Ensaio

Qorpo Santo sempre vivo

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Qorpo Santo sempre vivo 1976 Elenco de Qorpo Santo um século depois - reprodução programa do espetáculo. Da esquerda para a direita, começando com os atores lá atrás: Sérgio Ilha, Gilberto Perin, Oscar Simch, Maurício Guzzi, Miriam Tesler, Vera Vergo, Joice de Brito e Cunha, Liana Villas-Bôas (diretora) e Rosa Braga.

Eu sou vida;
Eu não sou morte!
É esta minha sorte;
É esta minha lida!
(Qorpo Santo)

Nos meus verdes anos, vim sozinho uma única vez para Porto Alegre: foi em 1971 para assistir o musical “Hair”, no Teatro Leopoldina, na avenida Independência, e “foi lá por 72” que vim morar na capital. Nasci em Guaporé, mas cheguei de Caxias do Sul, onde estudava. Eu não sabia nada sobre quem era quem na vida da capital. Mas era bem informado sobre o que acontecia na zona sul do Rio, os artistas, bares, teatros e personalidades. Eu lia, semanalmente, o jornal carioca Pasquim, um caldeirão de informações sobre contracultura e a política repressiva da época.

Em 1973, começo o curso de Comunicação Social da PUCRS e as aulas de cinema do professor Aníbal Damasceno Ferreira (1933-2013) eram envolventes, a tradução teórica dos filmes que vi desde criança. Um dos primeiros exercícios práticos foi criar, com um rolo de quatro minutos de super-8, uma sequência cinematográfica de ação paralela. O nosso grupo fez um pastiche da sequência clássica dos faroestes: o mocinho cavalga para salvar a amada das mãos dos bandidos. Os nossos heróis montavam vassouras pelos “campos” da faculdade e a mocinha se debatia amarrada com uma echarpe numa cerca de arame.

Paralelamente, o teatro também entrou na minha vida e a diretora Liana Villas-Bôas, em 1976, me convidou para a montagem de “Qorpo Santo, um século depois”, com textos de José Joaquim de Campos Leão (1829-1883), autodenominado Qorpo Santo. Eu tinha uma pálida ideia sobre esse autor, o louco das margens do Guaíba, nascido em Triunfo. Durante a montagem de “Hoje sou um, amanhã outro” e “Mateus e Mateusa”, textos que faziam parte do espetáculo, conheci a vida e obra do gênio “descoberto” alguns anos antes. Yan Michalski (1932-1990), o prestigiado crítico de teatro do Jornal do Brasil, já tinha decretado que a História do teatro brasileiro tinha que ser reescrita depois da descoberta de Qorpo Santo. Afinal, o autor escreveu peças que poderiam ser classificadas de Teatro do Absurdo, muito antes do francês Alfred Jarry (1873-1907) e do romeno Eugène Ionesco (1909-1994).

Não eram poucas as dúvidas e polêmicas sobre a descoberta da obra de Qorpo Santo desde os anos 1950. Quem descobriu? Quem pegou o livro de quem? Quem se apropriou intelectualmente do legado de Qorpo Santo?  Para minha surpresa, imagine quem era um dos nomes que faz parte da descoberta e divulgação obra? Nada mais, nada menos que o professor Aníbal.

Durante um cafezinho no intervalo da aula, perguntei que história era aquela, certo que ele me daria a sua versão. Aníbal, com uma serenidade absoluta e controlada, me respondeu “Não vou dizer nada sobre isso”. Ponto. Acabou o assunto.

E assim foi durante 32 anos: a gente se encontrava, eu dizia “E aí, quando vamos falar sobre Qorpo Santo?”, e ele respondia perguntando “Onde está aquela obra-prima de ação paralela no bangue-bangue que tu fizeste na aula de cinema?”. Nenhum de nós respondia nada, mesmo porque o exercício em super-8 era propriedade da faculdade. A última tentativa foi quando eu fazia a direção geral do Curtas Gaúchos (RBS TV, 1999-2014) e pedi para gravar um depoimento sobre isso para um documentário. Gentilmente, a resposta foi “não vou falar sobre isso”

Alguns anos depois, como num roteiro de filme, aí pelas 10 ou 11 horas da noite, recebi uma ligação. Foi a única vez que falamos por telefone e depois de alguns minutos, ele disse: “Estou ligando para responder à tua pergunta”.

Era o final de outubro de 2008, 32 anos depois que perguntei pela primeira vez sobre a versão dele da descoberta da obra de Qorpo Santo. Fiquei nervoso, sem saber o que fazer, não queria interromper para dizer qualquer coisa como “só um pouquinho que vou gravar”, nem pedir para ele falar devagar. Com uma caneta e em duas folhas de papel, decidi não interromper e nem perguntar coisas como “Quem é esse Dario?” ou coisa parecida. Deixei o depoimento correr solto com poucas interferências, anotei o que conseguia, algumas vezes resumidamente, outras com mais fidelidade ao que ele me contava. 

Muitas das informações são conhecidas, mas isso não teve importância para mim porque agora era ele quem contava e me informava dos detalhes, descrevendo a sua versão. Em algumas palavras durante o depoimento tive a impressão que ele transpareceu o descontentamento com tudo o que ocorreu. 

O texto a seguir não é acadêmico, nem pretende ser a história oficial do assunto. É um pouco de luz sobre a polêmica publicação da obra e também um incentivo para que se conheça mais a obra de Qorpo Santo. Ao mestre Aníbal Damasceno Ferreira, com carinho, agradeço a versão dele sobre os bastidores do aparecimento das obras de Qorpo Santo. Sempre polêmicos, Qorpo Santo e Aníbal.


Anotações do telefonema numa noite de outubro de 2008:

Eu estava doente, com tuberculose, passava os dias na cama e lia as histórias de Porto Alegre no livro “Imagens Sentimentais de Porto Alegre” (1940), de Athos Damasceno Ferreira – meu primo em 2º grau.

No livro ele descrevia “dois tipos extraordinários da cidade”: Arthur de Oliveira (amigo de Machado de Assis que morreu com 32 anos de tuberculose) e Qorpo Santo. Achei estranho.

Era 1950 e pouco e fiquei sete meses em casa, quando me curei da tuberculose fui ao Instituto Histórico para pesquisar sobre Qorpo Santo. Lá encontro Afonso Guerreiro Lima que na época tinha 86 anos e tinha conhecido Qorpo Santo. O Afonso me disse:

“Conheci ele quando fui cobrar uma conta dele. Ele morava na Rua da Praia. Era maluco. A mulher saiu de casa e foi para casa de parentes com três escravos. Ele a trouxe de volta e gritava pela Rua da Praia “Essa é uma escrava que fugiu de casa”. 

Afonso Guerreiro Lima me disse que tinha “livros dele, inclusive “A Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade”.

Continuei pesquisando e descobri, no Colégio Júlio de Castilhos, uma bisneta de Qorpo Santo, Idália Freitas Lima. Ela trouxe uma fotografia do Qorpo Santo. Agora, ele já tinha um rosto.

Antônio Carlos Senna era meu amigo, estudava no CAD (Centro de Arte Dramática da UFRGS) e foi trabalhar no Clube de Cultura.

Guilhermino César organizou uma exposição de livros raros, em mais ou menos 1954, no Instituto de Artes, “A Saúde e a Justiça”. Perguntei para ele: “O senhor vai colocar os livros de Qorpo Santo?” Ele me respondeu: “Esse é um maluco”.

Um dia apareceu Dario Bittencourt que tinha “Enciclopédia” e “A Saúde e a Justiça”.

Fui no Dario Bittencourt, ele disse que tinha os livros, mas não emprestava porque era uma raridade. Disse que era pra eu voltar às 11 horas do dia seguinte. Voltei lá e ele disse: “O senhor tem uma hora pra ler”. Então o Dario perguntou “O senhor é o que do Athos?” “Primo”, respondi. Então ele disse: “O senhor vai levar o livro por um mês, cuide dele pois ele é ouro em pó.”

Levei para a Rádio da Universidade, lá fizeram um programa sobre Qorpo Santo (mais ou menos em 1957, 1958). Mas em mais ou menos 1956 o jornal “O Mocho” publicou trechos do Qorpo Santo e me entrevistou. A entrevista foi feita por Marco Aurélio Garcia que hoje (observação: outubro de 2008) é assessor do presidente Lula.

Em um mês, li o que eu pude. Levei o livro na Rádio da Universidade. Guilhermino apareceu e ficou com o livro e nunca avisou Dario Bittencourt que o livro estava com ele.

Fomos visitar Dario Bittencourt e o livro ficou com o Guilhermino Cesar, que tempos depois disse “Aquele livro é um tratado de psicanálise”.

Dario contou para a minha amiga atriz Lúcia Mello sobre os livros com as peças do Qorpo Santo; ela disse “Vou pedir o livro para o Guilhermino”. Ela era amiga do diretor de teatro paulista Fausto Fuser. Os dois queriam apresentar as peças de Qorpo Santo, eles disputavam as peças.

Nesse meio tempo, Guilhermino Cesar foi para Portugal. 

Antônio Carlos Senna veio me visitar e, junto com Fausto, fomos na casa de Guilhermino. Falamos com a caseira, que falou “Vocês sabem que livro é, então peguem.” Fausto deixou recibo que pegou o livro.

Todos fomos no CAD à noite e lemos os textos. Senna tinha sido assistente de Fausto. Ângelo Ricci, diretor do CAD, disse “não briguem para saber quem vai montar as peças, não vai sair nenhuma montagem, vocês entraram na casa do Guilhermino e pegaram o livro sem autorização dele. E o Aníbal nem é do CAD”.

Nós devolvemos o livro, mas copiamos três peças: “Mateus e Mateusa”, “Hoje sou um, amanhã outro” e “As relações naturais”.

Em 1964, tentamos produzir as peças, mas não conseguimos levantar a produção. Enquanto isso, Lúcia Mello deu entrevista na Revista do Globo dizendo que “Qorpo Santo era genial”.

Em 1966, Antônio Carlos Senna foi até o Clube de Cultura e propôs que fosse montado um espetáculo com os textos do Qorpo Santo. Fizeram uma votação e a montagem foi aprovada por um voto de diferença.

Nesse meio tempo chega de Portugal, Guilhermino Cesar.

Sugeri para o Senna que tivesse alguém de nome para fazer a apresentação do espetáculo explicando que Qorpo Santo era um cara desconhecido e o Guilhermino Cesar poderia escrever.

O Fausto já tinha badalado os textos do Qorpo Santo.

Guilhermino, muito vivo, escreveu para o Correio do Povo e, depois, escreveu a apresentação para o programa do espetáculo.

A montagem foi um sucesso.

Em 1968 a montagem foi apresentada no Festival de Teatro do Rio de Janeiro, promovido por Paschoal Carlos Magno, com Marcos Wainberg no elenco. Quem apresentou o grupo para o Paschoal foi Aron Menda (depois representante da SBAT-RS – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais).

Yan Michalski, do British Council, leu e arrumou uma apresentação no Teatro de Copacabana, a apresentação só pra imprensa, foi um sucesso, “uma maravilha”. Não assisti à apresentação pois tive que voltar a Porto Alegre.

Desde que voltei fiz o possível para contatar com Guilhermino. 

Fui devolver o livro para o Dario.

O jornalista Janer Cristaldo escreveu um artigo contra Guilhermino, que escreveu respondendo. Janer foi responder e Breno Caldas não deixou.
Guilhermino nunca mais falou comigo e acabamos rompidos para sempre. Fiquei sabendo que ele pensou que Janer Cristaldo era um pseudônimo meu.

O Dario também escreveu um artigo dizendo que eu é que tinha pegado o livro na casa do Guilhermino.

Guilhermino lançou o livro sobre Qorpo Santo e num pé de página tem a única referência a mim, dizendo que recebeu o livro de “um funcionário da Rádio Universidade”.


Os citados no depoimento de Aníbal Damasceno Ferreira:

-Afonso Guerreiro Lima (1870-1959) Figura destacada do magistério gaúcho, foi diretor da Instrução Pública do Rio Grande do Sul. 
-Antônio Carlos Sena (1942-2024) Diretor teatral e mestre do teatro bonecos.
-Aron Menda (1916-1982) Advogado, incentivador da arte cênica e diretor do Theatro São Pedro.
-Athos Damasceno Ferreira (1902-1975) Poeta e romancista.
-Breno Caldas (1910-1989) Jornalista, dono da empresa jornalística Caldas Júnior.
-Dario Bittencourt (1901-1974) Intelectual apaixonado pelos livros. “Desde os seus dezoito anos, em 1919, ele possuía em sua biblioteca uma obra rara de Qorpo Santo, eram alguns fascículos de “A Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade”, escreveu o jornalista Janer Cristaldo. 
-Fausto Fuser. Foi professor do Curso de Arte Dramática (atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS). Diretor, crítico de teatro, pesquisador, doutor e mestre em artes.
-Guilhermino César (1908-1993) Escritor, ensaísta, crítico literário e historiador.
-Janer Cristaldo (1947-2014) Jornalista e escritor.
-Lúcia Mello (1932-2005) Atriz e professora de teatro.
-Paschoal Carlos Magno (1906-1980) Ator, poeta, diplomata brasileiro. Incentivador do teatro brasileiro. Inaugurou, em 1965, a Aldeia de Arcozelo em Paty do Alferes (RJ), um centro de criação e expressão artística para jovens de todo o Brasil.


Trecho de Janer Cristaldo sobre a descoberta de Qorpo Santo, está disponível aqui:

“Aníbal Damasceno é um pesquisador do esquecido, do que foi coberto pelo pó do anonimato e do tempo. Sua concepção da História é nada marxista: diz como Machado: a História é mulher loureira. E continua: diante da eternidade, tanto faz ser Dante Alighieri ou Dante de Laitano. A pousar os olhos na figura de D. Pedro 1, sempre preferiu as memórias de Chalaça. Tomou-se de Barão do Cemitério. E também por Qorpo Santo.

Mas ao professor Guilhermino César, nada mais concedemos além do título de divulgador.

É verdade que assim já se referiu: “Um grupo de jovens, à frente dos quais se colocou Aníbal Damasceno, que a muitos estimulou na descoberta de pistas que levassem ao cerne dessa obra esquecida…“ Temos de convir ser esta uma referência excessivamente mesquinha a quem, além de ter ressuscitado o teatrólogo gaúcho, forneceu a Guilhermino César todo o material que constitui seu livro sobre Qorpo Santo, a saber: peças, documentação fotográfica. cópia do ato de encomendação e inventário. Em artigo posterior. persiste: “Já escrevi várias vezes que foi Aníbal Damasceno quem me forneceu a pista dos exemplares em que foram publicadas peças de Qorpo Santo”. Ora, Aníbal não lhe forneceu a pista, mas tudo. Notas inócuas ao pé das páginas, constituídas em geral por observações irrelevantes sobre a grafia do autor, é o único trabalho pessoal de Guilhermino César em seu livro sobre Qorpo Santo. E considerando que Guilhermino, no artigo de apresentação da peça do Clube de Cultura, nem sonha ter em mãos o precursor mundial do teatro do absurdo, só “ousando” assim classificá-lo quando Michalski, vendo apenas duas peças o proclama como tal, temos fortes razões para desconfiar dos critérios de seleção das peças reunidas. Se Guilhermino César não teve sensibilidade para aquilatar devidamente o autor que lhe foi apresentado, tê-la-ia para selecionar seus melhores textos?

Ao trazermos a público estes dados. pretendemos prestar um depoimento à História enquanto vivem os protagonistas deste caso.”

Aníbal Damasceno Ferreira (à direita) e Gilberto Perin . Foto de Marcos Verza, 2010.

1976 – Elenco posa em Triunfo para programa da peça Qorpo Santo um século depois – Reprodução do programa do espetáculo


Gilberto Perin é fotógrafo e roteirista. 

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