Pensata

Se um homem trabalha mal, tu deixa o homem trabalhar?

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Se um homem trabalha mal, tu deixa o homem trabalhar?

A comparação entre o, felizmente, derrotado candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal, e o ainda candidato a prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, é eloquente.

Marçal, com sua retórica coach, religiosa, empreendedora, traz a face cômico-grotesca do neoliberalismo e do fim do mundo. Quase não tem gente ali dentro da casca e faz parte de sua eficiência política a capacidade de refletir sem desvios uma massa de eleitores não só insatisfeitos, mas incapazes de precisar a causa de sua insatisfação, por isso tão manipuláveis. Sua derrota com tantos votos não pode ser entendida como uma vitória porque deposita nuvens carregadas para a eleição de 2026. Marçal é a cara do futuro que devemos evitar.

Melo não. Melo é o velho administrador dos negócios da família, ultrapassado, lento, ineficiente, mas ainda capaz de dar lucro a seus chefes – lucro que esses chefes consideram satisfatório no panorama distópico. Sua figura calculadamente conservadora performa certa paixão pelo passado, e alimenta na massa de eleitores o medo da mudança, qualquer mudança. Como se o melhor que pudesse acontecer é tudo continuar como está. Um homem maduro, com seu chapéu de palha, sua família tradicional, olhando inerte a cidade, para que cada um cuide de sua vida. (“Calculadamente conservadora” porque acredito que essa figura foi forjada para o exercício da política e que sua verdadeira face está voltada a um amplo processo de exploração imobiliária da cidade. A população de Porto Alegre passa ao largo desse projeto de cidade que o prefeito conduz.)

Acontece que em maio deste ano a cidade viveu o maior trauma de sua história. As enchentes afetaram diretamente centenas de milhares de pessoas, alagando residências e tirando famílias de suas casas. Mesmo quem não foi atingido diretamente, teve de sobreviver a semanas sem água e/ou luz. Sem rodeios, a cidade ficou parada por pelo menos 60 dias.

O discurso da prefeitura e de Melo é que nada poderia ter sido feito, que as enchentes foram obra da natureza, isto é, Deus, e que ele fez tudo o que estava a seu alcance para minimizar os danos. A verdade, contudo, é que a tendência privatizadora da gestão de Melo fragilizou a defesa da cidade quanto aos fenômenos naturais e aumentou em muito os danos que sofremos. As comportas e as casas de bomba em péssimo estado são um símbolo de sua má administração, mas o buraco é mais embaixo. Nesse processo de liquidação de tudo, inclusive das pessoas, Melo está do lado da enchente, faz parte do time da enchente, então o projeto que representa está fortemente ligado à tragédia que nos afetou. As enchentes trouxeram à tona o fato de que temos um prefeito contra a cidade. Sua administração marcada pela inércia, por deixar a cidade ao deus dará, foi descoberta pelo processo trágico que nos acometeu. O rei está nu.

Mas todos olham para o outro lado. Como explicar? Neste ponto, Marçal e Melo se abraçam. Uma fração importante de seus votos são de não-votos. Votos de impotência, de descrença, que partem de um mundo atomizado em que as pessoas querem somente poder pagar sua netflix e seguir em frente. Por isso a enorme dificuldade de uma “esquerda neoliberal” virar o jogo. O pressuposto tradicional da esquerda de pensar que do outro lado há um indivíduo, um sujeito íntegro que precisa ser emancipado (independente de quais escolhas vai ter depois de emancipado), foi por água abaixo. Especialmente os eleitores das grandes cidades precisam ser entendidos como semi-sujeitos, cujo poder de escolher foi canalizado para plataformas de streaming e de delivery. Essas são as escolhas que consideram importante fazer.

O que poderia fazer com que Melo perdesse votos? Nada? A cidade foi inundada e ele, e seus administrados, nem mesmo performaram eficiência, como foi o caso de Leite que infelizmente não se antecipou às enchentes por ter “outras agendas”. Isto é, Leite pareceu preocupado, fingiu estar preocupado, agiu como se estivesse preocupado, mas tinhas outras agendas. Melo nem isso. Nas suas aparições durante a tragédia, nas falas de seus subordinados diretos, a impressão era sempre de que não tínhamos prefeito, o que, afinal, foi a verdade de toda a sua gestão, mas nas enchentes precisávamos de um prefeito. Os órgãos de imprensa com os mesmos chefes de Melo chegaram a se exasperar nos primeiros dias, antes de mudarem o foco.

Um não-prefeito para não-votos. Se um homem trabalha mal, tu deixa ele trabalhar? Pelo jeito sim. Pelo jeito, tanto faz. Os incomodados que se mudem. Incômodo, vocês sabem, palavra forte para se pensar o trauma. Uma cidade traumatizada, uma população traumatizada, jogando água no moinho do Melo. Talvez continuar não fazendo nada (desde as enchentes nenhuma obra foi efetivamente feita para que a história não se repita) tenha sido inclusive calculado. Por hipótese, o desempenho de Melo tende a ser muito melhor numa cidade arruinada, inclusive por ele.

 


Guto Leite é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na UFRGS.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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