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Nobres e plebeus no século XXI

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Nobres e plebeus no século XXI Foto: Matias Baglietto/Reuters

A desigualdade econômica e social é um flagelo do século XXI, que na verdade começou a manifestar-se na segunda metade do século XX. Muitos autores denunciaram esta situação, em particular o economista francês Thomas Piketty, que também adverte sobre o fato de os ganhos nos mercados financeiros crescerem mais do que a produção econômica, produzindo bolhas de riqueza sem conteúdo que explodem mais cedo ou mais tarde. 

A preocupação com a desigualdade crescente preocupa inclusive alguns super-ricos, como os bilionários Warren Buffett e Bill Gates, que defendem impostos mais elevados para os muito ricos, indo exatamente na direção oposta ao candidato à reeleição Donald Trump, que propõe precisamente a redução dos impostos sobre os mais ricos. Apesar de os setores mais ricos serem uma minoria muito pequena, Trump tem grandes chances de ser reeleito nas eleições deste ano. Muitas pessoas pobres pensam que são ricas. 

Outro exemplo mais próximo é o presidente da Argentina, o “libertário” Javier Milei, eleito em 2023 com uma diferença significativa de votos sobre seu oponente e que tem conseguido elevar o percentual de famílias na pobreza a 50%. Mas já falaremos do governo Milei mais adiante.

A prova mais clara de por que os governos de direita lutam contra a sindicalização. A curva vermelha mede a percentagem da riqueza global nas mãos dos 10% mais ricos. A curva azul mostra a percentagem de trabalhadores sindicalizados nos Estados Unidos da América. A distância entre as duas curvas continua a aumentar. Fonte: epi.org

Existem muitas razões para o aumento da desigualdade e o consequente aumento da miséria. Uma delas foi a luta contra os sindicatos, nos anos 80-90, de governos de direita, como o de Ronald Reagan nos Estados Unidos, ou o de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha. O gráfico acima, retirado de https://www.epi.org/publication/unions-decline-and-the-rise-of-the-top-10-percents-share-of-income/, mostra que o declínio no número de trabalhadores sindicalizados coincide com um aumento constante da riqueza dos mais ricos. Não podemos garantir que exista uma relação causa-efeito, mas, no pior dos casos, trata-se de uma coincidência notável. 

Durante os períodos de forte sindicalização (décadas de 1930 e 1940) a riqueza dos mais ricos diminuiu (percentualmente). À medida que a força dos sindicatos (e a sindicalização, isto é, o número de trabalhadores sindicalizados) diminuía, a riqueza dos mais ricos aumentava e continua a aumentar. Outra razão para o aumento da desigualdade foi a queda da União Soviética. Apesar das muitas falhas dos chamados regimes socialistas, a sua própria existência (o fantasma do comunismo) serviu como uma ameaça para os capitalistas e levou-os a tratar os trabalhadores de uma forma mais humana e levemente mais equitativa.

Na verdade, depois da década de 1980 a riqueza de um grupo muito pequeno continua a aumentar progressiva e inexoravelmente, enquanto o resto do mundo tem de partilhar uma quantidade decrescente de recursos. Para ser mais preciso, em 2014, o 1% mais rico dos cidadãos americanos possuía 40% da riqueza do país, enquanto o resto do país, 99% da população, detinha 60% dos recursos. Em 2017, estimou-se que a soma das fortunas de Jeff Bezos (Amazon), Bill Gates (Microsoft), Warren Buffett (banqueiro) e dos irmãos Charles e David Koch (ultradireitistas que consideravam Trump demasiado à esquerda) representava mais de 40% da riqueza dos Estados Unidos, enquanto no outro extremo 80% da população possuía apenas 7% da riqueza.

A desigualdade extrema não é somente um problema de ordem moral ou de justiça social: o crescimento econômico é afetado pela desigualdade já que os muito pobres não têm como adquirir produtos, o que diminui a atividade econômica como um todo. Por esse motivo muitos países usam os impostos (como sugerido por Bill Gates) para arrecadar recursos e garantir um ingresso mínimo aos mais pobres, do estilo da bolsa família no Brasil. Países escandinavos estudam a distribuição de um auxílio universal, independente do nível salarial, e Piketty propõe a ideia de uma “herança universal”, um certo valor entregue a cada individuo em algum momento da sua vida.

Durante a pandemia o parlamento argentino estudou a cobrança de um imposto (muito baixo, 1%) sobre as grandes fortunas para ajudar aqueles que perderam os seus empregos e para financiar a investigação de um medicamento ou vacina. A proposta não foi aprovada. Os argumentos utilizados foram de que grandes fortunas fugiriam do país para paraísos fiscais. Porém, não se trata apenas de evasão: há autores que são contra este imposto por considerá-lo injusto e talvez imoral. Um deles foi o professor da Universidade de Harvard Robert Nozick (1938-2002), que no seu libro Anarchy, State and Utopia (Basic Books, Nova York, 1974), oferece uma defesa filosófica dos princípios libertários (também chamados de liberais) e do Estado Mínimo. Ele diz, por exemplo, que “apenas um Estado mínimo, limitado a fazer cumprir contratos e proteger as pessoas contra a força, o roubo e a fraude, é justificado. Qualquer Estado com mais poderes viola os direitos das pessoas e é injustificado”.

Nozick afirma que ninguém deveria ser forçado a ajudar outras pessoas. Tributar os ricos para ajudar os pobres é coagir os ricos. Isso viola o direito deles de fazer o que quiserem com as coisas que possuem. De acordo com Nozick, não há nada essencialmente errado na desigualdade económica como tal. Ele rejeita a ideia de que uma distribuição justa consiste num determinado padrão, como a igualdade de rendimentos ou a provisão igualitária de necessidades básicas.

O que importa, segundo Nozick, é como se chegou a essa distribuição. Primeiro, a distribuição seria justa se os recursos utilizados para ganhar dinheiro fossem legítimos; se ele fizesse fortuna vendendo bens roubados, ele não teria direito a esse rendimento. O que Nozick não considera, obviamente, é que os recursos obtidos através da exploração do trabalho de terceiros podem não ser legítimos. Os recursos também seriam legítimos se fossem o resultado de trocas livres (mercado livre) ou de presentes dados voluntariamente por terceiros. Desde que ninguém entre no negócio com ganhos ilícitos, qualquer distribuição resultante de um mercado livre é justa, por mais igual ou desigual que seja.

E o que há de errado em tributar os rendimentos dos mais ricos? Segundo Nozick, as consequências morais vão além do dinheiro. Trata-se nada menos do que da liberdade humana. O seu raciocínio é o seguinte: “Tributar os rendimentos do trabalho equivale a trabalho forçado”. Se o estado tem o direito de reclamar uma parte dos meus rendimentos, também tem o direito de reclamar uma parte do meu tempo. Em vez de ficar com, por exemplo, 30% do meu rendimento, poderia muito bem obrigar-me a passar 30% do meu tempo a trabalhar para o Estado. Mas se o Estado puder obrigar-me a trabalhar em seu nome, essencialmente afirma um direito de propriedade sobre mim. Textualmente: “Aproveitar o resultado do trabalho de alguém equivale a aproveitar o seu tempo e obrigá-lo a realizar diversas atividades. Se as pessoas são obrigadas a realizar determinado trabalho sem remuneração e por um determinado período, é o Estado quem decide o que devem fazer e para que fins, independentemente das decisões próprias”. 

Essa linha de raciocínio nos leva ao cerne moral do libertário: a ideia de auto-propriedade. Se eu sou dono de mim mesmo, devo ser dono do meu trabalho. (Se alguém pudesse me ordenar a trabalhar, essa pessoa seria meu mestre e eu seria um escravo.) Mas se eu sou dono do meu trabalho, devo possuir os frutos do meu trabalho. 

Nozick parece não ter percebido que seu raciocínio – o trabalhador deve ser o dono do seu trabalho – é justamente a premissa marxista ou socialista. O capitalista toma posse dos frutos do trabalho e transforma o trabalhador em escravo. Isto é, o verdadeiro liberalismo é na verdade comunista ou, como não existe Estado, anarquista. Não é por acaso que Milei se define como anarco-capitalista. 

Mas voltando às ideias de Nozick, a sua conclusão é que taxar os ricos para ajudar os pobres viola os seus direitos (dos ricos). O libertário vê uma continuidade moral entre impostos (retirando meus ganhos), trabalho forçado (retirando meu trabalho) e escravidão (negando minha auto propriedade). Em resumo, Nozick transforma a famosa frase de Proudhon: Toda propriedade é roubo, em todo imposto é roubo.  

Finalmente, eu imaginava que um dos problemas com os ideais libertários é que as obrigações do Estado Mínimo não se limitariam às acima mencionadas, “fazer cumprir contratos e proteger as pessoas contra a força, roubo e fraude”, mas também construir estradas para os seus carros e pistas de aterrisagem para os seus jatos privados, bem como redes de radar para voar e redes de satélite para GPS e comunicações. Estava errado: Milei paralisou todas as obras públicas, incluindo um gasoduto que traria gás do sul do país para as indústrias localizadas em Buenos Aires, tendo que pagar mais caro, e em dólares, o gás importado. Também omitiu qualquer ajuda federal à província de Córdoba, que sofreu com enormes incêndios florestais. Seus assessores celebram qualquer demissão de empregados públicos, que foram muitas em seu quase um ano de governo, já que dessa forma reduzem o gasto, e o tamanho, do Estado. Sua luta do momento é contra a educação e a saúde públicas, estrangulando o sistema de saúde e as universidades com fortes cortes orçamentários. 

Servindo aos interesses das grandes fortunas locais, Milei está levando adiante um experimento “libertário” provavelmente mais ousado que as propostas da escola de Chicago aplicadas por Pinochet no Chile, e cabe aos argentinos, que o elegeram, arcar com as consequências. Em menos de um ano a taxa de desemprego e o número de famílias por baixo da linha de pobreza aumentaram consideravelmente, a atividade comercial caiu, levando ao fechamento de muitas empresas e os preços continuam aumentando. A sua popularidade está caindo rapidamente, mas tem ainda mais de três anos de governo pela frente. Um verdadeiro teste de resistência.

 


José Roberto Iglesias, nascido na Argentina, é professor emérito da UFRGS, com atuação nos departamentos de Física e Economia. http://iglesiassicardi.blogspot.com / www.if.ufrgs.br/~iglesias 

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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