Entrevista

Luís Augusto Fischer entrevista Tau Golin

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Luís Augusto Fischer entrevista Tau Golin

Querendo conhecer ou sabem mais de uma personagem complexa? Aqui está Tau Golin. Para descrever o que ele faz a partir do presente: é historiador, professor e pesquisador ligado ao mundo dos séculos 17 e 18 do sul da América, com uma obra em curso das mais significativas. E é proprietário de barco, mas barco daqueles que enfrentam mares. Ele passa tempos embarcado, nos últimos anos, tendo empreendido viagens pelo Atlântico – sim, já foi à Europa, por exemplo. 

Mas seu passado é rico em experiências. Campeiro e hábil ginete, foi instrutor de atores, nos filmes do Tabajara Ruas, para preparar cenas de cargas de cavalaria. Foi aprendiz de aqualouco. Foi ator e jornalista, assim como foi estudante universitário mergulhado na vida acadêmica. Inventou e editou jornais em Santa Maria e em Porto Alegre. Quase perdeu uma perna em acidente de trem. Foi assessor de sindicatos e membro de partido clandestino. Escreveu corajosos textos que mobilizaram a opinião pública e fustigaram conservadores. É autor de uma série de livros de história destinados à condição de clássicos, além de ter coordenado uma impressionante coleção de História geral do Rio Grande do Sul. Isso para não falar de sua ficção de suas incursões em poesia.

Como dizia o narrador dos Contos gauchescos para encarecer ao leitor que prestasse atenção à fala do grande Blau Nunes e suas histórias, repito eu agora: Patrício, escuite!

LAF – Começando pelo presente: tu estás aposentado como professor de História na Universidade de Passo Fundo, mas ainda orientas pesquisas e a pós-graduação, é isso?

TG – A pandemia mexeu muito comigo. O sentido de finitude tomou meu cotidiano. A morte, com quem sempre vizinhei desde criança, me habitou cotidianamente. Um irmão ficou semanas entubado. Minha mãe morreu durante a pandemia e por efeito dela. Estava baixada na Santa Casa e recebeu alta conforme a norma de liberação de leitos para infectados, vindo a falecer dois dias depois em casa. E eu peguei covid antes da vacina. Foi terrível. Estava embarcado, sozinho. Passei uma semana horrível. Poderia ter morrido na lagoa dos Patos. Eu só pensava: a partir de agora quero exclusividade do meu tempo. Já estava aposentado pelo INSS e tinha tempo também para aposentadoria pela BBPrevi. Fiz os cálculos. Concluí que poderia viver. Brinquei com minha filha: se no futuro precisar de salário aceito o de caseiro no teu minifúndio.

Oficialmente, os meus orientandos passaram para os colegas. Mas fica sempre o compromisso com os alunos, que ainda, em alguns casos, entram em contato. Como sempre pesquisei antes de entrar na universidade e durante, independente de carga horária para investigações, continuo fazendo a mesma coisa. Sinto falta da confraria acadêmica, da convivência direta com os alunos, mas, como estou sofrendo a síndrome do tempo, vou continuar tirando dos próximos 20 ou 30 anos, no mínimo, o que puder. 

LAF – Desde quando tu trabalhas na UPF? Quando começaste lá tu já tinhas concluído o doutorado? 

TG – Comecei na UPF em 1996. Havia terminado o mestrado em História na PUCRS, depois de ter feito a graduação saltando pelos cursos da PUCRS, Fapa e conclusão na UFRGS, em razão da adequação com o trabalho. Havia decidido pela vida acadêmica em uma perspectiva de “último recanto da liberdade”. Estava farto da assessoria política e continuava com os bloqueios no jornalismo, geralmente devido a uma certa fama de dizer a verdade e manter posições firmes, que se traduziam por polêmicas. 

Ir para Passo Fundo foi meio por acaso. Eu precisava escolher uma universidade que tivesse algumas garantias institucionais, com plano de carreira claramente formalizado, liberdade de cátedra, etc.; uma universidade em que, ao entrar por concurso, vivesse o rito de uma constitucionalidade clara. A UPF tinha isso. Além do mais era “comunitária”, sem dono e sem interferência das forças políticas, econômicas e religiosas externas. Além do mais, como estava em processo de garantir a sua condição de Universidade, precisava em seu quadro docente de 30% de mestres e doutores. Por isso, mestres tinham adicional de 30% de titulação em seu salário; doutores, 50%. Era mais atrativo que as federais.

Fiz concursos para Comunicação Social e História. Passei em 1º lugar nos dois. Sem bolsa, comecei doutorado na PUCRS. Aulas todas as segundas. Saía de Passo Fundo com meu potente Gol 1.000 às 3h. Tinha aula toda a manhã. Almoçava no RU, dormia dentro do carro uma hora. Depois pegava os 300 km de volta, para ministrar aula à noite. Durante o mestrado havia feito o máximo de cadeiras que pude. De modo que faltavam poucas, podendo fazer uma apenas por semestre. Na PUCRS estreitei relação com professores-pesquisadores dedicados, como o Klaus Hilbert, a Maria Cristina dos Santos, o René Gertz, o Arno Kern (meu orientador, que fora meu professor na UFRGS), além de outros. 

Com a escolha acadêmica, afastei-me da assessoria de imprensa e do jornalismo diário. Mantive-me como articulista e fazendo matérias de conteúdos históricos, para jornais e revistas. E na UPF coordenei a aprovação no Congresso Nacional do seu sistema de comunicação multicampi, com implantação de TV e Rádio. Criei o Departamento de Midiologia junto à reitoria, que passou a cuidar de toda a mídia, publicando um jornal institucional e o caderno UPF Cultural, editado pela Faculdade de Comunicação. 

LAF – Vista em panorama, tua trajetória de vida tem um tanto de rocambolesco, não é? Faz alguns anos que tu te dedicas, em paralelo, à pesquisa e à produção de livros importantíssimos de história, de um lado, e ao mundo da vela, ao mundo náutico. Foi o estudo do século 18 na região que te levou aos barcos? Como começou?

TG – Tenho convicção que a centralidade do conhecimento é autodidata. Ninguém pode saber por nós. O conhecimento não se transmite. Toda a informação passa a ser conhecimento quando abstratamente é significada, é colocada nas perspectivas de sentidos. No nosso caso, quase sempre em narrativas, costuradas pelas palavras.

As leituras e pesquisas documentais sobre a história colonial conectou a minha vivência com uma espécie de ethos sulino. Não só o Sul brasileiro, mas todo o leste das cordilheiras da América do Sul são habitats de águas. Eu nasci e ainda vivo em duas bacias gigantescas, as dos rios Uruguai e do Jacuí, esta com suas conexões com o Vacacaí, Guaíba, lagoas dos Patos e Mirim. Todo o dilema sulino é não se perceber como parte de um universo de águas, não as compreender como meio e potência hídrica indestrutível. Criou-se um imaginário sobre as águas que elas são empecilhos que poderiam ser corrigidos pela engenharia da destruição. 

Os cosmógrafos, pilotos, engenheiros, militares do período colonial fizeram da natureza leituras corretíssimas, que foram sendo abandonadas gradativamente. No final do século XVII já se tinha consciência que das latitudes das bacias do Paranapanema, Alto Paraná e Paraguai ao Rio da Prata existia um espaço de rios, lagoas e lagunas, em topografias de serra, planalto e planície. Na perspectiva de quem chegava do mar, o atual Rio Grande do Sul era nominado como “Rio Grande das Alagoas”. Basta olhar uma imagem de satélite para visualizarmos um enorme canal com potência de rio, como foz marítima de laguna, lagoa e rios que adentram centenas de quilômetros até o Planalto Médio, a Serra (Alto Jacuí), a Campanha (Vacacaí) e o Escudo Rio-Grandense (Camaquã, Jaguarão etc.) Essas bacias estavam associadas a incontáveis lagoas na planície costeira, entre as quais serpenteava a estrada do litoral brasileiro até o rio da Prata. Associado ao canal com conexão atlântica e ao Jacuí, por muito tempo, o território era oficialmente nominado Continente do Rio Grande de São Pedro (junção da topografia com o santo padroeiro), e os habitantes eram reconhecidos pelo gentílico de “continentinos”. Além da documentação oficial, vide a literatura do Érico Veríssimo. Por fim, permaneceu Rio Grande do Sul para diferenciar de Rio Grande do Norte, mais antigo, assim como no século XVII o plural “Alagoas” era usado com os acréscimos topográficos de diferenciação dos lugares do Norte e do Sul. Se o Rio Grande não tivesse predominado por força da geopolítica, com uma guerra de 13 anos na fronteira do Rio Grande (1763-1776) – entenda-se canal, lagoa dos Patos e Jacuí -, teria uma grande chance de sermos identificados como “alagoanos do sul”.   

Já a paixão pelos barcos vem desde a infância. Como guri de rio, os botes eram lúdicos, para brincadeiras, mas também veículos para transitar perigos. Meu pai pescava de linha, rede e tarrafa. Alguns botes usavam remo e vela, principalmente para subir na correnteza, com vento de popa. No golpe cívico-militar de 1964, eu com nove anos, ajudei ele a cometer o maior ato “terrorista” da região. Levamos uma enorme tartaruga dentro de um saco, do rio para casa. Durante a noite, pintamos todo o casco com tinta de paneleiro, fosforescente, e ele escreveu em vermelho: “PTB”, o partido popular inimigo dos golpistas. Na outra noite, simulamos uma pescaria para largá-la. Durante dias ficou sobre as pedras, mostrando o panfleto anfíbio. A cassa àquele “agente do comunismo internacional” mobilizou agentes públicos e canalhas. Meu pai não podia comemorar, mas ria por dentro. Foi o meu ritual de passagem para o segredo e o pacto.

Certamente essas vivências potencializaram um certo método da aderência. Escrever preferencialmente sobre coisas em que consigo imergir e criar conexões existenciais. Perceber as historicidades dos lugares. Há anos encontrei um trabalho de arquitetura na Sorbonne em que a pesquisadora destacava isso na minha escrita referindo-se às conexões que eu fazia entre a minha adolescência e juventude em São Gabriel, quando morava no território em que Sepé Tiaraju cavalgara, foi ferido, torturado e morto em fevereiro de 1756, nas proximidades da Sanga da Bica. A cidade é um espaço de campo e rio. Só muito mais tarde fui desvendar uma fotografia de 1928 da caixa de lembranças da minha vó. Era uma embarcação atracada em um trapiche no meio da Campanha, com a inscrição no verso: “Vaporzinho São Gabriel – Porto Alegre”. Como assim? Sim, tinha linha regular pelas águas do Vacacaí, Jacuí e Guaíba!

Quando vivi em Santa Maria, de 1972 a 1986, acentuou-se bastante o gosto das heranças das vivências campeiras. Mas quando fui para Porto Alegre, o Rio Guaíba era um convite ao delírio. 

LAF – E como se desenvolveu essa relação? Quais foram os passos e os barcos desse processo?

TG – Depois de navegar nas embarcações dos outros, juntei um dinheirinho com uma causa trabalhista e comprei um Bruma 19, um veleirinho em que poderia me aventurar nas águas internas e na costa atlântica. Por ter bolina retrátil pude entrar em rios e lagoas, conhecendo espaços que outras embarcações não permitem. Navegava a bússola, por triangulações, e pelas experiências de outros navegadores. Dei-lhe o nome de Bela Bugra. Com ele naveguei a costa catarinense até Itajaí. Depois o levei para Passo Fundo e montei uma escola de vela na barragem do Capingui. Hoje, encontra-se em Tapes. 

Para moradia em Porto Alegre, adquiri um O’Day 23, veleiro um pouco maior, porém com mais conforto. Projeto norte-americano, com patilhão-bolina, que permite reduzir o calado para velejar também em água até 90 cm de profundidade. Batizei-o de Kaingang. Anos depois dei-o de entrada na compra de um Mod 30, também patilhão-bolina, com calado de um metro. Já estava de bom tamanho. Mas, ao correr do tempo, apareceu a oportunidade de colocar todas as minhas poupanças em um Trinidad 37, de nome Delírio III, veleiro oceânico, com dois camarotes de casal, dois banheiros, sala central com acomodação para duas pessoas, mais cozinha, geladeira, eletrônicos, motor de centro. 

Depois de mantê-lo longo tempo em Porto Alegre, nos últimos anos o seu porto é o Clube Náutico Tapense, na lagoa dos Patos. É um barco estimulador para uma volta ao mundo, que poderia agregar às minhas velejadas feitas na costa atlântica brasileira, regatas a Fernando de Noronha, Caribe, Mediterrâneo e uma travessia do Atlântico, passando pelos Açores até Portugal. Além de aprender bastante como comandantes experientes, fiz formação na Escola de Vela de Porto Alegre, Marinha do Brasil, Federação Internacional de Vela e Escola Catalana de Vela, com certificação de instrutor (professor). Para quem começou braceando nos rios do Peixe e Vacacaí, parece que não está mal. 

Capa do DVD com relato sobre a viagem pela Rota de Colombo. 

LAF – Queria voltar mais ainda no tempo. O teu começo: uma vez te ouvi contar, numa das Jornadas Literárias de Passo Fundo, sobre a tua família de origem, teu pai operário e jogador de futebol, mas também sobre como que rituais de iniciação ao mundo da natureza. Conta desse tempo, por favor.

TG – Eu me libertei quando entendi que era um ser de fronteiras, de entre-lugares, de relações de alteridades, um mestiço plural de raízes étnicas continentais, que se sentia parte de múltiplas territorialidades e identidades sociais. Vim ao mundo com a carga histórica e cultural dos encontros e das escolhas. Minha família materna é pampiana e mais longeva. Se formou inicialmente na fricção do espanhol com o indígena e outras cruzas da Banda Oriental do Rio da Prata. Meu bisavô Antônio Torres era uruguaio de Tacuarembó, onde tem inclusive uma região com o sobrenome e histórias de alguns ventenas. No início do século XX, depois das revoltas de Aparício Saraiva, ele se arrinconou no interior de São Gabriel, onde comprou uma estanciola, criou gado vacum e ovino. Por conhecer as veredas da pampa, capataziava tropas por toda a campanha e Uruguai. Quando migrou trouxe as técnicas de alambrador com o uso de arame, o que fez a sua fama e a garantia de empreitadas. Viveu nesse trânsito doble chapa

A pampa estava sendo retalhada pela ferrovia, a cargo de uma companhia da Bélgica. Então, o castelhano Antônio encontrou a belga Mariana Suzana (Suzano). Em uma penca de filhos veio também a vó Laura, que casou com Ricardo dos Santos, injetando na prole o brasileiro mestiço de afrodescendentes, mamelucos e cafuzos. Do enlace nasceu Zayra Torres dos Santos, minha mãe.

Na década de 1950, a jovem Zayra saiu da Campanha e foi morar com padrinhos em Carazinho. Conheceu e casou com Leonel Golin, filho de Regina Capitânio e Luigi Golin, este nascido em Gambelara, no Vêneto. Meu bisavô Lorenzo Golin, marceneiro e agricultor, tinha viuvado em 1891. Dois anos depois, aos 47 anos, migrou com quatro dos cinco filhos (Giulio, Elvira, Luigi e Emma) para um lote da Colônia Princesa Isabel (Bento Gonçalves). O quinto, Carlos, ficou com a família Ferrari da minha bisavó. Entretanto, Lorenzo logo viria a morrer de amor, imerso na depressão da perda da companheira. Seus filhos perderam o lote e foram “destinados” a famílias de colonos. Meu avô costumava dizer que era o jeito de conseguir mão-de-obra sem pagar, escravizando os órfãos. Ele foi o mais azarado, dado pelo padre a um casal que lhe tirava o couro no trabalho e nas tundas. Quando ficou mais taludo, fugiu. Cruzou por um biriba que comercializava mulas e tirava boi do mato. Aprendeu a profissão. E viveu dela, associada ao arrendamento de colônia, negócio de bodega e fiambreria, cuidadas pela nona Regina e os filhos – dos dezessete que pariu, só um não vingou. 

A lida e extração de produtos dos animais dotou os filhos de Luigi e Regina de uma especialização que os transformou em mão de obra útil aos frigoríficos. Meu avô empreitava tropear para muitos deles no norte do Rio Grande do Sul e no centro-oeste de Santa Catarina. Foi inclusive sócio-fundador do Perdigão, mas nunca fez fortuna. Suas histórias nessas veredas, travessias de tropas nos rios, são extraordinárias. 

Quando o Leonel conheceu a Zayra estava trabalhando no frigorífico Nacional de Carazinho, que empregava jogadores de futebol para o Glória. Ali estava também seu irmão Antônio, também operário-jogador (e depois juiz da federação gaúcha), que anos depois, morando em Vacaria, sugeriu o nome de Glória para o time local, em homenagem ao ex-escrete. Já Leonel, com a jovem Zayra, de 19 anos, para ter o primeiro filho, retornou ao frigorífico Ouro, em Capinzal, e jogar no Arabutã Futebol Clube. Então, ali, no vale do rio do Peixe, eu nasci como parte da segunda geração “italiana”. Recebi os nomes do avô Luiz e do tio-avô Carlos (que ficara na Itália).

Naqueles fundões sabíamos apenas que a família paterna veio da península itálica. Só depois compreendemos, com a escolaridade e as memórias fragmentadas dos mais velhos, que era amplíssima, conectada com ramos francês, russo, do leste europeu e do oriente médio, segundo alguns linguistas com raízes árabes e judias. Se essas pesquisas fossem mais longe, nos encontrariam no leste africano mais tisnados, que é de onde todos viemos. Na história moderna e contemporânea encontram-se muitos navegadores. Meu tio-avô Carlos foi capitão mercante. Na Segunda Guerra ficou detido com o seu navio no Canadá. E atualmente localizam-se marinheiros, regatistas, velejadores etc., principalmente na Europa e nos Estados Unidos (para onde os Golin da Rússia migraram). 

Em Capinzal se dizia que a Zayra era “negri”, refletindo o racismo colonial branco e eurocentrista. No geral, a origem é uma escolha. Assim como a identidade é uma práxis referenciada em paradigmas de seleções e vivências. Meu pai tinha duas leis gerais que ficaram como herança, meu código ético: “Não tenha vício que não possa sustentar, nem te acostume com as coisas dos outros!” Muitas outras coisas familiares, como em toda família, joguei fora e combato. Não suporto piadas racistas. E sempre tive uma sensação de libertação quando as mães “educavam” os filhos com recursos de terror para que fossem para casa: “Olha que os bugres vão te levar!” Não tinha estranhamento. Ficar junto aos seus acampamentos em trânsito era uma vivência transcendental. As andanças das famílias Kaingang pelo vale e os sons de seus tambores e cantorias que vinham da serra fazem parte do meu pertencimento. 

Luiz Golin e Regina Capitâneo Golin, avós de Tau Golin, com filhos, netos e genros.

Em uma regressão, é possível dizer que quando eu era criança vivia numa natureza e mundo do trabalho radical, quase sempre violento. As cartilhas e a educação infantil não tinham palavras para uma vivência no Vale do rio do Peixe, em Capinzal (SC), ou no Vacacaí, em São Gabriel (RS). Logo, livros escolares e cartilhas, só na palmatória. Lembro da cartilha de alfabetização, com a ilustração de um guri sonso e a frase: “Ivo viu a uva.” Aos 7 anos, quando fui para o jardim da infância, já tomava vinho com meu avô. Mais que criança, a gente era um ser em transição. Como se sempre estivesse em processo. Sentia-me um “homenzinho”, abancado com um copo de água batizado por algumas gotas de vinho, no círculo dos adultos. 

Lá pelos 10 anos, já comandava uma da trinca (nominativo para um bando, além de três) de “pé-de-porto” (apelido dos moradores da região do Frigorífico), em convivência ou peleias com os “porongueiro” (habitantes do Ouro), “abobreiros” (capinzalenses), ou “bundinhas” (gurizada do centro, também provocados pelo nome de “brigites”. Descia o rio nadando na correnteza da enchente. Exagerávamos na terminologia, pois só era possível quando subia apenas alguns metros. A peripécia consistia em subir pela via férrea que o ladeava. Depois jogava-se na água. Então, ia-se na velocidade do rio alguns quilômetros e saía-se agarrando-se em um galho de sarandi, que vergava e nos colocava no remanso da margem. Quando minha mãe queria ter um particular eu já ia para o lado do rio. Não poucas vezes, ela vinha atrás, gritando para os vizinhos: “Não deixe ele chegar no rio!” Se chegasse na barranca estava livre. Aos 11, “treinava” com um aqualouco que apareceu em Capinzal e ia fazer uma apresentação na ponte de ligação com a cidade de Ouro, quando meus tios, por meu pai estar hospitalizado em Curitiba, o “convenceram” a me dispensar. 

Meu tio Alberto andava pelos morros e matos pegando cobras. Dizia que era para o Butantã e para fazer remédio. Nunca confirmei. Mas lembro da extraordinária coleção de cobras em vidros da minha prima Bidi, pintora, que tirava delas as cores para seus quadros e desenhos. Muitas vezes, eu carregava o balaio de taquara em que se enroscavam as várias espécies. “Não facilita a urutu, tchó!”

Como os Torres possuíam testes de valentia, os Golin tinham rituais de passagem que aconteciam naturalmente. Eram testes de macheza. Mas certa beligerância também estava nas mulheres. O teste de responsável pelo acampamento de pescaria, mais do que exigia coragem, redundava em ilusões. Ao anoitecer, os adultos deixavam o piá solitário na beira do rio. Davam orientações para manter o fogo sempre acesso, davam-lhe um facão ou outra arma para defesa, e diziam que iam botar ou revisar redes, ou simplesmente iriam até outro pesqueiro. Não faltava adulto que fosse para casa dormir. E o piá ficava por horas ou a noite inteira vendo demônios nas labaredas, movimentação de águas com monstros submersos, feras espreitando desde a mata adjacente, sombras de facínoras no meio das árvores esperando para atacar. 

Alguns operários e um tio cultivavam o animismo de que as propriedades animais se transmitiam pela ingestão de sangue. Conservavam uma canequinha no matadouro para dar sangue à piazada, sob a crença de que se adquiria todas as virtudes do touro recém sangrado. Alguns bebiam a cabresto, quando não conseguiam a proteção das mães. Havia também “preconceito” com o uso de meias; cachecol, nem falar – uso exclusivo para mulheres. Ser homem no Sul é uma carreira especializada em tacanhez. Mas alguns conseguem aliar a masculinidade à delicadeza. A briga pela humanização é a mais peleada para o gênero.

Mas fui terceando, como diz o caboclo, até o final do primário. E quando cheguei no exame de admissão para entrar no ginásio, para surpresa de todos, eu não sabia ler “correntemente”. Meu pai havia morrido. Com 12 anos fui morar com minha vó, em São Gabriel, com quem sempre passávamos as férias de inverno e verão. Ali conheci a pedagogia do esfregão molhado de cozinha, que ela carregava no ombro. Meu primo-irmão me tirava a leitura. Não podia gaguejar senão o esfregão saía do seu descanso. Assim, me tornei um leitor de fazer inveja. Frequentador diário da Biblioteca Pública. Lia gibi, mas quase só do Fantasma. Ninguém sabia que eu era o mascarado!

Nessa época, o meu primo-irmão Bráulio, que me tirava a leitura, também criado pela vó, passou no vestibular de Medicina na UFSM. Então, um vileiro da Capioti vai ser médico! Minha mãe, que ficara trabalhando no Frigorífico Ouro para terminar de pagar as contas feitas na doença do marido, mudou-se para Santa Maria, onde trabalhou em repúblicas de estudantes, costureira e cozinheira em restaurantes. Mesmo morando com a matriarca, que era enfermeira e parteira, estava seguidamente em Santa Maria, onde circulava pela Casa do Estudante, local de moradia do meu primo, que sempre me apresentava como irmão, participava no movimento estudantil, fazia parte do Teatro Universitário e inclusive realizava comentários políticos e culturais na TV. 

Foi uma revolução porque aos 15 anos eu achava que já estava versado em Nietzche, geopolítica internacional, teatro, cinema. Por interpretação muito singular concluí que adquirira minha vontade de potência, condenava a expiação e toda a culpa dos meus atos era intransferível. Talvez ainda oscilasse um pouco entre o deísmo e o ateísmo. Como em São Gabriel, aos 13 anos, tinha sido expulso do Colégio Marista, e aos 14, do estadual Quinze de Novembro, estava livre da Educação, no mínimo até os 18, quando poderia retornar à formalidade, via programa Madureza. Assim, tinha tempo para as Artes (quase todas), os esportes e a boemia.

Esses elementos são importantes porque em meu paradigma existencial encontra-se o estoicismo. É algo centrado no núcleo do trabalho, no sentido filosófico do cotidiano. Comecei a escrever regularmente aos 16 anos, quando retornei a Capinzal para umas férias e acabei ficando quase um ano. Duas meninas e um guri foram punidos no Colégio Mater Dolorum por terem publicado um texto no jornalzinho interno ridicularizando o uniforme de educação física, que deixava as alunas como umas patinhas. A cidade não tinha jornal. Depois de conversas resolvemos fundar O Furo, comigo de diretor. Inicialmente em mimeógrafo a tinta e depois em off-set. Logo fui formando consciência que o ato de escrever precisa ter sentido, ser fundamental para a representação da realidade, na perspectiva do conhecimento, que não fosse dogmático, dando ao leitor elementos para pensar e concluir. Convertendo esse princípio para a Educação, o fundamental é ensinar a pensar. Doutrinas são adestradoras, disciplinadoras por cânones. O indivíduo é visto como ente adestrado. Estímulo-resposta é a sua pedagogia.   

LAF – Na juventude, tu vais para Santa Maria para cursar Jornalismo. Foi essa a tua escolha inicial? Qual o teu desejo, naquele momento? E por que Jornalismo? Tu trabalhaste logo em jornal profissional, certo? E foi então que tu trabalhaste com teatro?

TG – Novamente o acaso. Estava em Capinzal jogando futebol de salão e vôlei nas seleções da cidade, além de treinar o time feminino de vôlei das cidades irmãs Capinzal e Ouro. Em São Gabriel havia sido um auxiliar voluntário do professor Hilo, que fora meu treinador. Era um levantador com algum talento. Da cidade saíam grandes atletas para o Brasil. Fazíamos parte da revolução tática do vôlei ao adotar a formação 5 x 1, enquanto outros ainda permaneciam no 4 x 2. Ter apenas um levantador, infiltrando quando estava em outra posição, dava uma superioridade imensa. Mostrei como funcionava no time masculino e adotei com muito treinamento na seleção feminina. Quando ganhamos do timaço da Sadia em um amistoso no Ouro foi uma festa.

Paralelamente fazia o jornal O Furo. Completei 17 anos no meio dessa jornada que começara meses antes, associada à tática de fugir do quartel, pois a junta local estava isenta de recrutamento. Alimentava a ideia de ser correspondente de algum grande jornal. Visualizei o momento no fenômeno do “trem romeiro”. Na Romaria de Nossa Senhora da Salette, que ainda acontece em Marcelino Ramos, fronteira RS-SC, na última semana de setembro, grande parte dos fiéis chegavam no trem de véspera pela ferrovia que atravessa Santa Catarina, margeando o rio do Peixe. Promessas feitas, os devotos iam entrando para seus lugares, ocupando corredores, amontoando-se, ficando entre os vagões, alguns buscando inclusive seus tetos. Os piadistas brincavam que não se via o trem, somente uma cachopa de pagadores de promessas deslizando sobre trilhos. Liguei para o Correio do Povo, em Porto Alegre, e discorri sobre a pauta. Acharam interessante. Fiquei de fazer a matéria. Bah! Combinei com a nossa “experiente” fotógrafa de 16 anos. Pegamos o trem a meio caminho. Vínhamos fazendo entrevistas, fotografias. Em Volta Grande, um guarda-trilho deixou a chave virada, o trem mudou de linha, e entrou de cheio num cargueiro da Sadia. Eu estava nas imediações do banheiro, quase entre os vagões. Fiquei soterrado, com pernas esmagadas, um braço quebrado e escoriações descobertas dias mais tarde, junto com fiapos de madeira do vagão. Várias pessoas morreram, algumas onde eu estava. Além das justificativas divinas, ouvia a de que não tinha morrido por ser atleta. Era noite. De um lado do sinistro, o rio do Peixe; do outro, serra de mato fechado. Com a ajuda de amigos, carregado por eles, saí saltitando numa perna em busca da vereda para sair na estrada. Visualizamos um potreiro. Quando nos aproximamos, um colono tentou barrar a passagem sob o argumento de que a cerca era nova. A multidão de desgraçados foi derrubando as tramas e arames, abrindo caminho. Fomos os primeiros a chegar em Volta Grande. 

Com a enchente, o rio Uruguai não dava passagem de balsa para Marcelino Ramos. Os automóveis que iam chegando embarcavam os feridos para os hospitais da região. Fui colocado no banco da frente de um DKV. O banco de trás foi retirado e deitado no espaço maior que se formou outros dois em estado lastimável, diversas fraturas. E por estrada de chão seguimos para o hospital em Concórdia, a 50 km. Depois de alguns dias em Concórdia, fui transferido para um hospital particular de Capinzal. Após semanas estava perdendo a perna esquerda. Nesse momento, a minha mãe e meu-primo Bráulio chegaram. Conseguiram minha transferência para Santa Maria. E lá fui eu de… trem. Dois dias chocalhando. Foram dois anos de recuperação. Mas a bengala era simpática.

Além de estudante de Medicina, o Bráulio fazia parte do Teatro Universitário, cujo espaço de arena no porão da Casa do Estudante da rua Professor Braga havia sido retirado pela reitoria quando os “pelegos” ganharam a eleição do DCE. Transformaram o TU em uma boate. O grupo dramático, que já tinha ganho prêmios nacionais e internacionais, continuou sem vínculo com a UFSM, com o nome de Teatro Universitário Independente, o TUI. Logo me agreguei ao grupo. Inicialmente em muitas tarefas de carpintaria teatral, ponto. Depois ator e ensaiador. Participei de montagens importantes nos perigosos anos 1970, como duas peças do Millôr Fernandes (Computa, computador, computa e O Homem do princípio ao fim); Os Fuzis da Senhora Carrar, do Brecht; Um, Dois, Três de Oliveira Quatro, de Lafayete Galvão; A farsa da esposa perfeita, de Edy Lima. Peças infantis como Aventuras de um Diabo malandro, de Maria Helena Kühner; O rapto das cebolinhas, da Maria Clara Machado. Durante alguns anos tivemos convênio com a Secretaria de Educação do Estado, que nos dava condições de fazer turnês longuíssimas por todas as regiões. De dia fazíamos sessões para as escolas, com ingresso barato, sem cobrar de “carentes”, e, à noite, as sessões adultas. Eram imersões históricas, antropológicas, culturais nos diversos lugares. O TUI possuía uma filmadora Super-8 em que eu registrada essas comunidades e seus patrimônios.

Santa Maria tinha três “companhias teatrais” pujantes. O Cardoso, o Presença, o TUI e mais as produções da Faculdade de Artes Cênicas, com intervenções vanguardistas nas ruas, praças, protestos, greves etc. Desse modo, assim que cheguei na cidade, não levou muito tempo para começar a fazer crítica teatral e escrever sobre cultura em geral nos jornais A Razão e O Expresso, participar dos cadernos de cultura, na imprensa cultural e política alternativa, e me inserir em outros órgãos de fora. A minha primeira pesquisa histórica importante foi para produzir um texto para teatro. 

À época, a referência musical inovadora era o Grupo Os Tapes, que havia ganho a Califórnia da Canção Nativa com a música Pedro Guará, montado espetáculos inovadores como Vida, Cisma e Canto de um farrapo (1971), Canto da gente (1972) e Americanto (1975). Colocavam o Rio Grande no pertencimento terrunho e indígena, inclusive com o uso de instrumentos dos povos nativos. Não se pilchavam. Apenas um pala constituía seu figurino. Em um encontro em Santa Maria, o TUI e Os Tapes apalavraram a parceria para um musical sobre Sepé Tiaraju, importante comandante missioneiro na resistência aos exércitos ibéricos na Guerra Guaranítica (1753-1756). Fiquei encarregado de aprofundar as pesquisas que já vinha fazendo e elaborar o texto; Os Tapes, a música. Por conta desse projeto se manteve a minha relação com a cidade de Tapes. Inicialmente focada na parceria. Depois como espaço de pesquisa de cultura popular, a exemplo do Terno de Reis, e a navegação. 

Nessas andanças, juntamente com o Cláudio Boeira Garcia, e nossas companheiras Circe e Ercília, mais a amiga Inês, no verão de 1977-78, acampamos semanas em Barão do Triunfo. Lugar lindo, à beira de um arroio, com banho de cascata. O Cláudio havia sido professor na região. Recebíamos visitas diárias, conversávamos sobre a vida. O êxodo rural removia as populações para as cidades em desgraça coletiva. Muitos dos conhecidos já não estavam mais. Outros, em processo de sair. Ali surgiu o espetáculo Chão, Estrada e Canção (1978), com minha participação nos textos, estreado no Teatro de Arena de Porto Alegre no mesmo ano. Em 1978, também fiquei entre Santa Maria e Santo Ângelo, como editor do jornal Presença, convite mediado pela Ercília Cazarin e amigos do Grupo Teatro Vivo. Publiquei a série “Cinturão da Miséria”, com reportagens sobre o êxodo rural e a formação das vilas, material atualmente fonte importante para a sociologia. Residir nas Missões foi fundamental para a aderência antropológica, a percepção dos pioneiros e sociedade contemporânea com as Missões. E também por ter aprofundado amizades e parcerias com Cenair Maicá, Nito Padilha, Pedro Ortaça, Noel Guarani e, mais tarde, Jaime Caetano Braun.   

O musical sobre Sepé Tiaraju nunca saiu. Mas tomei gosto pela coisa. Depois, em 1985, publiquei uma primeira biografia de Sepé numa série da Editora Tchê!.

O teatro e a literatura foram fundamentais para a formação do historiador. Ambas possuem o personagem como resultado da especialização da linguagem e da encenação, condicionado à limitação extrema daquilo que é estritamente possível ao humano. Essa percepção talvez seja central na minha produção historiográfica e na minha prosa poética. No tempo do TUI, os laboratórios de construção dos personagens eram puxados. Possuíamos os manuais e livros fundamentais sobre o tema. Tínhamos canais diretos com diretores de fora. Paulo Autran iria dirigir uma das peças, mas, depois, a sua agenda impossibilitou. Em teatro e literatura, o que extravasa, está além dos limites humanos, não funciona. Compreender esses elementos, associados à psicanálise, às ciências humanas, à física quântica, ajuda a detectar as irrealidades, os exageros, as falsificações, dos biografados da história e dos personagens das artes. O espaço, igualmente. Um palco, um livro, um filme, são espacialidades de histórias humanas. Tempo e espaço formam o cenário do historiador.

Elenco da peça teatral As aventuras de um diabo malando. Teatro Universitário de Santa Maria – TUI. Tau Golin é o que está no centro do grupo.

LAF – Dessa época são algumas amizades que te acompanharam a vida toda. Como aquela com o nosso amigo comum Sérgio Jacaré, Luiz Sérgio Metz. Que tal a lembrança dele, hoje? Ele era desde esse tempo um sujeito de talento raro?

TG – Conheci o Jaca naquele entrevero de Santa Maria, mediado inicialmente pela Casa do Estudante da rua Professor Braga, próximo da UFSM, onde funcionava a antiga reitoria e diversos cursos, entre eles o de jornalismo. Apesar de morar com minha mãe, já vivia como uma espécie de clandestino na Casa do Estudante, no quarto do meu primo-irmão. Eram apartamentos de quatro pessoas. Os outros moradores geralmente eram da Medicina. Sempre tinha cama sobrando ou um colchão para se ajeitar. Nas férias ficavam praticamente vagos. A polarização política definia dois blocos, cada qual com suas divisões. O Jaca e o Pedro Osório moravam no quarto andar. Minha mãe retornou para São Gabriel. Eu e o Nego Motta fomos residir no porão da casa ao lado da Casa do Estudante, da mãe do Sérgio Waigert, na época casado com a Rita Assis Brasil, médica e primeira vereadora do PT junto com o Adelmo Genro Filho. O Jaca e o Pedro fizeram transformações importantes na Casa do Estudante. Na presidência do Jaca foi formada a biblioteca no último andar, com a presença do Cyro Martins, com quem batíamos longas charlas. Na gestão do Pedro, à revelia da reitoria, ocorreu a presença forçada das mulheres, movimento que criou as condições e mudança de legislação para o surgimento das casas de estudantes coabitadas por ambos os sexos. Em todo o processo, o quarto 46 era uma espécie de comitê executivo. Tinha placas na porta de “República Livre do 46”, ou “CTG Suspensório da Liberdade”. Um bom número de artistas, especialmente músicos, que passavam pela cidade, acabavam no 46, onde as tertúlias varavam a noite, e sempre se ajeitava um caldo na panela para quem tivesse fome.  

Da esquerda para a direita, sentados – Sérgio Jacaré, Tau Golin, Pedro Osório e Nego Mota, mais dois amigos. Arquivo pessoal.

Do grupo que circulava pela Casa do Estudante, quando já estávamos relativamente empregados, e outras pessoas aliadas, foi alugado o apartamento 6 de um prédio da rua do Acampamento. Teve certo entra e sai, mas os últimos e mais longevos habitantes foram Jaca, Nego Mota, Ariosto, eu e Dalla Pícola. Constituiu-se a “República Livre do 6”, espécie de centro cultural e abrigo aos “despencados”, segundo classificação do Jaca. Uma das regras era sempre oferecer a cama para o visitante e dormir no chão. Dentre tantos que passaram por ali está o Raul Ellwanger, quando voltou do exílio. Ocorriam mateadas e encontros, com a presença quase diária dos amigos Adelmo Genro Filho, Beto São Pedro, Cleonice Fialho, Letícia Pasqualini, Circe Rocha e outros. Nesse período trabalhei na Biblioteca Pública, no jornal A Razão e na Câmara de Vereadores, e mantive dois programas nas rádios Santamariense e Imembuí, o “Boca do Monte” e o “Continente Americano”. Neste tocava e comentava o melhor da música latino-americana, propagando o universo da “República do 6”, onde a trilha sonora era Yupanqui, Cafrune, Mercedes Sosa, Los Olimareños, os chamameceros em geral, nova trova cubana e chilena, etc., fazendo associações com os missioneiros e brasileiros. 

Por fim, eu casei com a Circe; o Jaca com a Marô; o Nego com a Cleonir; e o Ariosto foi exercer o jornalismo em Brasília. Circulávamos em diversos meios, as convivências eram transversais, humanas, não necessariamente ideológicas. Estávamos nos movimentos culturais, comunicacionais, estudantis e políticos. 

LAF – Nessa época também tem a tua vida na política. Como foi isso? Quem eram teus pares?

TG – Institucionalmente, a nossa turma militava no MDB Jovem. Depois, com o aparecimento da legenda, ingressamos no PT. Com a primeira sigla elegemos dois vereadores, o Adelmo Genro Filho e a Maria Rita Assis Brasil. Durante seus mandatos fizemos a passagem ao PT. Eu e o Jaca fomos assessores da bancada. Enfrentamos o processo do Adelmo pela lei de segurança nacional, por críticas ao general João Figueiredo. Pelo PT elegemos o Marcos Rolim e o Beto São Pedro. Eu continuei na assessoria. E, por fim, fiquei na Câmara, responsável pelas atas das sessões e pelo arquivo. A campanha do Beto foi interessante. Convenci o Noel Guarani a fazer uma turnê para arrecadação de fundos e percorremos toda a região. No Movimento Estudantil, a nível local, era a tendência Resistência, que reunia espectros da esquerda; e nacionalmente, a Caminhando. Alguns eram organizados clandestinamente. Ideologicamente alinhávamos no campo do marxismo-leninismo, com leituras heterodoxas variadas e da teoria política clássica. Eu tinha apreço pelo Gramsci, pelas teorias comuneiras e pelas discussões sobre república e democracia. 

A militância revolucionária organizada mesmo começou com a inserção no racha do PCdB, quando se formou a tendência que lutava pela convocação de um congresso, para discutir a linha política e organizacional, temas como a da Guerrilha do Araguaia, do foquismo etc., sobre os quais tínhamos críticas embasadas. Funcionava como um partido organizado pelos cânones do centralismo-democrático com o nome de VI Conferência. Se transformou numa organização que dialogava com várias tendências. O processo levou à ruptura com o velho dogmatismo stalinista, mesmo ainda conservando alguns camaradas a ele associados. Consequentemente, fundou-se o Partido Revolucionário Comunista. Fiquei encarregado de diversos projetos na área cultural e editorial. Tivemos um coletivo que montou o Pavilhão Cultural em Santa Maria, com projeções de filmes, espetáculos e palestras diárias. Na área editorial, lançou a revista Práxis, comigo e o Marcos Rolim como editores. Respeitava-se as esferas da música, da literatura e das artes em geral. Quando na direção de instituições universitárias, levamos para o meio acadêmico e público geral os cantores missioneiros, nativistas e latino-americanos. O evento Cio da Terra foi o turbilhão dessa postura e vivência humanista. Nossas visões repercutiam diretamente nos órgãos de comunicação em que trabalhávamos. Artistas conservadores, se tivessem talento, estavam dentro… Minha maior proximidade era com Adelmo Genro Filho, Sérgio Weigert, Marcos Rolim, Beto São Pedro, Rita Assis Brasil, Pedro Osório, Jussara Bordin, Aldo Fornazieri, Estilac Xavier, Jussara Dutra, Guilherme Cassel, Circe Rocha, Cristina Pozzobon, Marô Silva, além de muitos outros… A nível nacional, com alguns atuais capas-preta… O PRC esteve à frente da campanha pelas eleições diretas e combateu a ditadura militar. Depois de anos de atividade, com a redemocratização, em um congresso, o PRC foi dissolvido, com a maioria de seus militantes optando pelo caminho da institucionalidade republicana democrática e popular. 

LAF – E aquela impressionante jornada a cavalo, entre a região de Santa Maria e o sul do estado, lá em Jaguarão? Centenas de quilômetros no lombo de cavalo, que resultaram num excelente material publicado no Correio do Povo de então, e muito depois em livro. Quando foi isso? E como tu recordas esse feito?

TG – Santa Maria me deu a possibilidade de ingressar no mundo rural com maior radicalidade. A Circe, além de namorada, era atriz talentosa do TUI, se formou em História e era filha de latifundiário. Por essas veredas do humano, apesar de ser da antiga Arena, meu sogro ficou amicíssimo do genro. Tínhamos muitas cumplicidades. A estância do Alto das Palmeiras era também querência dos meus amigos. Alguns para campeirar. Outros para acampamentos e pescarias. Geralmente para tertúlias. Fiz circular por ali o Cenair Maicá, que passava temporadas comigo, o Miguel Bicca, dos Angueras; o Jaime Caetano Braun. E o Cláudio Boeira Garcia, talvez aquele com mais intimidade.

Na fazenda do Cyrineu Rocha tive uns terneiros, uma criação de ovelhas, além de três éguas para cria. Além de participar do trabalho de campo, dali costumava fazer jornadas a cavalo. Algumas para os lados de São Gabriel, onde tinha parentes.

Desde a “República do 6” falávamos seguidamente da necessidade de uma imersão no mundo rural do Rio Grande. Senti-lo anonimamente, sem identidade, sem mostrar credenciais. Em 1980, os astros se alinharam. O Jaca morava no Piquiri, em Cachoeira. Tinha uma renomada égua Zaina. O Pedro comprou um cavalo serrano em Itaara. Eu possuía um cavalo douradilho, que ficava quase zaino quando molhado, de nome Pinhão. Peguei mais uma égua emprestada da fazenda e partimos desde Santa Maria por uma rota que até Bagé seguia as trilhas das estâncias dos indígenas missioneiros, depois torcia para a fronteira de Jaguarão, concluindo a jornada na localidade de Cerrito. Testamos as hospitalidades. Presenciamos a entrada da televisão na Campanha, mudando os horários dos afazeres, adequando-se às programações. Convivemos com pessoas de diversas índoles. Passamos por situações hilárias, até chegarmos em Jaguarão, na fronteira com o Uruguai. O Pedro fez apenas anotações de registro de rotas, nomes de pessoas; tínhamos apenas uma máquina Practica emprestada que nos revelou algumas fotografias e velou a maioria.

Documento obtido recentemente, com dados do acompanhamento (espionagem) feito pelo Serviço Nacional de Informações – SNI da viagem a cavalo. Arquivo pessoal 

Depois que retornarmos escrevemos as lembranças, pois memórias se alicerçam em diários. Tenho a impressão de que nossos olhares transformados em textos constituíram boas impressões do que vivenciamos e acabamos documentando. Quando o relato da viagem saiu no “Caderno de Sábado” do Correio do Povo, com o título geral de “Terra Adentro”, teve repercussão extraordinária. Após essa viagem, eu e o Pedro Osório fizemos outra de Santa Maria ao Piquiri, em Cachoeira do Sul. Ficaram apenas as anotações do roteiro em umas folhas, muitos causos que alimentaram as rodas de prosas dos amigos. Nunca escrevemos sobre ela.  

LAF – A vinda para Porto Alegre ocorreu quando? Foi logo em seguida que tu publicaste aquele estudo-panfleto, Bento Gonçalves, o herói ladrão? Conta desse momento e desse livro, por favor. 

TG – Mais uma vez o acaso. Eu tinha ido ao Rio de Janeiro pesquisar na Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Arquivo do Itamarati e outras instituições. Meu tema principal era as Missões dos Povos de Índios, perseguido pela ideia do musical sobre Sepé Tiaraju. Entretanto, o meu método de autodidata sempre foi reunir o máximo de fontes sobre um tema, além de já estar trabalhando há tempos na formação de um acervo pessoal sobre o Sul do Brasil e a bacia do Prata. Pesquisar naquele tempo era coisa para perseverantes. Você só obtinha fontes de arquivo através de anotações de próprio punho, copiando. Em alguns casos, permitiam alguma fotocópia e fotografia em filme, com revelação posterior (o que era caríssimo), ou mediante microfilmagem, serviço que só a Biblioteca Nacional possuía. Na BN encontrei dois manuscritos que discorriam sobre a corrupção na província do Rio Grande durante o governo do marquês de Alegrete. Citava o sistema de compra de patente no exército, em que o filho de um importante funcionário, de nome Bento Gonçalves da Silva, havia adquirido a de “capitão de guerrilha”. Com essa tropa, a pretexto de combater José Artigas, líder da Banda Oriental que tinha um programa de distribuição de terras, inclusive para indígenas e gaúchos, o tal capitão arreava o que encontrava pela frente e passava para o Rio Grande. Com esses roubos já tinha comprado uma estância e alugado outra. O pior era que também não entregava boa parte do saque oficial que cabia ao Estado. A fonte não podia ser mais fidedigna. Era o próprio pai do Bento. Ele confessava os seus temores ao pároco de Piratini, seu amigo. Acontece que este padre era respeitadíssimo na corte, gozava da intimidade do próprio D. João VI. Na fronteira, ele funcionava como olheiro da corte. Costumava escrever longas missivas ao monarca, como a “Carta a S. M.”, de 1818. 

O conteúdo do vigário era corroborado pelo “Diário do Sargento Mor de Milícias Albano de Sousa Henriques Rebello”, de 1819. Nele consta a “Breve Relação de Roubos de Gados”. Fazendo uso do posto de capitão, “este Bento Gonçalves introduziu muitas mil reses publicamente roubadas do campo de Montevidéu, vendeu-as na fronteira”. O oficial Rebello explicitava a sua impotência legal diante da poderosa rede protegida pelo marquês de Alegrete e outros militares. O miliciano Bento fazia aquilo que era execrado pelos oficiais que cumpriam as convenções das guerras: o combate às propriedades. Aquilo que o general Bohem, na Guerra da Reconquista (1774-1776), chamou de “guerra às vacas”, praticada por Rafael Pinto Bandeira e outros. O diário do Rebello abrangia somente dois anos, mas nele detalhava que Bento Gonçalves havia roubado e contrabandeado 21.600 cabeças de gado, além de mais quatro tropas sem indicação da quantidade, e muitas carretas de couros. Outros documentos também denunciavam Bento Gonçalves como o operador de campo do [de um] famoso contrabandista e exportador italiano. 

Eis aqui uma boa matéria, pensei. Escrevi uma reportagem sobre os documentos e seus conteúdos. Qual era o mistério, pois estava em um arquivo acessível? Continuava no RS o método [do historiador] Alfredo Varela do “EN”, desclassificação dos documentos pela exclusão do “Este Não”? Dias depois, o P. F. Gastal, editor do “Caderno de Sábado”, me ligou. Sempre muito ético, justificou por que não poderia publicar o meu texto jornalístico. Seria demais para o jornal que estava no espectro do estado tradicional, dos heróis, que tinha no Bento a figura do “nume tutelar” e patrono. Entendi, mas fiquei me coçando!

Encontrei dois amigos, os cartunistas Clóvis Geyer e Jorge Ubiratã da Silva Lopes (Byrata), que estavam montando a LGR Artes Gráficas. Contei a história do Bento. A reação dos dois foi instantânea: “Vamos publicar!” Bueno, já que vai ser um livrinho de bolso com efeito de muitos megatons, vamos acrescentar mais algumas coisas visando o contexto histórico. Mostrei os originais para o Adelmo Genro. Ele lia na mesa da bancada da Câmara de Vereadores e vibrava. Às vezes me olhava e dizia “mas está muito bom!” Me questionou se o título “Bento Gonçalves, o herói ladrão” não iria ensejar discussões no campo da moralidade e não dá história. Mas eu já sabia que o roubo é uma categoria da acumulação primitiva. O livro saiu em 1983. Foi o estouro da boiada. A gráfica rodava reimpressões contínuas. Saiu duas páginas na revista Veja. O repórter Geraldo Canali foi a Santa Maria me entrevistar para o Fantástico. O Danilo Ucha abriu espaço na Zero Hora para infindáveis debates. Os conservadores contrataram escribas de aluguel para responder ao livro. Tradicionalistas prometiam surras para lavar a honra do Rio Grande. Entidades promoviam debates. Diversos júris simulados foram realizados, onde eu fazia o papel de promotor e o [Antônio Augusto] Nico Fagundes de advogado de defesa, assessorado por historiadores. Uma junta de professores de História da academia realizou um fórum de análise do meu diminuto torpedo e publicaram a conclusão em livro. Nenhum argumento de fundamentação histórica. Todos recorriam à questão moral (o que, na minha opinião, é pior ainda para o Bento).

A capa do famoso livro.

O livro teve enorme repercussão no Uruguai. Quando os tupamaros passaram à política institucional, doei centenas de livros para fazerem fundo de campanha, além de autorizá-los a realizarem edições.

Quando fiz doutorado entendi que era o momento de acertar as contas com a postura covarde da academia. Introduzi na minha tese o capítulo “A acumulação primitiva da oligarquia emergente”, que é uma reescritura do “Bento Gonçalves, o herói ladrão”. Tanto que atualmente recomendo a minha versão acadêmica, que está publicada no volume 1 da série A Fronteira. Em um ano cheio de entreveros, também em 1983, lancei A ideologia do gauchismo, pela Tchê. Esteve entre os mais vendidos na Feira do Livro de Porto Alegre. Em livro, minha primeira publicação tinha sido os contos reunidos em Três léguas de volta, pela Martins Livreiro, apresentado pelo Apparício Silva Rillo.

LAF – A partir desse tempo tu enveredas pelo estudo sistemático de História, certo? Como foi essa reorientação de rumo? Quais foram os teus trabalhos de mestrado e doutorado?

TG – A minha formação básica em História foi como autodidata. Quando fui para a faculdade já tinha alguns livros publicados, muitos ensaios e artigos em revistas e jornais. Como jornalista tem uma espécie de salvo-conduto para outras áreas do saber, eu participava de eventos, dava palestras, era presente nos Simpósios de Estudos Missioneiros, resenhava livros importantes. A minha habilitação de jornalista profissional provisionado permitia o trabalho em órgãos de exigência superior, mas eu continuava impossibilitado de trilhar carreira acadêmica. A tensão entre os realmente práticos e os primeiros cursos de Comunicação Social se estendeu até 1986, quando um decreto considerou “jornalista profissional” pelo Ministério do Trabalho aqueles que exerciam a profissão de modo continuado com, se não me engano, no mínimo cinco anos de carteira de trabalho assinada. Era equivalente a uma graduação. 

A partir de então somente com faculdade. Inclusive os cursos de jornalismo tinham professores provisionados formados em outras áreas. Talvez isso tenha também deixado risível o início dessa profissão condicionada ao curso superior, pois muitos professores não tinham aderência ao cotidiano da comunicação. Como eu trabalhava desde 1972, e me sobravam anos de registro na carteira de trabalho, obtive o título de Jornalista Profissional em 1986. A maioria dos meus amigos e companheiros de trabalho estavam na, ou passaram pela universidade. Entretanto, apesar de sofrer algum patrulhamento dos acadêmicos, sempre defendia a necessidade de formação específica, de compreensão de sua deontologia e códigos de ética. Por curioso, fui o editor de texto de vários livros de comunicação, onde se destacam a História Secreta da Rede Globo, do Daniel Herz, e O Segredo da Pirâmide – Para uma teoria marxista do jornalismo, do Adelmo Genro Filho. De algum modo, eu também estava na esfera da “Escola de Comunicação de Santa Maria”, reconhecida pelos trabalhos teóricos do êxodo que aconteceu nos anos 1980, principalmente para Porto Alegre e depois para outras cidades. 

Em certo momento houve um encontro em Florianópolis, com influência direta no curso de Comunicação Social da UFSC. Na capital rio-grandense também foram importantes as experiências de edição do jornal Fazendo o Amanhã e o Centro de Estudos de Filosofia e Política – CEFIP, que funcionava com caráter de altos estudos e formação geral. Para se ter uma ideia, eu ministrava o módulo de “História das Internacionais”. A coordenação era do disciplinadíssimo Daniel Herz. Demais seminários estavam a cargo dele, do Adelmo Genro Filho, do Sérgio Weigert, do Tarso Genro e outros quadros do PRC e de fora. Visitar o seu programa e especialmente a imensa bibliografia adotada dá a dimensão de seu conteúdo e relevância. Mas o meu problema era adentrar no mundo acadêmico. Antes tinha que realizar um regresso e pegar a estrada que havia deixado há anos, na encruzilhada do segundo grau…

Em 1986 tinha me mudado para Porto Alegre para trabalhar como editor e secretário gráfico da Editora Tchê. Depois fui para a Gazeta do Sul, da companhia Mercantil. E por fim para a assessoria de comunicação da Assembleia Legislativa, ao mesmo tempo que fazia assessoria para a bancada do PT e o Comitê Regional. Em segredo, me inscrevi num curso Supletivo e conclui o segundo grau. Prestei vestibular na PUC para o Curso de História. Mas as aulas eram de dia e eu trabalhava. Depois de um ano obtive transferência para a FAPA, com aulas a noite. Na metade do curso, fiz a seleção para as vagas excedentes da Universidade Federal e ali cursei os dois últimos anos de História. Aulas geralmente de manhã, podendo trabalhar à tarde, algumas noites e ainda fazer os treinos puxados das segundas, quartas e sextas do time de futebol amador do Grêmio, recheado de ex-atletas.

Formei-me em História em 1994. Fiz seleção no mestrado da PUCRS no momento que coincidia a minha saída da assessoria do PT. Como ganhei bolsa, também não podia trabalhar. Paralelamente, mantive-me escrevendo para a Zero Hora e outros jornais, “sem vínculo empregatício”. Meu projeto inicial tratava das organizações clandestinas no período da ditadura. Mas logo, em conversa com o Arno Kern, que era o meu orientador, mudamos o tema. Eu tinha encontrado na Biblioteca Nacional de Montevidéu o genial Diário da Expedição e Demarcação da América Meridional e das Campanhas das Missões do Rio Uruguai, que tratada das questões de fronteira de 1750 a 1761, período de duração do Tratado de Madri, abrangendo as demarcações de limites, a revolta dos indígenas dos Sete Povos das Missões, fenômeno em que aparecem figuras históricas como Sepé Tiaraju, a narração das batalhas, mapas, etc. Por conhecer muitos autores de manuscritos, apoiando-me também em Abeillard Barreto, sustentei que o autor era o tenente-coronel, arquiteto e engenheiro português José Custódio de Sá e Faria. Fiz uma introdução de mais de cem páginas sobre ele. E transcrevi as quase quatrocentas páginas do diário, com comentários em notas. Inclui a cartografia fundamental dos expedicionários. 

Quando foi para a banca, com o título de José Custódio de Sá e Faria e a Guerra Guaranítica, tinha três volumes e 497 páginas, algo inusitado e não usual academicamente. A defesa começou no início da tarde e, com os pareceres e respostas, foi quase à noite. Tinha gente na banca que queria me rodar. Dois anos depois, com alguns cortes, a dissertação foi lançada em livro em co-edição da Editora da Universidade (UFRGS) e da UPF Editora, com o título de A Guerra Guaranítica: Como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul, com 623 páginas. Em 1999 ganhou o Prêmio Açorianos, na categoria Ensaios Humanísticos. Esta edição com a transcrição completa do Diário foi historicamente providencial. Alguns anos depois, o manuscrito foi roubado da Biblioteca Nacional de Montevideu. Por sorte ficaram a minha edição, uma fotocópia que está no meu arquivo e uma digitalização que convenci o falecido historiador uruguaio Walter Rela a fazer.

No doutorado precisava acertar contas com meus estudos das fronteiras. Não só narrar a formação geopolítica colonial e dos países sulinos. A fronteira precisava ser elevada a um método, perceptível no movimento espacial, mas simultânea na formação das sociedades. Aumentei a minha bibliografia, percorri os acervos do Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e demais países americanos. Ampliei a minha rede de pesquisa com colegas europeus. A tecnologia já era melhor. Com verba de pesquisa importei dos Estados Unidos uma máquina fotográfica CD Mavica 3.3 megapixels, da Sony, que gravava diretamente em minidisco. Com ela eu fazia estragos no Itamaraty e outros arquivos. Chegava a fotografar em torno de mil páginas por dia, descarregáveis diretamente no computador. Com o surgimento do scanner de filme 35 mm, toda a coleção de negativos fotográficos e microfilmes que eu possuía também passou a ser manipulada diretamente no PC. Em 2001 estava pronto para ir à banca com o título de “A Fronteira Brasil-Uruguai: Estado e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Rio Grande do Sul”, em dois volumes que totalizavam 759 páginas. Mais uma vez contei com a cumplicidade dos professores-orientadores Arno Kern e Klaus Hilbert. A banca foi longa, altamente fraterna, pois já conheciam e aprovavam os meus excessos. 

Esse material serviu de base para o lançamento dos dois tomos iniciais da série sobre o tema. O primeiro como o título A Fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina, com 400 páginas, lançado pela L&PM, em 2002; o segundo, A Fronteira: Os tratados de limites Brasil-Uruguai-Argentina, os trabalhos demarcatórios, os territórios contestados e os conflitos na bacia do Prata, também editado pela L&PM, em 2004, com 432 páginas. O terceiro é resultado do meu pós-doutorado em Lisboa: A Fronteira: 1763-1778 – História da brava gente e miseráveis tropas de mar e terra que conquistaram o Brasil meridional, lançamento da Méritos, em 2015, com 823 páginas. O quarto: A Fronteira: Mateando. Os ervais dos povos indígenas. História da erva-mate e do chimarrão, também lançamento da Méritos, 2022, com 608 páginas. Este volume vai ter ainda um segundo tomo, em que insiro conteúdos do pós-doutorado feito em Montevidéu. Pretendo completar a série “A Fronteira” com o volume sobre o Tratado de Santo Ildefonso (1777), a Guerra da Conquista das Missões (1801), abrangendo o fim dos Povos de Índios (1828), a perda dos territórios indígenas e a hegemonia oligárquica no século XIX. 

LAF – Finalmente a tua obra atual: tu tens dedicado atenção talvez inédita ao século 18 no RS, primeiro sobre as Missões e a Guerra Guaranítica, e mais recentemente ao mundo das águas no território e ao mundo ao mesmo tempo próximo e distante da produção de erva-mate. Conta um pouco disso, por favor.

TG – No fundo, o meu esforço intelectual sempre foi para compreender como os diversos povos do Rio Grande do Sul, que se formaram a partir do processo de conquista, das guerras, dos módulos de distribuição da terra, da hegemonia latifundiária, conseguiram inventar um imaginário ilusório de pertencimento, mesmo tendo diversos aspectos sociais e étnicos diferentes. No aspecto geográfico tenho defendido a tese de que o Rio Grande é um continente de águas. Historicamente foi conquistado pela navegação. O barco e a fortaleza costeira foram as armas estratégicas. A cavalaria advinha de animais de trabalho, portanto auxiliar. Seus artilheiros eram extensões dos conveses. Suas tropas de assalto, como granadeiros, e mesmo os infantes também carregavam práticas da marinharia. Por séculos existiu uma população e indivíduos dotados para a tríade barco-pastoreio-lavoura, além do extrativismo.

Esta região luso-brasileira se formou pela combinação do enclave e da apropriação da terra indígena. Originalmente, no período colonial foram estabelecidos quatro enclaves – Colônia do Sacramento, Laguna, Rio Grande e Rio Pardo. O enclave dominava um território estratégico com a instalação de uma guarnição militar fortificada, com estafe de funcionários públicos. As terras entre eles eram distribuídas em módulos rurais de sesmaria de campo, que poderia chegar a 13.000 hectares, e “datas” de aproximadamente 270 hectares. No primeiro caso bastava se estabelecer com um curral ou alguma lavoura para solicitar a sesmaria. No segundo, o módulo foi estabelecido para a colonização açoriana. Desde a década de 1630, as 18 reduções possuíam rebanhos. Com a invasão bandeirante interessada em prear indígenas, escravizá-los e vendê-los no mercado brasileiro, esse gado vacum, cavalar, muar, ovino e caprino se alçou. Bois e vacas formaram extensas vacarias, muitas delas com pastoreio dos pampianos, guaranis e jês, a exemplo das vacarias do Mar e a dos Pinheirais. A partir de 1682 até 1706, com a fundação das sete cidades dos Povos de Índios, os missioneiros organizaram com esses rebanhos imensas estâncias nos campos do Planalto, Serra, Baixo Jacuí, bacias do Ibicuí, Uruguai, Camaquã, rio Negro. Eram milhões de animais. Os sesmeiros, povoadores em geral, especialmente as parcelas de militares que recebiam lotes depois das guerras e ficavam no Sul, formaram suas propriedades e criações com o espólio indígena, cujos territórios e rebanhos iam reduzindo gradativamente até ser extintos em 1828. Só na metade do século XIX, o Império começou a política de Reservas Indígenas para abrir mais espaço para a expansão pecuária e, depois, para a imigração europeia. Historicamente, a oligarquia e a sociedade rio-grandense luso-brasileira se formaram em um dos mais brutais processos de extermínio e pauperização dos povos nativos. 

Estou terminando um livro sobre a história indígena da Estância Distante do Povo Indígena de São Lourenço, onde agora se encontra a Fazenda da Tafona, no município de Cachoeira do Sul. Começou a ser organizada no início do século XVIII. Permaneceu indígena até 1778. Seus limites eram os rios Jacuí, Piquiri, Vacacaí-Santa Bárbara e Camaquã. Tinha sede, diversos postos e três capelas.

Nessa apropriação geral também estavam os ervais indígenas. A erva-mate era uma mercadoria de abastecimento de enorme mercado na América e na Europa. Se estabelecer em lugar de erval já era contar com um produto para se capitalizar. Era como uma mina. Bastava explorar. Não gratuitamente, a erva-mate era chamada de “ouro verde”. A mesma capitalização os imigrantes fizeram com os pinheirais e outras madeiras nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX. Os donos dos módulos de sesmaria, data e colônia são os beneficiados do sistema de cotas de partilha da terra pelo Estado. Não são propriedades que resultaram do trabalho ou da compra, mas de um programa de povoamento geopolítico estatal. Mesmo os imigrantes europeus que chegaram a partir da década de 1870 tiveram favorecimentos, pois recebiam sementes, juntas de bois, implementos e instrumentos agrícolas, dois anos de carência e dez anos para quitar seu lote.

No livro A Fronteira 4, preocupei-me em demonstrar a historicidade da erva-mate como patrimônio indígena, fartamente usada antes da chegada do europeu. É beneficiada a partir das folhas da árvore Kaa. Não é uma erva que se colhe. Existe depois de submetida a uma tecnologia. É nativa de terras altas e úmidas das florestas subtropicais. Só se transforma em “erva-mate” depois de passar por complexo processo de beneficiamento, com fases de sapeco, desidratação através de fogo brando sob jiraus, cancheio e moagem. É o que faziam os carijós, barbaquás e a grande indústria faz até hoje. Os consumidores gaúchos foram associados a erva-mate como modelos, mas nunca a produziram, simplesmente porque não viceja na planície, na pampa. De um hábito nativo se transformou em mercadoria e remédio (ministrado especialmente para tratar a gota). Os ervais também eram polos de povoamento. Por óbvio, dela se retiraram os usos “infiéis”, como o da pajelança, da beberagem em arengas, quando caciques e pajés pregavam contra os padres e os colonizadores. Mas a “erva do diabo”, como era denominada até as primeiras décadas do século XVII, com o tempo se transformou em referência simbólica de quatro países.   

Capa do livro A Fronteira, 4, “Os ervais dos povos indígenas”. 

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