Ensaio

Por onde começar?

Change Size Text
Por onde começar? Foto: Maurício Tonetto/Secom

A tragédia que vivemos no Rio Grande do Sul está longe de acabar. 

Publicidade - ZapMatinal Publicidade

Descobri isso na última semana, enquanto assistia a uma palestra do professor Joshua Morganstein para o Grand Round do Hospital de Clinicas de Porto Alegre, onde ele apresentou uma curva representando o impacto emocional ao longo do tempo, em cada uma das fases de um desastre. 

Tudo começa antes, quando são criadas as pré-condições para o evento. A partir do desastre temos um momento heróico: pessoas salvando pessoas, um grande número de voluntários, uma força única que parece se desenvolver a partir da noção de que somos um coletivo e precisamos ajudar o outro. Esse processo nos leva a um período de lua de mel, onde o senso de comunidade e de pertencimento é reforçado e a identidade coletiva é ampliada. 

Provavelmente estamos nesse momento, e essa força é muito importante para a necessidade de reconstrução que se coloca a nossa frente. Pessoas voluntárias, doações, trabalho nos abrigos, são apenas alguns dos exemplos do nosso senso de coletividade que aflora na compreensão da importância do nós, em um processo de afastamento do individualismo em direção a uma construção coletiva. 

Embora este seja um momento fundamental para o processo de reconstrução, antes da reconstrução começar viveremos uma outra fase, de desilusão. Me parece que essa fase é impactada por novos problemas, por falta de planejamento, por uma compreensão real das dificuldades que temos à frente, pelos danos que antes eram possibilidade e agora se apresentam como realidade. Esse período é longo e, segundo o modelo, mais ou menos um ano depois do desastre é que a reconstrução efetivamente começa.

Claro que não existe uma previsão única para esse processo e para estes tempos, tudo é variável e dinâmico. Mas é importante compreendermos, em termos emocionais, como cada uma destas fases nos afeta.

Penso nisso agora, quando é preciso voltar para nossas casas, empresas, escolas. Cada uma das pessoas impactadas viveu momentos de profunda tristeza, mas também de acolhida. Viveu momentos de medo, mas também de afeto, e provavelmente mantém constantemente uma vontade de voltar para casa e também para os locais aos quais pertencem. Mas essa volta, embora tenha como objetivo a retomada do que tínhamos, nos apresenta um desafio maior: o não reconhecimento é encontrado. 

Casas que não são mais lares, escolas que não são mais lugares de conviver e aprender. Lugares que se transformam, em certa medida, em não lugares. Esse termo foi desenvolvido pelo antropólogo Marc Augé e pode ser utilizado para espaços onde passamos, muitas vezes transitórios, onde nossa identidade não aparece e as conexões culturais e sociais não são fortes. Exemplos tradicionais de não lugares são shoppings, rodoviárias, supermercados.

Um lugar, ou mais especificamente, o nosso lugar, pode se configurar na construção do senso de pertencimento, de bem-estar, de conexão real, de afeto.

Quando olhamos a destruição, o apagamento de objetos que representam e consolidam memórias afetivas, momentos de alegria, construções sociais e culturais de nossa humanidade, avançamos para um espaço de desilusão e de questionamento sobre o que precisamos fazer. O nosso lugar vira um não lugar e precisamos compreender que caminhos seguir. Nosso primeiro questionamento, de modo geral, é: por onde vamos começar?

Essa foi minha sensação quando entrei em uma escola de Porto Alegre nesta semana, como voluntário de um mutirão para organização do espaço. A maioria do grupo que lá estava tinha uma relação afetiva intensa com o lugar. Começamos a trabalhar limpando, tirando móveis, brinquedos, materiais. Trabalhamos ativamente sem pensar muito e com o objetivo bem definido de jogar fora tudo que estava estragado. Ao final, avançamos nessa direção até chegar a um espaço vazio. 

Mas a escola não é o vazio, é o lugar da amizade, da brincadeira, do aprendizado, do ensino, do convívio. É lá que nos desenvolvemos, identificamos modelos, inspiração, amores, desamores, pessoas que queremos perto ou longe para o resto de nossa vida. 

É o lugar da construção da nossa identidade.

Fiquei pensando em cada uma das crianças retornando para aquele espaço e buscando reconhecer-se ali.

Essa sensação não está circunscrita à realidade de uma escola: segundo dados da Secretaria de Educação do estado foram 578 escolas danificadas e mais de 381 mil alunos impactados. Dá para multiplicar a complexidade da solução por 578, quando pensamos apenas nas escolas. Dados da FIERGS apontam que nas cidades impactadas existem 47 mil indústrias, com 813 mil empregos. Ainda não temos dados consolidados sobre ambientes culturais, mas em determinadas áreas, como o quarto distrito de Porto Alegre, a maioria dos bares e casas de shows foi fortemente afetada.

Por onde começar? 

Me parece que o momento demanda uma construção coletiva, uma conexão efetiva entre sociedade civil e governo, para que possamos planejar e executar uma retomada que nos afasta da destruição e nos aproxima do bem coletivo. 

Mas para isso, precisamos repensar nosso modelo de desenvolvimento. Precisamos retomar a praça, o espaço do coletivo, da relação. Precisamos pensar nos recursos naturais, nos espaços comuns. Precisamos mudar a lógica de exploração e destruição do meio ambiente.

O desafio de reconstruir nosso estado pode facilmente nos levar a repetir modelos que nos trouxeram até aqui, priorizando indústrias ou práticas que consomem os recursos naturais e coletivos e aprofundam as potenciais perdas de longo prazo. 

É a hora de buscar novas matrizes, novas formas de desenvolvimento econômico, de valorização do local, de valorização dos pequenos negócios. 

Cada um de nós tem um sentimento, um identidade, mas de alguma forma, o nosso pertencimento a este lugar se faz presente no dia a dia na coletividade. Às vezes criticamos o bairrismo gaúcho, outras nos orgulhamos de pertencer, mas o fato é que somos daqui. Somos um grupo, um coletivo.  

Reconstruir passa por compreender que todos somos parte do todo. E somos parte um do outro.


Fontes: O modelo para estágios de recuperação em desastres foi definido por Zunin e Myers e, a partir da palestra do professor Joshua Morganstein, acessado no trabalho de Deborah J. DeWolfe Training Manual for Mental Health and Human Service Workers in Major Disasters.  U.S. Department of Health and Human Services, Substance Abuse and Mental Health Services Administration, Center for Mental Health ServiceS, 2000


Gustavo Severo de Borba é Doutor em Engenharia de Produção, professor e escritor. Diretor do Instituto para Inovação em Educação da Unisinos, é autor dos livros A Escola do Futuro (Penso Editora,2019), com Marcos Piangers, Transformando a Sala de Aula (Penso Editora,2023), com Melissa Lesnovski, entre outras obras. Nascido em Santa Maria-RS, vive em Porto Alegre desde 1996.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHEUM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.