Entrevista

Marcelo Backes: 100 anos da morte de Franz Kafka

Change Size Text
Marcelo Backes: 100 anos da morte de Franz Kafka Foto: Autor desconhecido

Luís Augusto Fischer entrevista um dos principais tradutores de Franz Kafka no Brasil, a propósito dos cem anos de morte do autor

Luís Augusto Fischer – Tu consegues recompor os teus passos iniciais na leitura do Kafka? Foi leitura jovem? Escolar? Acadêmica? 
Marcelo Backes – O primeiro contato com Kafka aconteceu já no falecido segundo grau, como bibliotecário do Seminário São José de Cerro Largo. O interesse mesmo veio mais tarde, quando estava na faculdade, “apesar” de estar estudando Jornalismo. E me lembro de como era curioso constatar – além da visão de mundo estranha do autor, sabida e divulgada –, que a leitura de Kafka em alemão não era assim tão difícil.

LAF – Para quem não te conhece, por favor lembra, em linhas gerais, a tua formação e trajetória.
MB – Pois é, nasci e cresci nas Missões, na hinterlândia do Rio Grande do Sul, no interior de um minúsculo município chamado Campina das Missões. Descobri cedo que a melhor maneira de alcançar o mundo seria indo ao seminário, onde fiz um ótimo segundo grau, que me preparou para passar no vestibular de Jornalismo da UFRGS. Logo constatei, inclusive pelas intervenções pedagógicas do para mim caro e querido entrevistador, que meu negócio era a literatura. Fiz o mestrado em Literatura Brasileira diretamente, sem a graduação, depois de concluir o Jornalismo, e em seguida fui fazer meu doutorado em Literaturas Germânicas e Latinas na Universidade de Freiburg na Alemanha, já com uma breve carreira de tradutor, que se avantajou mais tarde, paralela à de escritor mais ou menos bissexto e também à de professor e palestrante de cursos privados, que é o que eu mais faço hoje em dia. 

LAF – E como aconteceram as tuas traduções da obra dele? Imagino que naquela altura tu já tivesses um domínio seguro do repertório da obra dele; como foram então as escolhas para os títulos? Algo da tua preferência pessoal pesou mais do que conveniência de mercado?
MB – Eu tinha um ótimo contato com Ivan Pinheiro Machado e havia traduzido o Werther de Goethe com sucesso para a coleção de pockets da L&PM. Sugeri ao Ivan traduzir as obras mais importantes de Kafka e, para acrescentar algo e fazer alguma diferença, acrescentei comentários e notas de rodapé bem abrangentes, além de glossários e material anexo, chamando as edições de Edições Comentadas, inclusive para justificar estilisticamente as intervenções, já que penso que a nota de rodapé é uma decisão estilística e, portanto, uma decisão do escritor e não do tradutor. E assim fiz A metamorfose (publicada junto com O veredicto porque propus um diálogo edipiano entre as duas obras), Carta ao pai e O processo. Mais recentemente publiquei, aí já mais por uma preferência pessoal vinculada a uma tese desenvolvida no posfácio do que pelas exigências do vil mercado, uma antologia chamada Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias, pela Civilização Brasileira. Essa antologia traz todos os escritos de Kafka que apresentam seu personagem central no título e eu a organizei para demonstrar como o autor tcheco é sempre o mesmo, apareça na feição de camundonga ou de cão, de solteirão ou de pai de família, de médico rural ou de professor de aldeia, de comerciante ou de vizinho, de Sancho Pança ou de Bucéfalo, de Prometeu ou de Posêidon, de um pião a rodar ou do filósofo que o persegue, até mesmo de indígena ou de campeão de natação que não sabe nadar. Pois, sim, o herói de Kafka é sempre o mesmo, Kafka é sempre o mesmo em suas narrativas. Ele mesmo. 

LAF – Tu consegues dar uma ideia, para o leitor brasileiro, do tipo de alemão em que ele se expressou por escrito? Teria algum paralelo na língua portuguesa? Para conhecer essa modalidade de língua/linguagem do Kafka, foi importante ter vivido no mundo germânico? 
MB – Kafka não é difícil de ler em alemão e, portanto, também não de traduzir, não em termos de vocabulário; esta foi uma das primeiras coisas que me marcou, aliás. Costumo brincar dizendo que Kafka usou um décimo das palavras que Thomas Mann usou. É como se Kafka reduzisse a riqueza da língua alemã a trezentas palavras, com as quais mesmo assim consegue forjar um estilo que o torna único e, além disso, um dos maiores estilistas da prosa alemã. Talvez porque o que Kafka escreve seja ele mesmo, o ser em si. Sua literatura é seu “eu” feito letra; e seu estilo inclusive é marcante, embora uma das maiores características desse estilo seja a impessoalidade; ele é ironicamente burocrático, às vezes, e formalmente adequado ao conteúdo que se aplica. É como se Kafka não necessitasse da muleta do estilo – em seu aspecto subjetivo – para fazer brotar seu eu, sua individualidade. E talvez por isso mesmo seja bem difícil encontrar comparações, sobretudo estilísticas, em autores da língua portuguesa. O contato direto com o mundo germânico foi importante no sentido de tornar mais precisas algumas noções da língua também plebeia que Kafka utiliza, que por outro lado estava bem próxima daquela que eu ouvia já no interior do Rio Grande do Sul e que tornava tão compreensível para mim o fato de a empregada grosseira de Gregor Samsa, no único murmúrio de identificação ao longo de A metamorfose, chamá-lo de Mistkäfer, ou seja, de “rola-bosta”, coisa que não necessariamente identifica sua tipologia entomológica, mas mostra, de qualquer modo, não se tratar de uma barata. Algo muito importante, porém, foi conhecer Praga, seu caráter barroco um tanto opressor, as ruelas do bairro judeu, o Castelo de Praga. E isso me foi propiciado indiretamente pelo fato de viver 6 anos na Alemanha. 

LAF – E que tipo de demandas, embaraços, imposições, restrições esse alemão da escrita dele impôs, na tradução? Tu podes dar algum exemplo?
MB – A coisa mais difícil no texto de Kafka é fazê-lo parecer engraçado como ele sem dúvida é, tornar justificadas as gargalhadas que o próprio Kafka dava ao ler em voz alta trechos de seu Processo para amigos. Palavras, como o iídiche que aparece aqui e ali, são sempre fáceis de solucionar, e o íidiche aliás também tem, curiosamente, muitas semelhanças com o dialeto alemão que eu já falava no interior do Rio Grande do Sul; alcançar o ritmo e a ginga, a ironia sutil do texto original é que é difícil. Talvez o exemplo mais cabal de um embaraço seja de outro jaez, e eu matutei acerca dele um bom tempo. Verwandlung é muito mais “transformação” do que “metamorfose”; uma palavra trivial no alemão, usada na linguagem mais comum. E isso fica claro quando se diz, logo no início de A metamorfose, que, depois de uma noite de sonhos intranquilos, Gregor Samsa amanheceu “metamorfoseado” (verwandelt) num inseto monstruoso. Eu cogitei chamar a minha tradução comentada de A transformação, mas me senti traindo o leitor, que pensaria, diante da capa, que se trata de uma novela de Kafka que ele ainda não conhecia. São essas coisas que já se cristalizaram numa tradução talvez equivocada, difíceis de mudar. Não dá mais para “metamorfosear” a Carlota de Werther em Charlotte, embora seja completamente deslocado e descontextualizado imaginarmos uma alemã provinciana do século XVIII chamada Carlota. Inclusive porque a Carlota em Weimar de Thomas Mann também já foi publicada no Brasil. E Martin Luther continua sendo Martinho Lutero aqui no Brasil.

Marcelo Backes. Foto: Divulgação

LAF – Na tradição brasileira e de língua portuguesa, qual é o panorama das traduções do Kafka? Para ti, a obra tradutória do Modesto Carone (que traduziu acho que toda a ficção dele e ainda escreveu ensaios sobre o seu processo de trabalho na tradução) teve importância? Dá pra dimensionar esse diálogo entre tradutores, no caso concreto? E os picaretas que também lidaram com a obra do grande escritor, o que dizer deles?
MB – Antes de Modesto Carone tivemos vários picaretas, muitos deles bem conhecidos, que chegaram por exemplo a suavizar a imensa libidinosidade, a concupiscência de Kafka, fundamental em sua obra. Tanto que eu acho que O processo propiciaria um filme profundamente pornográfico e extraordinariamente existencial; uma pena que este aspecto e algumas outras descobertas de foro pessoal em relação a Kafka, tenham feito dele, 100 anos depois de sua morte, uma das mais recentes vítimas do assim chamado cancelamento. Pobres e pundonorosos apóstolos do cancelamento, mal sabem que Kafka já cancelou o mundo inteiro previamente em sua obra. Meu grande problema com Carone era que eu havia lido as traduções dele com tanto cuidado que tinha de me libertar delas para fazer as minhas, inclusive porque tenho uma memória muito boa, daquelas que sabe vários poemas e vários trechos de livro inteiros de cor. Hoje em dia temos algumas traduções das principais obras de Kafka, acho que A metamorfose deve ter uma cinco ou seis, e isso é sempre bom, mostra um mercado editorial saudável e propicia um debate cada vez mais profundo sobre a tradução, que tem sido levada mais e mais a sério, depois de ter passeado pelo diletantismo durante tanto tempo. E, como diz o Mefistófeles de Goethe, o lugar dos diletantes, pelo menos no que diz respeito às coisas sérias do espírito, é no inferno. 

LAF – Uma questão pessoal: tu estiveste em Praga, a cidade em que ele nasceu e se criou? E alguma moradia ou espaço em que ele circulou? Isso ajuda a traduzir?
MB – Sim, estive em Praga, e isso foi muito importante. Ao se ver e compreender o espaço em que Kafka circulou, as ruelas opressivas do bairro judeu, as ruas em que morou, com certeza se entende um pouco melhor o sujeito acossado das obras de Kafka, o desespero de seu indivíduo moderno em relação à existência, essa eterna busca de algo que não está mais à disposição, sua pergunta por aquilo que não tem resposta e seus personagens vítimas de um enigma insolucionável, o da própria existência. A geografia externa ajuda a decifrar a geografia interna, sem dúvida.

LAF – Da obra ficcional dele, teu coração se inclina para qual título ou qual gênero de texto? E dos materiais outros que ele deixou, anotações, diários, aforismos, cartas, algo se move mais nitidamente? Por quê?
MB – Os aforismos, com feição de miniconto, de Kafka, estão entre as minhas coisas preferidas em sua obra. A metamorfose obviamente é uma das maiores novelas jamais escritas e O processo forneceu praticamente a cifra de todo um século, cunhando inclusive aquilo que hoje chamamos de kafkiano, embora Kafka, é a ironia das casualidades, sempre dissesse que o que havia de peculiar e problemático, ou seja, de “kafkiano” nele, vinha dos Löwy, da família de sua mãe e era, portanto, “löwyano”. Os diários de Kafka também são preciosos. Mas que coisa maravilhosa é o aforismo que diz que o ponto em que não há mais retorno é justamente aquele que deve ser buscado. Ou então sua aforística “Pequena fábula”, apresentando um rato que se queixa do mundo, dizendo que não é mais livre, que se sente acossado, cercado; no último canto do recinto em que o rato está, existe apenas a ratoeira para a qual corre; mas então eis que o gato se insinua e lhe diz: muda a direção da corrida – e o devora. O ser humano entre a cruz do processo civilizatório e a caldeirinha das pulsões jamais foi tão bem descrito em sua falta de saída, fora as outras mil interpretações. Em outro aforismo, Kafka simplesmente diz: “As gralhas afirmam que uma única gralha conseguiria destruir o céu. Isso é indubitável, mas não prova nada contra o céu, pois o céu significa justamente: impossibilidade de gralhas.” Perturbador e maravilhoso como tantos outros, esse aforismo diz que o céu é uma coisa muito boa, e que as coisas que o destroem, as gralhas, sabem que precisam apenas aparecer e já lhe põem uma mácula, já fazem com que não pareça um céu. Mas isso não impede a noção de céu, ou seja, que o céu continue existindo, não faz com que o céu não exista, deixe de existir. E o céu, em sua pureza e grandiosidade, significa que as gralhas não são possíveis, pois não as deixa aparecer, não permite que elas, portanto, o destruam. É só as gralhas que pensam que podem destruir o céu, que podem, uma só delas, destruí-lo. Mas apenas se o céu permitir, se o céu der a chance à gralha. Ou se nós, dilacerados entre céu e gralhas, permitirmos. O dado cabal e doloroso, porém, é que Kafka significa “gralha” em tcheco. Imagine-se, pois, a dor.

LAF – Que te parece essa ampla biografia do Kafka que está sendo lançada no Brasil pela Todavia, de autoria de Reiner Stach? É mesmo o que se anuncia dela, uma obra para sempre?
MB – É uma das maiores e mais completas biografias jamais escritas; e aí não me refiro apenas às biografias de Kafka, mas a todas as biografias. Um verdadeiro modelo do gênero, que sabe estabelecer pontes perfeitas e filosoficamente profundas entre a vida e a obra de Kafka e a análise de ambas. Rainer Stach ademais sabe que compreender a vida de Kafka é produtivo, assaz produtivo, para potencializar sua obra, inclusive para poupar de alguns deslizes o mau leitor, que lê uma obra literária buscando fofocas sobre o autor, se comportando como um amante psicopata, conforme diz Amós Oz em De amor e trevas. O que faz esse leitor e amante psicopata? Simplesmente salta sobre a mulher que cai em suas mãos, rasgando sua roupa, para depois, quando ela já está completamente nua, continuar em sua sanha e arrancar sua pele, impaciente, jogando fora a carne para só então, conforme diz Oz, quando já está chupando seus ossos com os dentes grosseiros e amarelados, se dar por satisfeito e dizer que chegou. A essência de uma grande narrativa não deve ser buscada no espaço entre a obra e seu autor, mas sim no território que fica entre o texto e seu leitor. E que prazer saber que em setembro estarei com Rainer Stach, conversando à mesma mesa na Flipomerode, que aliás homenageia o grande autor tcheco e lembra a efeméride dos 100 anos de sua morte.

LAF – Há algum autor americano, do norte ao sul, que se possa considerar como herdeiro (ou “precursor”) do Kafka, ou se não herdeiro um interlocutor relevante? Por quê?
MB – Roberto Bolaño, para ficar em apenas um grande escritor recente do universo americano e sulino, certamente alimentou uma relação muito produtiva e nem sequer disfarçada com a obra de Kafka. Creio até que os dois se aproximam até mesmo no estilo, que tentei delinear em resposta anterior. E a ponte já é dada inclusive por uma coisa muito concreta como a doença em sentido estrito e a morbidez em sentido amplo. O próprio Bolaño confessa literariamente o parentesco, visível em toda sua obra, em El gaucho insufrible, seu testamento literário. Já na epígrafe da obra, Bolaño cita “Josefine, a cantora” ao anotar que ao final das contas talvez não percamos tanto assim, não precisemos abrir mão de muita coisa. E como isso se torna ainda mais sublime quando lembramos que o próprio Bolaño também estava morrendo e, portanto, se associa à tocante e sofrida camundonga cantora de Kafka. Sem contar que Pepe, o narrador do conto “O policial dos ratos”, também ele roedor, mas não cantor, e sim agente de segurança, se diz sobrinho da famosa camundonga kafkiana. Isso para ficar apenas nos indícios mais evidentes do que também poderíamos chamar até de filiação. 

LAF – O que o Kafka diria da genial intuição, em tom meio de blague, do Jorge Luis Borges, naquele ensaio “Kafka e seus precursores”?
MB – Acho a sacada de Borges genial e não tenho dúvidas de que Kafka ficaria encantado. Aliás, como Borges cresce a cada nova leitura, tornando-se cada vez maior do que Gabriel García Márquez, por exemplo! Borges percebe que Kafka é tão peculiar, mas tão peculiar, que tem de ter tido ancestrais que apresentaram pelo menos embrionariamente o que ele condensou de modo tão completo e acabado. E é então que a pesquisa do passado começa. E Kafka por assim dizer cria seus precursores, que talvez fossem esquecidos se Kafka não os ecoasse de modo tão perfeito, tornando universal e abrangente aquilo que neles era episódico e localizado. Esse é Borges. Mesmo assim, quando se lê um grande autor como Kleist e sua novela Michael Kohlhaas se percebe muito bem que nada surge do nada, e o próprio Kafka, aliás, admitiu ser parente consanguíneo de Kohlhaas, o personagem de Kleist, que também não encontrou jamais seu lugar no mundo. 


Marcelo Backes é doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha, onde também lecionou por dois anos. Escritor, tradutor, professor e crítico literário, traduziu boa parte das obras principais de Kafka em edições comentadas e organizou a coletânea Blumfeld um solteirão de mais idade e outras histórias (Civilização Brasileira), na qual apresenta um longo ensaio acerca da obra do autor tcheco. Autor de A arte do combate (Boitempo, 2003), Lazarus über sich selbst (sua tese de doutorado sobre o poeta alemão Heinrich Heine, Frankfurt, 2005), Estilhaços (Record, 2006), maisquememória (Record, 2007), um romance de viagens, Três traidores e uns outros (Record, 2010), um romance em quatro fragmentos, O último minuto (Companhia das Letras, 2013) e A casa cai (Companhia das Letras, 2015). Bolsista da Academia de Artes de Berlim em 2010, já conferenciou na Universidade de Viena e na Universidade de Hamburgo, entre outras. Coordena a edição das obras de Arthur Schnitzler pela Editora Record e a coleção de clássicos Fanfarrões, libertinas & outros heróis pela Editora Civilização Brasileira. Ganhador do Prêmio Nacional da Áustria e do Prêmio Paulo Rónai da Academia Brasileira de Letras, entre outras láureas.

RELACIONADAS
;
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.