Entrevista

Para celebrar um fim, que é meio

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Para celebrar um fim, que é meio

Perguntas para Celso Gutfreind e Luiz Eduardo Achutti a propósito do livro Poema azul – memórias do Estádio Olímpico

O autor das perguntas desta entrevista é colorado desde que se lembra, por aprendizado entre amigos e família. Não pensou em ser colorado: quando viu, já era. Um pouco isso é o que vive todo torcedor, talvez especialmente cá no Rio Grande do Sul, em que ser colocado ou gremista costuma configurar uma condição a ser honrada. Vai daí, o recém-lançado livro Poema azul – memórias do Estádio Olímpico, coedição da editora Casa Verde com a Bestiário, já por si me chamou a atenção. E os autores recomendam interesse: Celso Gutfreind e Luiz Eduardo Achutti são figuras de excelência em seus respectivos campos de atuação, Celso como poeta e ensaísta, Achutti como fotógrafo. Propus aos dois um conjunto de sete perguntas, para fazer os autores falarem mais, dando ao livro um destaque que ele merece. As perguntas foram enviadas aos dois em paralelo, e cada um respondeu por si. As respostas ajudam a entender um panorama de sentimentos que todo torcedor experimenta. 

 

Luís Augusto Fischer – Primeiro de tudo o começo: como nasceu a ideia desse livro? Imagino que tivesse desde sempre a ver com o fim do Olímpico, um fim que se prolonga e não acaba…

Celso Gutfreind – Nascimentos são sempre complexos, e as suas diversas origens podem se perder de vista. E, assim como um livro pode nascer de um outro, acho que este é aqui o caso. Em dezembro de 1999, Achutti e eu estávamos morando em Paris, quando uma tempestade se abateu sobre a cidade e o país. Era dezembro. A coisa foi tão feia que derrubou metade das árvores centenárias dos parques, incluindo o Bois de Boulogne, onde eu costumava caminhar. Lembro que fiquei impressionado, tentei fazer um poema sobre o que sentia e não consegui. Chamei o meu amigo para fotografar, ele ficou impressionado também, mas conseguiu fazer a sua arte. Mediado pelas fotos dele, o meu espanto pôde, então, escrever uma série de poemas em prosa, conversando com aquelas imagens. Disso tudo saiu o “Le Bois de Boulogne – o elogio da miopia”, publicado pela Tomo Editorial, no ano seguinte, com direito a lançamentos na Feira do Livro de POA e na prefeitura de Paris, com mostra de fotos do Achutti e recital dos poemas em português (por mim) e, em francês, por Jean Sarzana, o organizador do Salão do Livro parisiense. O livro percorreu um caminho lindo e ficou um gostinho de quero mais daquela parceria. Duas décadas depois, na Pandemia, quando, isolados, falávamos ao telefone para aplacar a solidão, veio a ideia de repetir a parceria com a história do Olímpico já em ruínas. Confesso que não lembro quem propôs, acho que fui eu, mas não tenho certeza, pode ter nascido da interação. O resto é outra bela história que não conto para não me estender demais.

Luiz Eduardo Achutti – O livro começa em Paris, sim em Paris, mais precisamente no ano de 1999. Cheguei para o meu doutorado na Paris 7 sob direção do cineasta Jean Arlaud, o Celso já estava lá, trabalhando e fazendo o doutorado dele. Os nacionais se aproximam mais no exterior, nós apenas nos conhecíamos de acenos. Lá ficamos amigos para sempre. A “costura” foi observar, registar, prosear a destruição. Celso me convidou para passear com ele no bosque com centenas de árvores caídas, como seres humanos mortos. Isso foi na sequência de uma enorme tempestade no dia 25 de dezembro de 1999, não prevista, que deixou uma lista de devastação que atravessou o mapa da França – o livro “La Tempete.  Le Bois de Boulogne l’éloge de la myopie” foi lançado na prefeitura do 3eme e na Feira do Livro de Porto Alegre. Há doze anos ou pouco menos, comentando que nosso Olímpico tinha sido jogado fora e estava destruído, resolvemos fazer novamente um livro sobre destruição e morte. Antes eu, a Kátia e o Pedro Ruas havíamos feito um Face chamado “Fica Olímpico”, que logo atingiu 1200 seguidores depois derrotados, deixados meio de lado.

 

 

LAF – Aliás, como foi que vocês, gremistas de ir a jogo, receberam a passagem (ainda inconclusa) do Olímpico para a Arena? E como foi que os pais ou tios de vocês contavam da passagem da Baixada para o Olímpico? Isso ecoava ainda no coração de vocês? (Eu cheguei a ir a alguns jogos no Eucaliptos!)

Celso – Eu recebi e recebo com muita tristeza, aumentada por este, como bem dizes, “fim que se prolonga e não acaba mais”, em função das condições suspeitas com que fizeram o negócio. Na época, já se desconfiava das péssimas intenções e, por mais que não existam provas concretas sobre a maracutaia, os desdobramentos sugerem que não foi um bom ou ético negócio. Mas o nosso livro não toma esse caminho. Não se trata de denúncia nem lamúria. Ele parte dos escombros do estádio, do ataque à memória, e busca resgatá-la através da poesia das palavras e das imagens. Em certo sentido, trata-se de um poema bastante longo como qualquer outro e de fotos maravilhosas que conversam com o poema. É um elogio à arte e à memória. Sobre o restante da pergunta, meu pai, a quem devo ser gremista, contava-me as histórias da Baixada. E algumas delas ainda hoje habitam uma parte bonita deste imaginário que sobrevive à ausência do meu pai.

Achutti – Nasci sozinho, como todo mundo, e me fiz sozinho no barulho de que o Grêmio seria Octacampeão Gaúcho. Naquele mesmo ano, com Obino, perdemos “para sempre” até o Inter ficar octa, ou seja fui, como sou até hoje, um bravo gremista dos 8 as 16 anos matando no peito a dor da glória alheia.  Quando criança pouco ou nada fui ao Olímpico, meu pai não ia a jogo, se fosse seria ali no estádio na terra dragada.

 

LAF – Dá pra lembrar momentos marcantes de cada um no Olímpico? E na Arena? 

Celso – Eu coloco dois na minha antologia pessoal: no primeiro, em 1977, eu estava com o pai na final do campeonato gaúcho, quando conseguimos interromper o Octa do Internacional. Estávamos bem perto da goleira em que André Catimba fez o gol do título e depois a cambalhota mal executada que o tirou da partida. Eu tinha 13 anos e nunca tinha visto o Grêmio ser campeão. No segundo, corta para 1983, eu estava com amigos, na final da primeira Libertadores contra o Peñarol. Eu estava perto da bandeirinha de escanteio, onde Renato cruzou para César fazer o gol decisivo. Arrepia hoje ainda. Da Arena, guardo as recentes conquistas da Copa do Brasil, do primeiro jogo da final da Libertadores contra o Lanús, a Recopa contra o Independiente, mas aí eu já estava meio velho, acomodado, tendo me transformado em um torcedor de sofá, longe do Humaitá, embora com a mesma paixão, alegria, sofrimento.

Achutti – Olímpico alguns, no suplementar tentando, pagando mico em teste para jogar na escolinha. Depois, também como goleiro, tomei dois frangos defendendo o time do Colégio João XXIII numa copa da Umespa. Eu era ruim, mas lateral, e o nosso goleiro ficou doente, o desgraçado. Eu jogava no gol futsal. Dois frangos de bolas que foram humilhantes. Lembro também a tristeza que foram o último jogo e o abraço ao Estádio Olímpico, os rituais de despedida. Eu há muitos anos afirmo que o Olímpico funcionava para mim, ateu, como as igrejas ou catedrais para as senhorias religiosas. Algumas vezes eu entrava no Olímpico à tarde, não tinha treino ou havia terminado, e eu ficava lá sozinho uma meia-hora, sentindo a energia do ambiente, “escutando” o rugir da torcida, imaginando glórias intermináveis. A Arena é uma empresa que detesta futebol.

 

LAF – Como é viver profundamente a condição de torcedor com a de poeta e a de fotógrafo, cada um a seu modo documentando publicamente a alegria e agora o luto pelo Olímpico?

Celso – Acho que o poeta conversa muito com o torcedor. Por mais que o poeta estude, leia e crie uma técnica para os seus poemas, sinto-o (me) movido mesmo é pela paixão, carnal, ardente. Ainda que amparado pelo cérebro, não sou um poeta cerebral. Sem a paixão (a sensação, etc.), o poema não acontece para mim. E tudo isso está na alma do torcedor.

Achutti – Depois dos cinquenta anos, o passar do tempo começa a pesar, a gente teme perdas e valoriza a memória, no mais amplo sentido. O mundo já me pertenceu mais. Nem vou comentar Porto Alegre, eu faria uma resposta com muita raiva e veemência.

 

 

LAF – Vocês lembram do Olímpico sem o anel superior, sim? (Eu lembro: fui numa final do Robertão, acho que em 1967. Devo ter em algum lugar a flâmula alusiva àquela tarde, com dois jogos sucessivos!) E lembram da passagem para a novidade que foi o anel superior concluído? 

Celso – Lembro vagamente do Olímpico sem o anel superior. Mas acho que pode ser uma lembrança falsa, pois não me vem um jogo específico à mente. No consciente e no coração, já é anel superior.

Achutti – Não tenho essa memória, comecei a me ligar aos 7, 8 anos. Lembro do goleiro Arlindo, do Alcindo, Flecha, Volmir… 

 

LAF – Quanto à transmissão desse sentimento que o livro expressa tão delicada e profundamente: como vocês viveram e vivem os filhos ou conhecidos mais jovens na sua ligação com o Grêmio? Dá pra ver alguma mudança importante entre a nossa geração cronológica e as novas, no que se refere ao sentimento de torcer?

Celso – De meu pai para mim a lembrança é esta: me transmitiu já nem lembro quando, é coisa dos primórdios. De mim como pai foi um desastre e aconteceu o que de pior poderia acontecer: a minha filha é colorada. Os versos do livro sobre a transmissão de pai para filha são ficcionais, aquela história da arte criando uma ilusão da vida que poderia ter sido e não foi. Sei que sou responsável por isso, mas reparto essa responsabilidade com a psicanálise. Sempre levei a sério o conceito de Freud sobre o narcisismo parental e a importância de dar liberdade de escolha para os filhos, não os fazendo aquilo que gostaríamos que fossem, deixando-os ser quem são, desafio principal de um ser humano. Ainda pratico o conceito em meu trabalho, mas em casa acho que exagerei. Não segui o conselho de um amigo (risos) de levar a filha ao Beira-Rio e não oferecer nada, depois à Arena e dar refri e cachorro-quente, “deixando” depois ela escolher. Felizmente, ela é hoje um pouco menos colorada, mas, quando está braba comigo (risos), costuma ainda recitar a escalação do Inter campeão mundial em 2006. O pior é que decorei. Sobre eventuais mudanças entre nossa geração cronológica e as novas, por um lado não mudou. Por outro, já adianto a resposta da próxima e vejo em muitos jovens o encontro de um cenário mais radical, de uma violência maior do mundo, transferida para os estádios. E já não podem mais entrar na torcida adversária, o que podíamos fazer, com menos risco ou pelo menos sem o risco de perder a vida.

Achutti – Meus filhos são gremistas, o guri fica mal com derrota do Grêmio, com incompetentes exibidos ou com aqueles que tratam nosso time como asilo de repouso de aposentados.

 

 

LAF – E aproveitando: como vocês vivem o lado exacerbado do grenalismo imperante? Chega a incomodar? 

Celso – Seguindo, este lado exacerbado é terrível e se torna uma representação fundamental de se o mundo tem ainda alguma salvação para as suas questões climáticas, e mesmo de tolerância. De sobrevivência, enfim. Aqui, o futebol se presta de metáfora para o quanto nos tornamos, nesta sociedade narcisista, destrutivos e intolerantes. Felizmente, há brechas e há esperança. Ainda posso brincar com alguns amigos que tomaram a direção errada (risos) de se tornarem colorados, como com este que agora me entrevista.

Achutti – O Brasil e o mundo estão exacerbados, mundo ficando estranho, pessoas ignorantes e egoístas que têm orgulho de sê-lo. A falta de respeito e memória nos leva de volta ao fascismo, muito pior do que o de antes. 

 

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