Memórias emocionadas

À abertura de um novo capítulo! – homenagem a Fredi Gerling

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À abertura de um novo capítulo! – homenagem a Fredi Gerling Foto: Simone Wolf

Fredi Gerling, meu querido colega e professor de violino, está se aposentando depois de décadas de intenso trabalho na UFRGS (e fora dela), período em que o Departamento de Música da universidade se desenvolveu muito, em diversos sentidos. Junto a outros colegas, participou da reformulação de currículos do curso, fortaleceu a pós-graduação, encaminhou burocracias e decisões como chefe de departamento, trabalhou na realização de concursos docentes, deu muita aula, etc. etc.

Conheci de fato o Fredi uns dois semestres depois que ele voltou de uma licença para fazer doutorado, quando o prof. Marcello Guerchfeld, com quem eu tinha aulas de violino no curso de graduação, se aposentou. Cursei a metade que faltava para eu me formar sendo aluno de violino do Fredi.

Gostaria de destacar um fato, entre tantos outros também positivos que surgiram naqueles anos, nessa nossa relação professor-aluno. Professores do curso eventualmente indicavam a leitura de livros, relativos ao conteúdo de suas aulas, e eu como aluno interessado ia atrás de ler algumas dessas indicações. (Eu lia bastante, mas mais literatura mesmo.) Em um curso com um perfil principalmente prático (fazer música), naqueles anos ler livros inteiros sobre fenômenos musicais, no contexto de uma disciplina, não era lá uma prática muito corrente entre alunos das ênfases em instrumentos – alguns professores preparavam apostilas com materiais selecionados, e o conteúdo das avaliações era aquele exposto em aula, para nós alunos calcado nas palavras da ou do docente (que normalmente citava suas referências, como deve ser).

Eu sabia da existência de livros sobre questões técnicas e musicais no violino, mas o Fredi, de todos os professores de violino que eu tive (antes e depois), foi o ÚNICO que me deu a TAREFA de ler e preparar uma apresentação sobre um capítulo de um livro dessa espécie – um de Robert Gerle, no caso. O plano era que alunos fossem apresentando o livro na nossa aula coletiva semiformal (ainda não existiam as disciplinas coletivas hoje chamadas “Laboratório de execução instrumental”), e aí se abria uma discussão, com comentários do Fredi. Pois é, nunca mais um professor de violino me deu uma tarefa dessas, e essa ausência é bastante comum no meio violinístico (e no de outros instrumentos), no mundo todo. Pode parecer coisa pouca, mas a significância de algo tem que ser medida em relação ao contexto em que ocorre. Foi uma abertura, das muitas feitas por ele, apontando caminhos que efetivamente podem ser trilhados.

A Brigitta Calloni, minha companheira, também violinista, hoje na OSPA, também aluna do Fredi naquele momento (e também depois, no doutorado dela!), também participou dessa atividade de leitura e apresentação do livro. Na pequena homenagem que fizemos na última quarta-feira com as turmas de violino, viola e piano, ouvi da Hella Frank, minha outra querida colega do violino na UFRGS, sobre as muitas “sementes” plantadas pelo Fredi e sua companheira Cristina Capparelli ao longo dos anos. Pois daquela experiência de leitura ficou uma semente em mim e na Bri que deu frutos. Começamos (mais ela do que eu, inicialmente), para além de buscar orientações de violinistas e professores “ao vivo”, a também ler livros e materiais escritos por violinistas e professores de violino, alguns já considerados clássicos, do passado. Quem conhece o campo sabe que esse é um tipo de leitura frequentemente aborrecido, com termos e recortes específicos da técnica de violino, com foco na mecânica instrumental e em descrições de processos físicos, na exposição de problemas e exercícios para enfrentá-los etc. As partes mais inspiradoras do fenômeno musical podem até parecer ausentes, e eventuais pedantismos ou imprecisões do autor tendem a frustrar quem está buscando entender e construir sua relação com o instrumento. O que é posto em evidência são as engrenagens do tocar, inescrutáveis para o público – e às vezes, em maior ou menor medida, também para nós instrumentistas.

Mesmo entendendo hoje que o mais determinante para o desenvolvimento de novos instrumentistas é o meio social e musical em que se inserem por períodos significativos e o trabalho que professores vão desenvolver diretamente com esses estudantes, vejo que também é necessário fomentar e normalizar o acesso aos “clássicos” da literatura especializada de nossos instrumentos, nesse nosso meio de músicos práticos (e não necessariamente só para os que estão na “academia”). Quem teve aulas de violino com o Fredi e de piano com a Cristina passava em frente à biblioteca deles, abarrotada de livros, partituras e discos, que eles generosamente emprestavam – materiais que agora foram generosamente doados a colegas (eu inclusive), estudantes e instituições. Essa biblioteca era, e ainda é, um exemplo para os alunos. Mais sementes.

Hoje, estudantes de violino e viola da UFRGS têm acesso ao menos a um punhado de escritos sobre técnica de violino, traduzidos por mim para o português, de autores importantes em nosso meio. Considero esse tipo de leitura fundamental para nos situarmos historicamente com os desenvolvimentos do violino ao longo de seus mais de 400 anos de história, para conhecermos diferenças e desenvolvimentos entre autores, para participarmos criticamente na construção presente e futura dessa prática, seja alterando ou preservando suas várias facetas. Menciono isso porque esse sentido geral que costumo apontar, que quem estuda comigo conhece, tem muito algo do Fredi.

Como colega, finalmente, o Fredi foi exemplar comigo, sempre com muito respeito, acolhimento e estímulo em nossas várias atividades conjuntas – agradeço a ele (e à Hella) pelo ótimo ambiente de trabalho no nosso setor, nesses oito anos em que sou professor na UFRGS.

Parabéns por tudo, Fredi, que lindo legado. Que o próximo capítulo seja igualmente proveitoso!

(O Fredi se dedicou muito também ao ensino de crianças, e a foto aqui com um menino é a favorita dele como professor, segundo ele próprio.)


Camilo da Rosa Simões é professor de Violino no Instituto de Artes da UFRGS. 

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