
Não é que eu seja interesseiro, 
Mas sempre é bom e aconselhável
Unir o útil ao agradável…

(...)

Esse expresso vai a trote, mais parece um pangaré! 
Essa carroça é um jabuti com chaminé! 
Eu tenho pena é de quem segue pra Bagé…
…seu cobrador, cadê meu troco, por favor?!?

Dá-lhe apito e manivela, passa sebo nas canelas!
Seu maquinista eu vou tirar meu pai da forca! 
Por que não joga esse museu num ferro-velho e compra logo um trem moderno japonês?
No dia alegre do meu noivado, pedi a mão, todo emocionado.
A mãe da moça me garantiu: – É virgem, só que morou no Rio…
O pai falou: – É carne de primeira, mas se abre a boca só sai besteira…
Eu disse: – Fico com essa guria, só quero mesmo pra tirar cria!

Sim, outros tempos.

Não ganham nada na premiação final, mas a simpatia da canção e da dupla é tamanha que levam uma menção honrosa e voltam pra casa bem felizes, certos de que as gravadoras agora iam fazer fila na porta pra contratar a dupla. 

Só que o tempo vai passando…. e nada!

Gravam então uma fita demo e começam a ligar pros amigos que podiam dar uma mão. 

Nada. 

O passo seguinte foi bater de porta em porta. E aí estavam quase assinando um péssimo contrato com a Polygram quando, através do empresário do MPB-4, chegam na gravadora alemã Ariola, que naquele momento entrava no Brasil montando seu elenco de artistas com pompa, circunstância e dinheiro. 

Acertam excelentes condições. 

O começo é abençoado por um simpático apadrinhamento feito não só pelo empresário como por todo o MPB-4 – o quarteto, então popularíssimo, que havia gravado a pouco a canção Circo de Marionetes, escrita pelos dois. 

Eles convidam os rapazes pra abrirem os shows de uma turnê nacional chamada justamente Vira Virou (aquela canção escrita por Kleiton para uma namorada portuguesa). Fado estilizado que o MPB-4 que gravaria em seguida num disco batizado Vira Virou – que incluía outra canção da dupla: Viração.

* * *

Neste recomeço estava tudo o que haviam fundado nos primeiros discos do Almôndegas: uma música muito gaúcha e muito universal, misturada a canções 100% emepebísticas. 

Desta vez o sucesso veio amplo, geral e irrestrito. Estávamos num momento de entressafra da MPB, imediatamente anterior à explosão do rock dos anos 1980, e o carisma dos rapazes saciou a sede de novidade de um público que meio cansado dos mesmos medalhões.

Nos próximos anos, a cada ida da dupla ao Rio Grande do Sul os gaúchos experimentavam a sensação de ver, pela primeira vez, um artista local lotando lugares imensos como o ginásio Gigantinho. Feito que nem Elis Regina havia logrado.

Também pudera: era hit atrás de hit, Globo de Ouro da TV Globo toda semana, clipe de Maria Fumaça no Fantástico (em janeiro de 1981)…

A escala ascendente durou três discos e quatro anos.


Arthur de Faria é pianista, compositor e arranjador. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS, na área de canção popular. Produziu 28 discos, dirigiu 12 espetáculos. Escreveu 52 trilhas para cinema e teatro em Porto Alegre, São Paulo e Buenos Aires. Lidera a Tum Toin Foin Banda de Câmara e teve peças interpretadas por orquestras e solistas de várias cidades brasileiras. Tocou em meia dúzia de Países e 19 estados brasileiros. Lançou 20 álbuns e EPs e três livros sobre a música de Porto Alegre, dois deles você leu primeiro aqui na Parêntese, em capítulos.

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