Ensaio

Populismo – sinal de má política ou pleno exercício da democracia?

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Populismo – sinal de má política ou pleno exercício da democracia? O velho chega de novo ao Catete. Acervo: Memorial da Democracia. Equipe: Antonio Alonso Jr. et al. 2015-2017.

Aproximando-nos das eleições, junto aos inúmeros santinhos e as centenas de banners por toda a cidade, ressurge a acusação que todos proferem, mas a qual ninguém ousa se identificar: “Populista!”

O populismo, termo utilizado para atacar adversários localizados nos mais diversos pontos do espectro político, carece de definição semântica ou conceitual. Em síntese, significa política voltada para agradar grandes parcelas da população, buscando apoio próprio. Atualmente, é utilizado como sinônimo de má política, carregando consigo vasto imaginário, ideias cristalizadas na memória social e calcadas na crença de que as camadas populares não são aptas a votar. Conteúdos virais nas redes tentam comprovar essa teoria, demonstrando troca de votos por cestas básicas, comissões e outras vantagens em troca do voto. Pseudojustificada pela suposta falta de instrução, de conhecimento político ou de fundamentação ética da população carente, essa forma de juízo expressa o profundo preconceito com a participação popular nos destinos do país, fortemente enraizado na cultura política brasileira.

 Mas de onde vem esse imaginário? 

Ainda nos anos 1940, Vargas foi responsável por um repertório de leis sociais entre elas a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Embora esse conjunto não tenha garantido plenamente a participação popular na política, pelo menos iniciou o processo de inclusão das camadas populares no exercício da cidadania ao longo das décadas de 1950 e 1960.  Antes reprimidos, sindicatos e organizações populares puderam pressionar as altas esferas da administração pública pelo atendimento de suas reivindicações. Outro resultado, mais severo, foi a reação das classes conservadoras. 

Até meados dos anos 1950, a expressão “populismo” nem era empregada no Brasil. A palavra foi inserida no linguajar brasileiro através dos grandes jornais. Geralmente alinhados ao conservadorismo, esses periódicos representavam o receio das elites com a mudança da “ordem natural da sociedade”, isto é, as classes humildes condenadas à escassez e as classes médias consolidadas, enquanto as elites detêm o controle, comandando a política a seu bel-prazer.

A parcela conservadora da população receava a velocidade dessas transformações, temores replicados pela imprensa. Em agosto de 1951, em um dos maiores e mais lidos jornais do Rio de Janeiro (Correio da Manhã), naquela época a capital do Brasil, o jornalista Augusto Schmidt afirmou que “as massas, ainda mal despertas, passaram a ter voto e voz” e que, por conta disso, “viu-se crescer e assumir aspectos imprevisíveis a arte demagógica”. Populista, então, denominaria aqueles políticos “preferidos pela inexperiência trágica de um povo que não sabe reconhecer os verdadeiros e raros valores ainda restantes[1]”.  Já em editorial de 1955, o mesmo jornal afirmou que:

O “populismo” representa, porém, a degradação política. O resto, exprime-se pela mediocridade dos processos e das pessoas. O “populismo” exprime-se – se se pode exprimir – pelo caráter primário, inorgânico e tumultuário dos “slogans” e dos fanatismos. […] os comunistas, sem legenda partidária, vestem-se nele para infiltrar -se na campanha de sucessão presidencial.[2] 

Não podemos esquecer que, em meio ao contexto internacional de Guerra Fria, o mundo estava dividido entre aliados do capitalismo estadunidense ou do comunismo soviético. Apesar de ser um perigo remoto, a ameaça comunista foi utilizada como legitimadora das pretensões conservadoras, relacionada, como vimos acima, ao populismo. Para apoiar os candidatos alinhados às suas prerrogativas, as elites urbanas defendiam que havia com a participação popular, através do voto, via políticos “populistas” “uma inversão dos valores democráticos, por um populismo de meia tigela, uma espécie de apelo ao povo para que participe do governo, para que se intrometa diretamente nos negócios públicos”[3]. Em outras palavras, sustentavam o juízo de que a administração pública não era espaço destinado à população. 

Por outro lado, a crise econômica, a carestia e a falta de regulação do trabalho nas zonas rurais (as leis trabalhistas só se estenderam ao campo nos anos 60) desencadeavam nas camadas populares o sentimento de menosprezo, de desigualdade. Eram criticadas por escolherem candidatos que, apesar de pragmáticos, de algum modo efetivaram o atendimento das suas reivindicações. Na verdade, os discursos das parcelas dominantes, apesar de revestirem-se de uma falsa preocupação com a política brasileira, revelavam o preconceito com a escolha popular para os cargos públicos. 

Esse sentido pejorativo de populismo, gerado através da imprensa, foi rapidamente adotado pelos sociólogos do período. Octávio Ianni, por exemplo, em O colapso do populismo no Brasil (1968), endossava a tese da falta de habilidade do povo brasileiro em participar do processo eleitoral, apoiando-se na “teoria da modernização”. Segundo essa ideia, a população vinda do campo em busca de trabalho nas cidades não possuiria a educação política necessária e, por isso, não saberia escolher seus candidatos. Isso abriria espaço para que políticos demagógicos a ludibriassem, transformando a política em uma grande negociata. 

Foi apenas nos anos 1980-2000 que novas leituras do populismo surgiram. O escritor argentino Ernesto Laclau (1935 – 2014) colaborou com essa renovação. Propôs que o populismo é um fenômeno natural a toda experiência política, independentemente de espectro ideológico (direita ou esquerda). Qualquer que seja o dito nível intelectual ou econômico de uma nação, quando parte do povo se sente desassistido pelas instituições, exercem demandas. Se não atendidas, irão se aglutinando, construindo um grande bojo social, uma fronteira imaginária entre “nós”, em oposição a “eles”. Essas linhas simbólicas, longe de serem artificiais, são comuns em variados aspectos da vida social, permitindo a construção das identidades individuais e coletivas. De outra maneira, significam a formulação de categorias flutuantes em que as pessoas, percebendo-as, estabelecem ou não relação de afinidade. A mídia, a publicidade, as redes sociais e demais veículos produzem o tempo todo essas classificações. É a criação dessa fronteira social na política que configura o populismo, em que parte da população passa a se identificar com o grupo dos “esquecidos”, dos “incompreendidos”. 

O populismo e os “populistas”, àqueles que buscam interagir com camadas mais amplas, não são, necessariamente, defeitos ou desvios da política. No Brasil e, de modo semelhante, no mundo, o que ocorreu em relação à expressão foi um processo de significação social, uma criação discursiva que representava valores e interesses de determinadas classes. Retornando ao presente, de onde partimos no início deste ensaio, é a nossa percepção social de populismo que corrobora para a crença de que a política no Brasil não funciona. Possuímos urnas eletrônicas, Justiça Eleitoral, direitos políticos bem consolidados pela Constituição de 1988. Contudo, normalmente não vemos problema – e até endossamos – a ideia de que não vale se importar com política, de que o processo eleitoral não merece nossa atenção. Votos nulos e brancos refletem, na prática, essa crença. 

É confortável estar na posição de espectador dos acontecimentos, porém nem sempre calculamos o custo dessa atitude. Diante de tudo o que foi discutido aqui, deixo como encerramento a seguinte questão: a quem convêm que você não se importe com política?

 


Notas: 
1 – O fogo”. Correio da Manhã, 23 de agosto de 1951, artigo assinado por Augusto Frederico Schmidt.1°, página 2.
2 – “Provocação e populismo”. Correio da Manhã, 16 de maio de 1955. Editorial, 1° caderno, página 6
3 – “O direito de fiscalizar”. Correio Paulistano, 28 de maio de 1952. Editorial. 1° caderno, página 4.


Para ler mais: 

D’ARAUJO, Maria Celina. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise política. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. Brasil, 1945-1964: uma democracia representativa em consolidação. LOCUS: Revista De História, n. 2, fev.2019. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20880. Acesso em 26 jun. 2021.

** Os jornais aqui citados, bem como um vasto acervo de demais títulos, podem ser acessados gratuitamente através do site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A plataforma permite buscar por periódico, por período e por palavra.  


 

Pâmela Chiorotti Becker é professora, mestre em História pela PUCRS, criadora de conteúdo digital pelo Instagram @facilitapesquisa. Pesquisa atualmente a função das mídias como construtoras de imaginários sociais. Contato: [email protected]

 

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