Nossos Mortos

Rui Gonçalves, o livreiro viajante

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Rui Gonçalves, o livreiro viajante Rui Gonçalves, o Rui da Palmarinca. Foto: Renato Rosa

Cada vez que a Palmarinca chegava na cidade era um grande acontecimento, pois a nossa geração de estudantes universitários se inundava de novos conhecimentos e de reflexões que não chegariam até nós de outra maneira. Na maioria das vezes a gente encontrava o Rui e o Hermes em um dos corredores das faculdades da UFPel, mas se tornou comum a montagem de uma banca da livraria na feira do livro de Pelotas. 

No final dos anos 70, ano após ano, eles foram se tornando amigos da nossa turma de dirigentes estudantis. Tanto isso é verdade que, na maioria das vezes eles se hospedavam em uma das repúblicas de estudantes que existiam lá na praia do Laranjal. Não sei como é hoje, mas naquela época Pelotas ainda tinha um ar provinciano, e as livrarias da cidade não ofereciam tantas opções literárias e intelectuais sobre o Brasil, a América Latina e o mundo. Era muito difícil ter acesso às obras que eles traziam para nós e para as pessoas que viviam nas cidades universitárias do interior do Rio Grande do Sul.

Como eu estudava Arquitetura e Urbanismo na UFPel, os livros da Gustavo Gilli foram os primeiros a me chamar a atenção. Mas foi a partir da Palmarinca que eu comecei a ler Marx e Engels, Lenin, Trotsky, Althusser, Gramsci, Alexandra Kollontai, Marcuse, Eric Fromm, Agnes Heller, Simone de Beauvoir, Adolfo Sanchez Vasquez, Karel Kosik, Paulo Freire, Octavio Ianni, Paul Singer, Otto Alcides Ohlweiler, Leôncio Basbaum, Maiakóviski, Bertold Brecht, Augusto Boal, entre tantos outros grandes pensadores e pensadoras. 

Na verdade, eu me sentia confortável realizando as minhas reflexões sobre os clássicos e leituras de outras reflexões sobre os mesmos livros, inclusive sobre alguns tratados de física e de matemática moderna editados na antiga União Soviética. Eu ainda tenho algumas obras da editora Siglo XXI e da Universidade de Buenos Aires que a gente só conseguia na Palmarinca, e tomo cuidado ao reler as traduções realizadas pelos PCs português e espanhol em tempos de Guerra Fria, como é o caso das Cartas de Lenin e Gorki, que foram publicadas sob uma certa “vigilância” ideológica.

Cada vez que a gente ia a Porto Alegre para algum encontro da UEE e da UNE, era quase certo fazer uma visita àquela sala (box) que eles tinham na Galeria da General Vitorino pra bater um papo e perguntar se já havia alguma previsão de um novo circuito pelas universidades do estado. Lembro vagamente das minhas idas na loja que ficava na esquina da Mal. Floriano, mas me impressionei com o investimento deles. Depois, só voltei a frequentar a Palmarinca quando voltei a Porto Alegre para morar de 2011 a 2018, já na Jerônimo Coelho, e encontrar novas reflexões sobre o novo mundo da política, da filosofia e da cultura geral.

Nesses anos, também me encontrei com o Rui várias vezes na Feira do Livro de Porto Alegre, no Parangolé e na Casa do Teatro, quando realizamos um belo encontro de artistas e produtores com o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, durante a Caravana da Cultura que fazia parte da campanha da Dilma, em 2014. Naqueles anos, a Palmarinca, inclusive, editou o livro O Nome do Jogo, organizado pela minha companheira Marlova Aseff, sobre a escrita literária nas crônicas esportivas do querido Ruy Carlos Ostermann.

Aqui em casa a gente gosta de lembrar do Rui como um tipo de Dorian Gray, que nunca envelheceu. Ao mesmo tempo, vejo que algumas forças de esquerda envelheceram e, por isso mesmo, se debatem em constatações, ao não compreender o novo mundo que surgiu. Compram na Amazon, se deixam abduzir por relações mediadas apenas pelas plataformas digitais tecnológicas e se afastam cada vez mais daquilo que os próprios clássicos tentaram lhes ensinar. Ainda bem que a Palmarinca resistiu por tantos períodos difíceis e manteve as pessoas reunidas em torno daquele espírito leve e consistente dos seus sonhadores. Afinal, o nome da livraria foi escolhido para homenagear as lutas de resistência do quilombo de Palmares e dos Incas, e o meu amigo Rui Gonçalves sempre soube traduzir na prática o que isso significa.

Brasília, 12/08/2024


Ricardo Almeida é consultor em gestão de projetos, produtor e ativista do movimento Fronteras Culturales

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