Entrevista

Luís Augusto Fischer entrevista Xico Sá

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Luís Augusto Fischer entrevista Xico Sá Xico Sá

Entrevista a propósito do lançamento do livro Cão mijando no caos

Luís Augusto Fischer – Cronista flâneur, cronista hippie, cronista sustentável, cronista 100% ensino público, teu livro tem uma impressionante série de adjetivações para o camarada que escreve crônicas. Isso quer dizer que não há mais inocência para o cronista intuitivo? A tua crônica é (precisa ser) autoconsciente o tempo todo? É uma fatalidade do nosso tempo?

Xico Sá – De tanto decretarem a morte da crônica, meu caríssimo, imagina a condição do camarada que ganha a vida — profissionalmente — com este ofício? Sente-se um obsoleto, um desnecessário, um artista da fome. Daí a necessidade de realizar a sua constante “prova de vida” diante do seu público. As adjetivações, como chifres espalhafatosos, servem para chamar a atenção. E ainda funcionam como a técnica do  distanciamento no teatro. É urgente mostrar que existe alguém ali por trás do texto, escrevendo ao rés do chão.    

LAF – Os dois versos do famoso soneto do Drummond que servem como epígrafe ao livro – “cão mijando no caos, enquanto Arcturo, / claro enigma, se deixa surpreender” – são ao mesmo tempo claríssimos (um cão mijando no caos o leitor brasileiro consegue vislumbrar, imaginando) e obscuros – o que é que o leitor faz com esse Arcturo? O que é que tu faz com ele? 

XS – Arcturo faz a gente sair da condição simples e terrena do cotidiano e viajar na via láctea. É nossa síndrome de Bilac, nossa verve “Ora direis ouvir estrelas”. A gente sai da realidade do vira-lata no beco e, bruscamente, alcança as constelações mais distantes. O cão sujo é a crônica, Arcturo talvez seja a nossa infame (e engraçada) herança beletrista.

LAF – As tuas crônicas são um espetáculo de alusões, cumprimentos, safanões, evocações tanto de cenas triviais brasileiras quanto de palavras, frases, imagens que a cultura letrada nacional oferece, como repertório aberto. Como tu imagina a reação do teu leitor, na hora da escrita? Que retornos de leitura já te aconteceram, já chegaram a ti? Alguma vez houve reclamação, tipo “não entendi”?

XS – Às vezes preciso limpar um pouco do texto as citações, as referências literárias, cinematográficas ou musicais. É um defeito do citador voraz, que pode resvalar para o  enxerimento cult ou o exibicionismo besta. Acho que é coisa de matuto pós-moderno deslumbrado com novos mundos. Mas já recebi algumas queixas por causa dessa embolada. Sim, de leitor cansado de ir ao Google a cada parágrafo. Muita gente, no entanto, se identifica e sente feliz quando bate uma certa telepatia na nossa erudição de boteco ou de banco de praça.

LAF –  Li teu livro com muito gosto e prazer, tanto pela beleza do universo que tu mobiliza – dá uma sensação de euforia visitar e revisitar tantos escritores, cancionistas e filósofos de botequim que são convocados pela tua verve – quanto pela identificação geracional (também passei dos 60). Mas me dou conta que é mais: o teu espírito de botar em conversa autores de todos os tempos e lugares, desde que sejam gente boa, tanto quanto de confrontar o horror bozozoico que nos acometeu por quatro anos e não cessou de existir e o autoritarismo e caretice. Confissão feita, a pergunta é: de onde vem esse espírito? E como mantê-lo vivo?

XS – Poxa, essa tua leitura me traz a alegria que sacode para novas histórias e riscos. Gracias. Esse espírito talvez venha daquele mote “Se entrega, Corisco!/ Eu não me entrego não!” Não podemos nos entregar ao luxo paralisante dos existencialistas debaixo de um solzão danado desses — embora, cá entre nós, eu já tenha bancado o Sartre da Várzea (bairro do Recife onde bebi deveras) nos anos 1980. Que o Corisco sempre fale mais alto em nossos corações, amém.

LAF – O politicamente correto te incomoda? Como lidar com ele, por exemplo ao continuar a ler Nelson Rodrigues, gênio da língua e/mas reacionário e claramente machista? Te custa algum esforço intelectual? Te fazem cobranças ao citar um cara como ele?

XS – Acabei de reler todos os livros de crônica do tio Nelson. Uma leitura de estudo e treino, para pegar o máximo possível aquele jeitão hiperbólico e passional. É o meu reaça favorito, estou condenado a amá-lo para sempre. Óbvio que discordo de muita coisa da sua loja de frases incríveis. Sinto que havia muito mais de personagem naquela criatura do que de um sincericida profissional. Os cronistas, desde João do Rio (o dândi), faziam tipos. Repare no Rubem Braga, veja que tipo espetacular na sua falsa simplicidade de sabiá da crônica!  

Foto: Divulgação
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