Memória

A Ilha da Pintada e memória da construção naval em Porto Alegre

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A Ilha da Pintada e memória da construção naval em Porto Alegre

Temos um cais, temos um porto, somos ilha e continente: a Ilha da Pintada e memória da construção naval porto-alegrense

Tive a curiosidade de conhecer o Pontal do Estaleiro, inaugurado com pompa e circunstância na zona sul de Porto Alegre. Para quem não lembra, aquele local, um dia, foi a sede do Estaleiro Só. 

Que decepção! O que poderia ser um memorial que honrasse a importância do antigo estaleiro, reduziu-se a insignificantes painéis interativos.  Mais uma vez, Petit Poa, na contramão da história, perde a oportunidade de valorizar a sua riqueza histórica, cultural e patrimonial e apresentá-la as novas gerações.

Desde 2008, Geraldo Hasse chamava a atenção para o descaso com que a história da indústria naval do Rio Grande do Sul tem sido tratada.

No final de 2022, ocorreu o falecimento de uma tia querida. Ela foi uma das últimas remanescentes que viveu o apogeu e o melancólico fim do Estaleiro Mabilde, fundado por meu bisavô, que ficava localizado na ilha da Pintada. Suas cinzas, com autorização dos atuais proprietários, foram espalhadas lá. Ao ver as fotos das ruínas e de seu abandono, senti um misto de melancolia e de indignação. Não se trata de nenhum saudosismo, muito antes pelo contrário. Não imaginava que o antigo estaleiro ainda estaria ‘vivo’.

Ao buscar no google maps “estaleiro Mabilde”, é para a extremidade sul da ilha da Pintada que o navegador aponta, mesmo tendo sido vendido em 1943 e tendo passado, desde então, por vários donos.



Tenho a sorte de pertencer a uma família que preza muito suas histórias e memórias. Possuo alguns desses registros deixados por escrito, sobre as relações e vínculos criados com trabalhadores e moradores da ilha, como também relações estabelecidas com políticos, como Borges de Medeiros e Getúlio Vargas.

Minha bisavó, Maria José, era filha de um capitão-tenente da Marinha e fazia parte da alta sociedade porto-alegrense. Surpreendeu os pais quando decidiu tornar-se professora e trabalhar. Fluente em inglês, queria também aprender alemão, e o meu bisavô, Emílio Mabilde, filho de um engenheiro belga, foi o professor escolhido. Casaram-se em 1878, tendo dezenove filhos, dos quais sobreviveram apenas sete.



A origem do estaleiro remonta a 1896, quando Emilio Mabilde funda a Officina Encyclopedica, onde eram realizados consertos de máquinas, fogareiros, lampiões, localizada na rua Andrade Neves, em Porto Alegre. Dois anos depois, com o aumento da demanda de serviços, passa a denominar-se estaleiro, mudando-se para a rua Sete de Setembro, onde hoje é a Casa de Cultura Mário Quintana. Neste endereço permaneceu até 1912, quando se transfere para um terreno comprado pelo casal na ilha da Pintada. 

Imagine a cena: um banhado às margens do Guaíba, sem luz, sem água encanada, sem nada… Como a área era bastante alagadiça, Emilio Mabilde construiu um dique para a atracação das embarcações, e a terra retirada serviu para aterrar o local onde foi estabelecido o estaleiro. Uma caixa d’água e um dínamo acionado por um motor garantiram o abastecimento de energia elétrica e água para as máquinas e para as residências dos proprietários e trabalhadores, que passaram a residir na chamada vila Operária.



Já na sede da ilha, passou a dedicar-se a “construir e reparar navios a vapor e a óleo, rebocadores, chatas, barcas para gado, botes para passeio e corrida, baleeiras para pesca e toda a classe de embarcações de ferro e madeira”. Com o advento da Primeira Guerra Mundial e a consequente interrupção das importações, o estaleiro cresceu consideravelmente, passando também a criar e produzir peças para indústrias locais.

Segundo levantado por Adriano Mabilde, em sua dissertação de mestrado, o estaleiro chegou a empregar 160 operários, tendo recebido medalha de ouro na Exposição Internacional do Centenário da Independência, por apresentar uma lancha com um motor de avião adaptado, uma novidade em motonáutica à época.  



Outro fato pouco conhecido é o da construção, sobre o eixo de trator, de um tanque de guerra a pedido do governo do estado, as vésperas da revolução de 1930.



Tão significativo para a vida dos ilhéus quanto o estaleiro, foi a escola que funcionou na residência do casal. A jovem Maria José, formada na Escola Normal de Porto Alegre, começava na ilha da Pintada, como educadora, o trabalho de sua vida. Inicialmente, a maioria dos trabalhadores era de etnias diversas – belgas, espanhóis, negros, alemãs –, sendo os moradores da ilha, paulatinamente, incorporados ao trabalho. Maria José alfabetizou uns e outros.



Além dos estaleiros Só e Mabilde, existiram outros fabricantes de barcos em Porto Alegre. Os mais conhecidos e duradouros foram os estaleiros Alcaraz, João Becker e Marteletti, que mantiveram-se prestando serviços gerais de navegação principalmente para o governo estadual, sobretudo antes que as rodovias começassem a tomar conta do transporte de cargas.

As enchentes de 1936 e 1941 foram cruciais para a falência do estaleiro Mabilde, mas o papel de Getúlio Vargas não deve ser subestimado na derrocada da indústria naval do Rio Grande do Sul.



Vendido em 1943, passou por diferentes proprietários, o que não foi suficiente para apagar a memória e o sentimento de identificação e pertencimento que a comunidade mantém frente ao estaleiro. Muitos moradores até hoje guardam relíquias dos tempos de quando ele ainda estava em atividade.



A Escola Estadual de Ensino Fundamental Maria José Mabilde e o Museu das Ilhas são as instituições que resguardam a preservação da memória e de seu patrimônio, dando visibilidade ao que resta do Estaleiro e da Vila Operária.  

Para os moradores da ilha, a memória da outrora pujante indústria naval porto-alegrense vive. Não seria a hora e a vez de torná-la conhecida, e visível para os moradores do continente?

As antigas instalações estão lá, cercadas e abandonadas, num convite irresistível para tornarem-se um museu da história naval do Rio Grande do Sul, um centro cultural, um ponto de parada para os barcos que fazem passeio pelo Guaíba, e, tão ou mais importante, um projeto de geração de renda para os desamparados moradores das ilhas de Porto Alegre. 


Karen Bruck, socióloga

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