Nossos Mortos

O Carlinhos

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O Carlinhos Carlos Mosmann. Foto: Vanessa Monni

Talvez eu tenha sido o último amigo a conversar com o Carlinhos Mosmann. Fui visitá-lo no hospital, num sábado à tarde, poucas horas antes de ele entrar na UTI da qual não sairia mais. Ele estava muito fraco, cansado, a respiração arfante e descontínua; sua voz não era mais que um sopro. Estávamos ele, eu e sua amada Salete, ela sempre ao lado.

Na conversa, aos sussurros e entrecortada por tempos em que precisava descansar, o Carlinhos me fez um pequeno pedido (que será cumprido), contou duas alegrias recentes que tivera – alegrias coletivas, para as quais ele muito havia contribuído – e de pouco em pouco, pausando para respirar, me recitou um de seus poemas.

É isso: o Carlinhos não tinha mais voz e nem ar, mas encontrou força pra me declamar uma poesia!

Talvez essa seja a essência deste meu tão grande amigo: a reivindicação justa e necessária, a alegria coletiva e a bela importância da arte.

É um pobre chavão dizer que alguém possui múltiplos talentos, mas o fato é que provavelmente não há expressão que se aplique melhor ao Carlinhos Mosmann. Jornalista, poeta, músico, carnavalesco, comunicador na sua Raízes Radio Web, político (era vice-presidente do PT hamburguense e foi secretário de Cultura de Novo Hamburgo, sendo que sob sua gestão se iniciou a benfazeja, necessária e democrática prática dos editais de fomento à produção cultural), militante e, no meio de tudo isso, um pai e avô carinhoso e presente, daqueles que pediam para a reunião terminar até tal hora porque precisava buscar as netas na escola ou no balé. Netas e netos que, por sinal, eram uma festa pra ele.

A cultura, a política, a participação popular (coordenou a experiência do Orçamento Participativo em Novo Hamburgo), o antirracismo, o meio ambiente, a inclusão e a diversidade, nenhum tema ou assunto escapava do generoso radar do meu bom amigo.

No funeral do Carlinhos, ao qual compareceu uma emocionada multidão, todo mundo tinha alguma história para contar sobre ele, das mais recentes às da época cinza em que, jornalista combativo, escrevia seus textos nos diários de Porto Alegre. Eu mesmo tenho várias, extraídas das vivências que compartilhamos.

E nessas vivências, fui me dando conta ao longo do tempo e dos anos que o Carlinhos, sem que nunca o tenha efetivamente sido, foi acima de tudo um professor. Porque ele possuía uma cultura enorme e sabia usá-la sem pedantismo, nas conversas, nos debates, na luta cotidiana dos dias, às vezes para convencer, outras vezes para marcar posição, outras apenas porque achava importante dizer. Pra se ter uma ideia disso, na década de noventa, em uma conversa cheia de piadas que tivemos (lembro inclusive onde estávamos), em duas frases ele me abriu os olhos para a importância da luta antirracista.

Em duas frases, não precisou mais: o Carlinhos manejava a elegância do simples.

Releio o texto agora, para pensar em seu final, e me dou conta de que o tempo inteiro chamei meu amigo de Carlinhos. Não de Carlos, sempre de Carlinhos. Um alemão já entrado na casa dos setenta, grande, mais pra alto do que pra baixo, integrante de uma das famílias mais tradicionais desta tradicional cidade que é Novo Hamburgo – e todo mundo a vida inteira o chamando carinhosamente de Carlinhos.

E isso também não quer dizer pouco.  


Henrique Schneider é advogado e escritor. Possui vários livros publicados, dentre eles O Grito dos Mudos (Prêmio Maurício Rosemblatt de Romance), Contramão (finalista do Prêmio Jabuti) e Setenta (vencedor do Prêmio Paraná de Literatura, publicado na Itália, Egito e Indonésia).

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