Nossos Mortos

Sabor humano, precisão cabralina

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Sabor humano, precisão cabralina Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras

Quando em 1996 Antonio Cicero publicou seu primeiro livro de poemas. Guardar, publiquei  uma resenha, que ainda subscrevo. Ei-la:

Os poemas de Antonio Cícero incorporam duas tendências quase antagônicas da recente poesia brasileira: de um lado, o discurso da geração marginal, com seu verso mais despojado e pouco “literário”; de outro, a vertente culta, oriunda dos desdobramentos concretistas, que prima por sofisticados jogos metafóricos e intrincada rede de alusões. Cícero lança seu barco em meio às duas marés, e as três partes de Guardar testemunham um ouvido igualmente atento a ambas as chamadas.

No pórtico da obra, o texto que dá título ao livro se baseia numa sutil trama de paradoxos entre velar e desvelar, entre reter e perder, entre criar e viver. “Por isso o lance do poema”: jamais asséptico, verdadeiro lance de dardos a ferir o acaso. Seguem-se, no primeiro conjunto de Guardar, catorze textos que, de algum modo, evocam diálogos com a tradição, traduzida como rastilho possível para a eclosão do contemporâneo, e não como referência mumificada à pulsação da vida. Ora num tom vizinho ao sentencioso (“O grande bem não nos é nunca dado / e foste já furtado do segundo”), ora em incursões irônico-etimológicas (cf. “Rapaz”), deuses e adeuses, mares, naves e labirintos se mesclam nas evocações helênicas e edênicas desses primeiros poemas. Uma dicção mais “elevada” é a marca do conjunto, seja no nível lexical (“glaucas”, “ignóbeis”, “ominosas”), seja, sobretudo, por certa solenização do verbo, cultivado na encruzilhada de um saber divino (“Desde então eu designo no universo vão/ as coisas e as palavras plenas”) e de um sabor humano (“Qualquer bom poema provém do amor/ narcíseo. Sei bem do que estou falando”). 

É especificamente do sabor humano que tratam os dezoito poemas da segunda parte do livro. A imagem da imersão, já presente em texto do conjunto inicial (“O resto é afogar-se com o amado/ na líquida volúpia de um segundo”), reitera-se agora no poema que abre a nova série (“O solo da paixão não dura mais/ que um dia antes de afundar, não mais/ que esta noite ou esta noite e um dia”). Em Cícero, Eros passeia de preferência por alamedas noturnas, mesmo que vá exercitar-se – fina ironia – no “Hotel Meio-Dia”. A oscilação entre um discurso em 1a e 3a pessoa, na parte 1, é agora cancelada em prol de uma ostensiva e autobiográfica presença do “eu”. 

Furtivos flertes de amores que ousam dizer o seu nome ou que se chamam apenas de ‘bacanas” integram o cenário dessa sucessão de perdas e encontros, de paixões sem drama. O biográfico não se aliena do literário – embora, arriscadamente, o poeta declare: “eu, meu amor, acho graça até mesmo em clichês”. Guardar, quase sempre, abre mão de tal “graça”. Por isso, desconfie-se do autor, quando afirma: “Não quero mudar você/ nem mostrar novos mundos”, e desconfie-se ainda mais da acomodação existencial ou do comodismo estético, atalho incompatível com a qualidade do trabalho de Antonio Cícero. 

A esse respeito, é notável como ele consegue driblar as expectativas de uma discutível “facilidade” das letras de música; ao incluir algumas delas em meio a textos de proveniência estritamente literária, Cícero sugere que sejam lidas sem ressalvas ou atenuantes. O resultado são textos que resistem, mesmo sem a melodia. Note-se, nesse particular, o escrúpulo do autor, que, em “Notas” ao fim do volume, distingue “poemas que foram musicados” de “letras escritas para melodias”. 

A terceira parte do livro exibe um predomínio de formas fixas (num total de dez poemas, há três compostos em quadras, além de quatro sonetos). Para o final de Guardar, Antonio Cícero reservou o melhor de sua produção, até mesmo na provocativa convivência de universos que mantivera em conjuntos segmentados: a erudição e a trivialidade, o registro culto e o distenso, o sentimento como experiência pessoal ou projetado em órbita genérica, o amor-próprio e amores impróprios, num caldeirão de temas e formas que atinge a precisão cabralina nas quadras de “O parque” e a argúcia reflexiva de “Teofania”, poema que fecha a coletânea. Ao situá-lo em local tão estratégico, Antonio Cícero remete circularmente ao texto inicial, uma vez que ambos se debruçam sobre o papel da memória na criação poética. Na primeira, louvou-se o “guardar”; no derradeiro, destacou-se a memória como guardiã, sim – mas de um fecundo esquecimento.

No poeta vigora o desejo – como anota em “Narciso” de uma poesia que se quer “na confluência da verdade/ e da miragem”. Esquecer o vivido para inventar a verdade ou inventar o vivido para se esquecer e se (res)guardar da verdade? Com qualquer resposta, é nesse atrito de verdade e miragem que a poesia costuma gerar os seus frutos mais belos.

 

*

Em 2012, Antonio Cicero me honrou com o convite para fazer a apresentação de sua terceira coletânea, Porventura. Nossa amizade se estreitou e me empenhei em prol de sua candidatura à ABL, para a qual foi eleito em 2017, num tributo e reconhecimento da Casa a seu grande talento, que transitava da poesia à filosofia, e nele sempre reconheceu o ser humano generoso, o cidadão pautado pela civilidade e pela ética. 

Que as últimas palavras sejam dele, em tom de comovente despedida:  três poemas e a mensagem que me mandou quando já se encaminhava para o fim, às 6h51 de ontem, dia 23 de outubro de 2024.

 

VALEU
Vida, valeu.
Não te repetirei jamais.

 

O FIM DA VIDA
Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não, há depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.

 

 SAIR
Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

 

CARTA FINAL
Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia.
O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!

 


Antônio Carlos Secchin é poeta, crítico, membro da ABL. 

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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