Pensata

Sinal de fumaça

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Sinal de fumaça Cartão postal de Rio Branco encoberto pela fumaça. Foto: Fabiano Carvalho

Está muito difícil ser simples. Foi o que pensei quando o Fischer me sugeriu escrever algo sobre o que está acontecendo no Acre: escreve simplesmente descrevendo o que tu e tua família estão vivendo cotidianamente. Vou tentar, respondi. Porque está difícil de respirar e a cabeça pesa. 

Creio que a respiração seja o que temos de mais básico e fundamental. Estamos sempre respirando, o ar está sempre aí simplesmente. Salvo os que já sofrem de problemas respiratórios e reconhecem a maravilha que é respirar livremente, os demais nem notam que respiram. Neste momento, aqui no Acre e Amazônia Ocidental, estamos todos notando, sem exceção. Hoje precisei caminhar nas ruas a céu aberto no centro da cidade. Agora estou com dor de cabeça. Assim como muitos que relataram o mesmo, além de congestão nasal, falta de ar, sinusite e outras ites, olhos e garganta ardendo. 

Rio Branco, capital do Acre, conquistou o primeiro lugar do ar mais poluído do mundo no dia 5 de setembro, dia da Amazônia, de acordo com a plataforma suíça IQAir, de monitoramento da qualidade do ar. Esse dia simbólico, que era para estarmos celebrando o local que já foi considerado o pulmão do mundo, ganhou em poluição da China, do Iraque e de metrópoles superpopulosas e industriais. O fogo toma conta da região, falta chuva, os rios estão secos. Mudanças climáticas? Sim, claro. Negligência das políticas públicas? Como sempre. As medidas que estão sendo tomadas são as paliativas: as escolas foram fechadas e o aeroporto também, ampliou-se o atendimento nas unidades de saúde superlotadas, o uso de máscaras foi recomendado, assim como permanecer em casa com as janelas fechadas.  A velha e depauperada visão de mundo ocidental, cultural e historicamente dominada por uma mentalidade masculina tóxica. A mesma que vem nos trazendo a este nível de tristeza: trata-se a doença e não o doente, esconde-se da fumaça mas não apaga o fogo, estabelece leis e não as executa. 

 

Índice de qualidade do ar em Rio Branco, o pior do mundo, no dia da Amazônia – 5 de setembro. Fonte: https://www.iqair.com

 

Os últimos dias foram nublados, cinzas, sufocantes, mas nem só de amargura se vive. Tivemos a grande Expoacre (exposição agropecuária em Rio Branco), que recebeu milhares de visitantes durante a semana da Amazônia. O evento do agronegócio, que ainda teve a pachorra de enfiar um “desenvolvimento sustentável” em alguma manchete, ocorreu na última semana dentro da fumaça. É difícil compreender o gado. O pasto está seco, o rio também, há sede, há fumaça, o fogo está matando tudo, inclusive o boi, mas a boiada segue firme e inebriada como num mundo paralelo, num Brasil paralelo, que não existe na realidade. O ar é o mesmo para todos, mas na Expoacre só se viveu maravilhas. A ode ao desmatamento, à monocultura, ao domínio da cidade sobre a floresta, ao extermínio sociocultural e poderia seguir elencando infinitamente toda desgraça vinculada ao evento. 

É inacreditável o nível de desconexão com o básico, o fundamental: o ar. A vida real, aquela que precisa de ar para respirar, parece não existir nesse mundo paralelo. Afinal, ele só precisa de um celular com WI-FI, a tecnologia de comunicação mais avançada dos últimos séculos. No entanto, o corpo da Terra está se comunicando por meio de uma tecnologia de comunicação muito antiga e rudimentar: o sinal de fumaça. Mas as timelines, os feeds, os stories, os shorts, as selfies, os zaps e os reels alimentam um mundo inexistente, entupido de informações que são consumidas na mesma velocidade com que o fogo consome palha seca. Incêndio grande vira notícia, mas nem sempre, dependendo do local e das vítimas, às vezes uma nota, outras vezes vira o post da moda nas redes sociais, quem não postar vai ser cancelado. Todos devem prezar pela imagem. Lembram da comoção que tomou as redes com a enchente no Rio Grande do Sul? Todo mundo postou algo. Ainda há desabrigados desta tragédia, assim como ainda há inúmeras famílias sem o básico pra sobreviver desde a última enchente no início do ano que atingiu quase todos os municípios do Acre. Os rios que transbordaram seus limites históricos agora estão secos. Falta água, falta comida, sobram fogo e candidatos para as próximas eleições.

 

Rio Acre em seu nível mais baixo neste verão amazônico revela o lixo da cidade em seu leito. Foto: Fabiano Carvalho

 

Não precisa de muito argumento para se ligar um ponto ao outro da lógica básica de sobrevivência na Terra. Sem ar não se vive, sem água não se vive, sem alimento não se vive. A floresta é rica em tudo isso, ela é o corpo da Terra, não só os pulmões, não só o coração ou o útero, ela é o corpo todo. E como geralmente se trata o corpo de uma mulher? Depravando-o, usufruindo dele ao bel-prazer, danem-se as consequências, aliás, elas nem existem. 

Mas sim, elas existem e a Terra está mostrando. E assim estamos perdendo nossos direitos sobre ela: direito de respirar, de plantarmos e colhermos, de aliviarmos nossa sede e de sermos dignos de estar sobre seu solo. Estamos perdendo nossos direitos humanos. Todos nós. E é impossível não comparar: acabamos de perder o Ministro de Direitos Humanos por infringir uma lei que não costuma ser levada a sério: usufruir do corpo de uma mulher ao seu bel-prazer.  A consequência veio, e é inédito que tenha vindo a partir do mais alto escalão do poder governamental do nosso país. Se houver a mesma atitude perante o corpo da Terra, temos esperança.  Temos a obrigação de zelar por este corpo e isso não é um discurso ideológico, ele é pragmático, necessário, urgente. Simples assim.  

 


Natália Jung é Mestre e doutoranda em Estudos Literários pela UFRGS, com formação dupla em Literatura e em Antropologia (pela Universidade Federal do Acre). Atuou em desenvolvimento socioambiental na Amazônia, escreveu para jornais, sites e revistas, coordenou cineclube, foi professora do ensino básico e superior e é uma das autoras de Depois do Fim (editora Milacres) e Amazônia (selo Off Flip). Vive em Rio Branco – Acre.

 

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