Ensaio

Qual o lugar dos “outros” alemães na história do Bicentenário? – Parte 1

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Qual o lugar dos “outros” alemães na história do Bicentenário? – Parte 1 Operários e operárias da Fábrica Fischel em Porto Alegre: LLOYD, Reginald (Org.). Impressões do Brazil no século vinte: sua história, seo povo, commercio, industrias e recursos. Londres: Lloyd's Greater Britain, 1913.

Este ano se completam 200 anos da chegada dos imigrantes de língua alemã na cidade de Porto Alegre e também do estabelecimento de sua primeira colônia em solo gaúcho, na atual cidade de São Leopoldo. As comemorações e os atos oficiais em geral destacam a coragem dos pioneiros e também pontuam as principais áreas onde deixaram seu legado: na cultura, no ensino, na fé e no trabalho. Esta perspectiva pode ser identificada com uma história mais tradicional da imigração germânica, baseada no sucesso da comunidade alemã formada no Rio Grande do Sul a partir da trajetória de suas denominações religiosos (tanto da Igreja Católica, quanto da Igreja de Confissão Luterana), das escolas fundadas pelos imigrantes (como o Colégio Anchieta, Farroupilha e Sinodal), dos clubes esportivos e associações recreativas (como a Sogipa, o Leopoldina Juvenil e o Grêmio Atiradores) e também das grandes empresas (como as Indústrias Renner, Gerdau e Pedro Adams Filho).

Esta história tradicional tem sido criticada, especialmente dentro dos meios acadêmicos, pelo fato de ser unilateral e tornar invisíveis sujeitos que viviam nas regiões de colonização alemã, mas que não se identificavam com esta cultura. Neste caso está a presença da comunidade negra no Vale dos Sinos ou no Vale do Rio Pardo, por exemplo. A própria Real Feitoria do Linho Cânhamo, que abrigou os primeiros imigrantes alemães de São Leopoldo, era um estabelecimento agrícola, centro de um empreendimento escravista do Governo Colonial Português. Mais além, nas regiões para onde a colonização alemã se expandiu, existiam diversas comunidades indígenas, onde ocorreram conflitos pela posse da terra, com alguns grupos de imigrantes praticando atos de violência contra os povos originários. Além de conflitos, também existiram trocas, com o registro de pessoas negras que dominavam o idioma alemão e trocas comerciais entre colonos e indígenas, por exemplo.

As iniciativas que procuram apontar os silenciamentos dentro da história da imigração alemã, especialmente dos grupos historicamente desfavorecidos, são muito importantes, mas é importante também conhecer os apagamentos que existiram dentro da própria comunidade teuta e eles foram muitos. Nesse sentido, a história dos imigrantes e de seus descendentes é muito mais contraditória e conflituosa do que se pode imaginar se ficarmos presos apenas aos marcos das narrativas tradicionais das instituições religiosas, dos clubes e das grandes empresas. A história dos imigrantes e seus descendentes é muito mais diversa do que parece ser.

Em termos de origem dos imigrantes, apesar da primazia dos colonos vindos da região do Reno, existiram também aqueles que vieram da Áustria, da Suiça, do norte e do leste da Alemanha, como os pomeranos, que ocuparam terras na zona sul do estado, cujo passado feudal resultou na discriminação e na exploração de sua mão de obra por administradores coloniais. No mundo urbano, uma elite industrial de língua alemã que vivia em cidades como São Leopoldo e Porto Alegre, conviveu com operários fabris que falavam a mesma língua, mas cuja relação nem sempre foi de harmonia com o patronato, que também teve uma história marcada por greves, protestos e mobilizações sindicais. Em termos políticos, mesmo que alguns “líderes” da comunidade estivessem alinhados com o Partido Liberal ou o Partido Republicano, sobram exemplos de militantes que construíram grupos à direita, como o Partido Nazista e a Aliança Integralista Brasileira, assim como à esquerda, como foi o caso do Partido Socialista Riograndense e o Partido Comunista do Brasil.

O Bicentenário pode ser o momento para refletir sobre a diversidade cultural e socioeconômica das comunidades de língua alemã no Rio Grande do Sul, tentando fugir de estereótipos e ideias prontas. Isso vale tanto para as construções positivas, que mostram estes sujeitos apenas como “fleißiger mann” (pessoa que trabalha duro), responsáveis pelo progresso intelectual e econômico do estado, mas também das negativas, que identificam estes alemães como sujeitos elitistas e conservadores, responsáveis por disseminar preconceitos e desigualdades. É preciso deixar de entender as comunidades alemãs apenas a partir de cima, de suas elites, mas explorar suas contradições a partir de baixo e pelos lados, ampliando as fronteiras de sua história. Nos próximos dois textos pretendo dar uma pequena contribuição à essa iniciativa, mostrando o papel dos imigrantes alemães na classe trabalhadora e no movimento operário em Porto Alegre, a partir de suas diferentes ideologias e organizações.


Frederico Bartz é mestre e doutor em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e trabalha como técnico em assuntos educacionais nessa mesma universidade, onde coordena o curso de extensão Caminhos Operários em Porto Alegre.

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