Ensaio

Mello da Costa: adeus à pudicícia

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Mello da Costa: adeus à pudicícia Mello da Costa com seu cão Lipe. Foto: Acervo Roberto Bonini

18 de setembro de 1970. Porto Alegre tem muitos espaços para exposições de arte. A Galeria Pancetti fica na rua dos Andradas, 1568, na altura da rua Vigário José Ignácio. Anuncia-se uma mostra do pelotense Mello da Costa (1947-1993).

Francisco Bittencourt (1933-1997), nascido em Itaqui, homossexual que se tornará conhecido por participar da fundação do jornal Lampião da Esquina (1978-1981), é responsável pela apresentação: “[…] nota-se uma constante alusão irônica a certos elementos poéticos, como por exemplo um chapéu que paira sobre algumas figuras, lembrando a cartola rota de Carlitos. Há ainda personagens-temas, como a mulher gorda, que é uma espécie de retrato psicológico da impudicícia ou da lascívia. Existe também a preocupação de autorretrato […].”

 

Convite para exposição na galeria Pancetti. Acervo de Roberto Bonini.

 

Para o crítico, Mello da Costa pode ser incluso na turma que, mundialmente, clama  “faça amor, guerra não”. Quanto à técnica, “manifesta preferência pelas cores pálidas ou terrosas, os ocres e os marrons, […] uma pintura altamente resolvida em sua luz e sombra e onde o desenho – a linha, o contorno – desempenha papel importante.” Para Bittencourt, o pelotense é um “artista dentro de uma geração que resolveu adiar por algum tempo o gesto de situar-se dentro de uma escolha, [mas que] começa a dar mostras de sua inquietação”, lançando mão de uma arte com “refinada ironia”. Mas Bittencourt espera mais no futuro. De momento, é “bom sinal”.

 

O casarão Mello da Costa

 

Na esquina da rua General Telles com a rua Marechal Deodoro, em Pelotas, reside o casal Iara Mello da Costa (1924-2017) e João Pacheco da Costa Neto (1919-1984). Ela é dona de casa. O marido é advogado. Da união, nascem Luiz Carlos Mello da Costa, em 03 de setembro de 1947,  Fernando Mello da Costa (1950-2019), que virará um cenógrafo reconhecido no país, e Eda, a primogênita, que ainda vive. 

Muito cedo, a família nota propensão às artes em um dos filhos. Relatos apontam que teria usado o batom da mãe ou os lápis de sobrancelhas para pintar pelas paredes do casarão. As aulas regulares são no colégio Santa Margarida. Apoiado pela mãe, por quatro anos (1958-1960), recebe instrução particular, de desenho  e pintura, de Domingos Caputto. 

Vencedor de um concurso de desenho, com incontestáveis habilidades, recebe uma bolsa de estudos para a Escola de Belas Artes (EBA), a três quadras de sua residência. A escola existe desde 1949, fundada por Marina de Moraes Pires. Entre os primeiros professores da instituição, Aldo Locatelli (1915-1962), que vive em Pelotas, onde é responsável pela pintura da Catedral São Francisco de Paula.

Antes da maioridade, Mello da Costa já participa de exposições coletivas. Em 1967, forma-se. Recebe uma medalha, concluindo o curso com louvor. Curiosamente, o Dicionário de artes plásticas no Rio Grande do Sul, de Décio Presser e Renato Rosa, menciona que terminara por “abandonar os estudos”, o que não confere com as demais fontes. 

Em 1968, ganha outra bolsa, dessa feita do Instituto Brasil-Estados Unidos (IBEU), no Rio de Janeiro. Por esse tempo, começa a fazer exposições individuais. Uma acontece no hall do Grande Hotel (1968), prédio ao lado da praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas. O edifício está em restauro desde 2019. Desativado, hoje pertence à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). 

Ainda em 1968, o artista apresenta uma mostra na Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre. No Rio de Janeiro, estuda com Ivan Serpa (1923-1973), que dá aulas no Museu de Arte Moderna. Na então capital do país, ajuda a fundar a Feira Hippie de Ipanema, que acontece desde 1968, considerada a maior galeria de artes a céu aberto do mundo. Em 1969, expôs na Alitalia e na galeria Caquinho. Alitalia é uma empresa aérea que opera entre 1947 e 2021. As artes são expostas em um painel, no endereço da agência, na Avenida Atlântica. A Caquinho está situada na rua Siqueira Campos, em Copacabana.

 

Tela fotografada por Neco Tavares.

 

Em julho de 1970, acontece uma individual na sala Goeldi, em Ipanema, também no Rio de Janeiro. O crítico Jacob Klintowitz, na Tribuna da Imprensa de 18-19 de julho de 1970,  ironiza o convite, dizendo que é “impossível de ser entendido por quem não seja no mínimo um guru”. A chamada espezinhada conclama para uma exposição em que é oportunizado mergulhar na “possibilidade de representar visualmente o trajeto do puramente possível, de anular os estados de real pela simples mudança do ponto de referência, apenas isso e todas as possíveis relações que apenas possa ter com a forma e a atitude”. Frederico Morais, outro crítico de arte, parece não gostar. No Diário de Notícias, em 30 de julho de 1970, informa, depois de destacar que se trata de um talento desde os dez anos de idade, que, na sala Goeldi, é visível que o “nível anda baixando assustadoramente.” Mas Roberto Milost, também na Tribuna da Imprensa de 18-19 de julho de 1970, argumenta que “é de se dar um pulo até lá porque seu talento merece ser conhecido.”

Mello da Costa vive em um apartamento comprado pelo pai. De Pelotas, traz Josuel Miranda, que vem como uma espécie de empregado doméstico. Josuel, ao mesmo tempo, aprende técnicas de pintura, tornando-se, futuramente, um artista naif com marca própria. Nessa época, Mello da Costa está noivo de uma mulher muito bonita, da família Zambrano, com quem aparece nas exposições. 

 

Um hippie com arte figurativa

Depois de expor em Porto Alegre, Mello se torna verbete tímido no Dicionário das artes plásticas no Brasil (1969), de Roberto Pontual (1939-1994), que o vincula ao expressionismo. Em terras fluminenses, conhece artistas e pessoas da alta sociedade, muitos dos quais retrata. Um dos trabalhos mais lembrados é uma pintura de Maria Bethânia, feita em 1971, quando ela emplaca o show Rosa dos Ventos no Teatro da Praia. Dizem que essa tela não existe mais. Também coloca em quadro, nu, de perfil, o estilista Clodovil Hernandes (1937-2009). A socialite e atriz Beki Klabin (1921-2000) é retratada em duas ocasiões.

 

Mello da Costa com Maria Bethânia. Acervo de Ana Rizollo.

 

A trajetória do artista é super resumida, por Jenniffer da Silva Campos, em um trabalho de conclusão de curso (2008/2009), do qual uma síntese está disponível na internet: Duas décadas de Mello da Costa: a contribuição do artista para a cidade de Pelotas nos anos 1970 e 1980. Na pesquisa, ela alega que seu objeto de atenção é “pouco conhecido em sua região [Pelotas]”, dando-lhe a seguinte conformação: “Luiz sempre um homem de gênio forte, poucas palavras e de grande expressão artística. Se podia dizer que era muito minucioso, perfeccionista, exigente de seu trabalho […].” Supostamente, Jenniffer abandona o projeto, porque passa em um concurso.

Já Manoel Francisco Tavares dos Santos, multiartista, estilista, fotógrafo e pintor, mais conhecido por Neco Tavares, escreve o artigo Um pintor pelotense do século XX, que integra um levantamento iniciado, na UFPel, em 2010. Em seu trabalho, assevera que Mello da Costa, ao longo dos anos, flerta com o renascentismo, o impressionismo, o fauvismo, o expressionismo, o cubismo, o surrealismo e o hiper-realismo. 

O avanço de Tavares é no sentido de catalogar a obra, localizando proprietários, fotografando o acervo. Também há esforços para fazer um relato biográfico cronológico. Um curriculum vitae fora elaborado, anteriormente, pela professora de arte, da UFPel, Maria Luíza Pereira Lima. Em 2011, provavelmente movido por esse novo entusiasmo pelo artista, o porão da Bibliotheca Pelotense recebe o nome de Espaço de Arte Mello da Costa.

 

Tela fotografada por Neco Tavares.

 

As imagens coligidas por Tavares permitem observar diversas fases. Há referências renascentistas, mudança na paleta de cores, inspirações psicodélicas, erotismo despudorado, retratos, naturezas mortas – figuração e criação. 

Aparentemente, pelo acima relacionado, Mello da Costa tem sido estudado e está a salvo do esquecimento. Mas não é bem o que acontece. O trabalho de Jenniffer não está acessível na internet, salvo um mísero resumo. O artigo de Neco Tavares informa sobre a reunião/produção do material. Mas seu compilado ainda não é um livro-catálogo disponível para a compra. Aparentemente, conforme postagens em redes sociais, ao tentar financiar o projeto, por um edital, tem uma recusa sob a argumentação de não ser prioritário.  A homenagem no Espaço de Arte Mello da Costa é um avanço titubeante. No subsolo do prédio, há poucas obras em exposição. As condições são suspeitas. Não é úmido demais? 

A cidade parece realmente não dar atenção ao rebento – conforme insinua Jenniffer. Fora de Pelotas, a situação não é melhor. O Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) não tem obras. Nem consta um verbete remetendo ao histórico artístico no acervo documental. O Museu de Arte Contemporânea do RS (MACRS) tampouco possui algo no catálogo. Diante disso, doravante, me aventuro a contribuir com um vislumbre específico, que percebo, muitas vezes, contornado. Escrevo depois de dialogar com várias pessoas, relacionadas ao final, bem como de ter passado seis dias em Pelotas.

 

Modelos nus: liberdade e caretice

Ainda em 1972, Mello da Costa viaja para a Bahia, onde expõe na Galeria Candeeiro, na capital. Em 1977, volta a Salvador, onde fica por alguns meses. Desse período, conforme depreende Neco Tavares, há uma incorporação de cores vivas, que serão marca registrada. Torna-se solar. 

Em 1982, retorna a Pelotas, onde passa a expor nas galerias Masson, Larré da Silva, do Unibanco e da Sibisa.  A partir de 1988, no casarão da família, leciona arte para pequenas turmas, que pintam modelos vivos ou bonecos – focando na arte figurativa. Mello continua pintando até 1991, quando interrompe a produção em função de doença. Os últimos quadros são mais escuros, com o peso das sombras da morte. Após longo período acamado, falece em 18 de julho de 1993. 

É nesse ponto que entro, sustentando haver mais a inferir antes de registrar o óbito. Nos anos 1970, Mello da Costa tinha uma noiva, pessoa que ainda vive. Formada em Medicina, não gosta de relembrar o passado. Outra namorada, acredita-se que de Minas Gerais, tem destino ignorado. Além delas, é indeclinável mencionar as diversas relações com homens, algumas mais longevas, como a que teve com um rapaz chamado Daniel.

 

Tela fotografada por Neco Tavares.

 

A atração por rapazes está escancarada na produção artística –  que ninguém me apareça retrucando com a flatulenta arte pela arte! Percebe-se facilmente, nos nus masculinos, muito mais do que figuração acadêmica para aprender a desenhar o corpo humano. O homoerotismo explode na tela e chega quente aos olhos. Mello é, entre os artistas gaúchos, um dos mais prolíficos nesse sentido – a potência e a invulgaridade não podem ser descartadas do portfólio. 

Muitos de seus modelos, nos anos 1970-1980, são homens, de Pelotas, que lidam bem com a liberdade sexual, explorando a sexualidade. Não faltaram modelos e, entre eles,  namoricos. Alguns ainda vivem. Mas boa parte daqueles moços, tão desinibidos, hoje está casada, mantendo relacionamentos heterossexuais. Muitos estão caretas – transformação difícil de ser compreendida. Não falta quem relate que alguns deles, preocupados com o que poderiam pensar os familiares, destruíram as obras nas quais figuravam sem roupas. Outros venderam as artes para evitar diz-que-diz. 

Há controvérsias, mas se sugere que os nus não tinham apelo comercial, porque, apesar da exímia técnica, as pessoas não sabiam o que fazer com as telas. Como pendurá-las na sala? Outros afirmam que os óleos sobre tela eram feitos como forma de catarse, sem intenção de venda. Gays foram os principais consumidores. Hoje um quadro desses é disputado a tapa. Alguns gays daquele período, ao verem os retratos, fazem comentários como: “Esse é o fulano”. Ou brincam: “Nesse aqui, ele aumentou o bilau. Tinha o bilau pequeno.”

O pintor Roberto de Moura Bonini, amigo de Mello, recorda de uma pessoa extrovertida, comunicativa, que teria ficado mais reclusa com o passar do tempo. José Eduardo Barbosa Cunha, amigo e colecionador, menciona que, no retorno a Pelotas, o artista se torna uma pessoa mais discreta, reservada, saindo pouco, recebendo os amigos na residência-atelier.

Um point daquele período é a casa de Manoel Eduardo Cascaes de Mattos (1954-2005), o Neco Mattos. Certa feita, durante uma festa, estando presentes os irmãos Mourão, Reginaldo e Ronaldo, depois de beber além da conta, Mello arranja uma confusão com um deles. Provavelmente o heterossexual. Alguns dizem que se declara, dizendo-se apaixonado. Ao ouvir uma resposta tortuosa, vai para casa e pega um revólver. A turma evade. Da rua, ouvem-se vários tiros. Não há mortos, nem feridos, mas a história vira lenda.

Neco Mattos, que congrega a turma, muda para Porto Alegre e falece, vitimado por meningite, após alguns anos trabalhando no Banrisul.  Muitos outros perecem. Os que ainda estão por aí dizem que, de voz grossa, aparência máscula, Mello da Costa não aparenta ser homossexual (bissexual, provavelmente). 

 

Rapaz com traços afeminados. Fotografia de Neco Tavares.

 

Mello é apaixonado por literatura. Por teatro. Chega a atuar. Tem proximidade com o pensamento de esquerda, mas, aparentemente, não o manifesta na arte. Ana Rizollo e Bonini recordam de sua adoração por cachorros. Um dos últimos é Lipe. O cão fica sempre ao pé do leito onde Mello, fragilizado pelo vírus da Aids, passa boa parte do tempo. Dias após o óbito, Lipe é encontrado morto embaixo da mesma cama. Não quis ficar.

Para ilustração, cabe lembrar que, entre os pelotenses pintores e gays, o homoerotismo também é expresso por Mário Alberto Birnfeld Röhnelt (1950-2018) – o quadro recentemente roubado do Bar Ocidente, em Porto Alegre, é dele. No entanto, Röhnelt, adepto da pop-art, é cultuado. A pop-art aparece, no RS, pelos anos 1960/70, e com nova expressão  e nomes nos anos 1980. Com incorporação de temas sociais, certa contestação, ocupa espaço. Artistas mais “acadêmicos”, especialmente ainda não consolidados, são sublimados. 

Mello da Costa, com uma visível assinatura, com rara força homoerótica, em rasteira à pudicícia, merece um altar. É tempo de acertar as contas com quem, sozinho, dá conta de alimentar um QueerMuseu.  Da tímida exposição do ninfeto, na Galeria Pancetti, em 1970, para uma grande mostra. Exuberância quali-quantitativa. Um dos maiores colecionadores reside em Porto Alegre. Fica a dica.

 


Agradecimentos: Ana Rizollo, José Luiz de Pellegrin, Josuel Miranda, Neco Tavares, Acelino Carús Guedes, Henrique Pires, José Eduardo Barbosa Cunha, Roberto de Moura Bonini, Célio Golin.


 

Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. O gaúcho era gay? Mas bah! é seu último título, lançado em 2023.

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