Ensaio

Literatura de teutodescendentes – 2 – Os modernistas

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Literatura de teutodescendentes – 2 – Os modernistas Augusto Meyer. Foto: Autor desconhecido

Vamos encontrar os primeiros escritores germânicos a ganharem destaque em português na geração modernista. Se demorou bastante para os primeiros descendentes dessa origem se expressarem na língua do país, é certo que para isso contribuiu, tanto quanto o relativo isolamento dessas comunidades, a insuperável diferença entre os dois idiomas. Augusto Meyer (Porto Alegre, 1902 – Rio de Janeiro, 1970) e Clodomir Vianna Moog (São Leopoldo, 1906 – Rio de Janeiro, 1988), ambos de origem urbana, não apenas provêm desse mundo como de algum modo o expressam, alcançando nome nacional. O terceiro nome é uma figura ímpar em vários sentidos: Raul Bopp (Tupanciretã, RS, 1898 – Rio de Janeiro, 1984), neto de um dos primeiros imigrantes germânicos, cresceu no ambiente rural, no mundo do cavalo e das longas distâncias, como filho de um comerciante bem situado, que veio a viajar pelo mundo todo, sem exagero [1]. 

Um quarto caso da mesma geração nasce de uma singular situação: estamos falando de Vivaldo Coaracy (Rio de Janeiro, 1882-1967), que viveu alguns anos em Porto Alegre, entre 1905 e o começo da década de 1920, e publicou um romance de grande interesse documental para a história da cidade, Frida Meyer, lançado em 1924 mas de escassa circulação, porque assim que foi impresso sua editora faliu, restando os exemplares como parte da massa falida. Com um enredo datado de antes da I Guerra, o romance tem no centro a figura do título, uma jovem mulher que dirige uma pensão. Sua família de origem, assim como frequentadores da pensão e alguns lugares identificados como germânicos em Porto Alegre – bares, restaurantes etc. –, desfilam em suas páginas. 

Raul Bopp, o mais velho do conjunto, é um caso raro. Já aos 15 anos de idade sai a aventurar-se pelo mundo, viajando a cavalo de sua terra natal para a Argentina e o Paraguai, indo depois para São Paulo e o Rio de Janeiro. Uns três anos depois retorna a sua cidade natal mas logo parte para Santa Maria, depois para Porto Alegre, onde cursará os dois primeiros anos de Direito e conviverá com os jovens poetas que, como ele, estavam em busca de algo novo. O terceiro ano do curso cumpre no Recife; o quarto em Belém do Pará; e o quinto no Rio de Janeiro, onde se forma e se instala. Talvez não haja caso similar de conhecimento amplo do Brasil mediante vivência pessoal como este. Na capital federal, acerca-se de poetas, enquanto vive do jornalismo, sempre buscando aventuras, até que volta para São Paulo, onde viverá o miolo do movimento antropofágico.

E não para por aí. Em 1929, vende o que tem e parte para dois anos de viagem pelo globo, de um cargueiro para o Japão a nove dias em lombo de mula na Bolívia, mais 11 dias no trem transiberiano e uma boa estada em Paris. Volta ao Brasil e, em 1932, é nomeado por Getúlio para um cargo diplomático e abraça essa carreira, desempenhando postos em toda parte, até sua aposentadoria. Poeta e memorialista, tem obra relevante e ainda agora obscura para a leitura corrente, como, aliás, ocorre com os outros dois aqui enfocados, por motivos diferentes. Para Meyer, “foi Raul Bopp o verdadeiro animador do movimento modernista no Sul”. Para Sérgio Buarque de Holanda, Bopp “deu-nos com Cobra Norato uma das duas obras de timbre por assim dizer épico em nossa moderna literatura”; “a outra, naturalmente, é Macunaíma” [2]. 

Meyer não demora a se destacar. Nascido em Porto Alegre, de família culta, teve uma experiência marcante na infância quando, acompanhando sua família, viveu algum tempo num grotão da campanha. Ali conheceu a vida que a literatura identifica como o mundo do gaúcho: o pampa, o cavalo, as lidas de campo. Mas voltou à capital e teve trajetória intelectual sofisticada: estudou pintura, concluiu o ensino médio e chegou a ingressar na faculdade de Direito, que abandonou. 

Assim que estreou em poesia, nos anos 1920 iniciais, foi visto como um moderno que valia a pena. Ao mesmo tempo, praticava a crítica literária em jornais da cidade. Sua qualidade foi notada pelo melhor crítico da turma modernista, João Pinto da Silva, que sobre ele faz uma observação que vale a pena ler, em texto de 1926, quando Meyer tinha publicado seus dois primeiros livros de poesia, A ilusão querida, em 1923, e Coração verde, em 1926: num artigo que procura dar balanço da então nova geração, João Pinto, um desconfiado com a gritaria modernista, celebra Meyer – “O sr. Augusto Meyer, que conta pouco mais de vinte anos, é, talvez, o espírito mais culto, literariamente, do Rio Grande. É um estudioso de curiosidade ágil e prismática; um cronista de aptidões onímodas; um ensaísta, um crítico, que alia à sutileza, à elegância no dizer, amplo horizonte mental”. Tudo isso, conclui, sem ser livresco. Na poesia, se caracteriza por “certo primitivismo, certa candidez elementar de emoção e de imagens”. 

Após analisar alguns poemas, faz uma observação que interessa ao nosso tema: “Esse homem ruivo, que trai sua germânica ascendência mais ainda na fisionomia do que no sobrenome, nascido e criado na cidade, entre as estantes de sua biblioteca, interpreta com exemplar fidelidade a angústia, as paisagens, a alegria, a aleluia primaveril dos campos e das coxilhas”. Nascido em Jaguarão, miolo do pampa, João Pinto mostra surpresa com a capacidade de um urbano e, pior ainda, germânico, saber expressar aquela realidade. 

Meyer se projeta nacionalmente, depois de ser lido pela vanguarda como poeta, com o livro Machado de Assis, de 1935. Em Porto Alegre, dirige a Biblioteca Pública, o cargo de mais elevado prestígio letrado nas circunstâncias, e dali sai para fundar e dirigir, na capital federal, o Instituto Nacional do Livro. Permanece no Rio, a maior parte do tempo no mesmo posto, mas também lecionando na Universidade do Brasil e viajando para comissões oficiais. De lá mantém laços importantes com o Rio Grande do Sul, inclusive no sentido das iniciativas intelectuais e editoriais. Nos anos finais de sua vida, publica dois excelentes volumes de memória, que se somam à obra crítica, a qual cresceu com o tempo, ao contrário da poética, que estiolou. Vem a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1960. 

Bem antes dele foi eleito para a Academia Vianna Moog, em 1945. Ensaísta de grande criatividade, teve também, à semelhança de Bopp, uma experiência profunda do Brasil amazônico por um lance do acaso político. Nascido em São Leopoldo, o ponto inicial da instalação de germânicos no Estado, de pai Moog, com origem alemã, funcionário federal e protestante, e mãe Vianna, lusobrasileira, professora e católica, o futuro escritor já por isso teve experiência rara em sua geração, convivendo em casa com duas culturas bastante distintas. Cursou Direito em Porto Alegre e também se tornou funcionário federal, não sem antes ter tentado seguir carreira militar. Em 1930, como muitos de sua geração, empolgou-se com a campanha getulista e subiu com as tropas vencedoras.

Mas Moog mudou de posição em 1932, fazendo coro aos liberais que queriam eleições diretas e uma constituinte. O governo federal o puniu transferindo-o para Manaus, de lá para o Piauí, para o interior do Amazonas, para o interior de Minas Gerais e para o interior de seu Estado natal. Em 1934, volta a Porto Alegre, onde fundará um jornal moderno e seguirá sua vida intelectual. No mesmo ano, publica um ensaio de grande horizonte, Heróis da decadência, comparando Machado de Assis a Petrônio e a Cervantes. Como Meyer, é outro caso de ensaísta que eleva o patamar do debate sobre o grande escritor brasileiro. 

Seu momento mais notável ocorre em 1939, quando publica um romance de tese, Um rio imita o Reno, no qual coloca em debate um tema espinhoso, o racismo germânico contra os caboclos brasileiros. E era um descendente de alemães que fazia isso. O livro tem impacto nacional, com edições sucessivas, radiofonização, críticas em toda parte, até chegar a um ponto inimaginável – a embaixada alemã no Brasil pede a interdição do livro. Moog vira um herói dos aliadófilos, que pressionavam Getúlio a assumir o lado dos EUA, da França e da Inglaterra, contra a Alemanha, na II Guerra. Em função do sucesso do livro, o nome de Moog cresce muito. 

Mudando-se para o Rio, lá profere, em 1942, uma conferência que com o tempo se tornaria famosa, sob o nome fraco “Uma interpretação da literatura brasileira”, mas que se tornaria bastante famosa pelo subtítulo, “Um arquipélago cultural”. Nela, defende a tese de que a literatura brasileira não tem unidade, porque ainda se constitui de sete ilhas, demarcadas regionalmente. O texto é traduzido para outras línguas; o autor é eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1945. Ainda publicaria outros livros, muito especialmente um, em 1954, chamado Bandeirantes e pioneiros, uma comparação de fôlego entre a colonização do Brasil e a dos EUA, fruto, também, de sua vasta experiência internacional, em postos de representação que ocupou para o Tesouro Brasileiro, depois para a ONU e a OEA, nos EUA, no México, na Suíça.

Com esses três (ou quatro) casos, pode-se concluir que o mundo teutodescendente estava falando alto e bom som, na literatura brasileira, inclusive para pensar sobre si mesmo. 

Notas
1 – Um interessante estudo sobre o tema foi feito por Valburga Huber: A ponte edênica: da literatura dos imigrantes de língua alemã a Raul Bopp e Augusto Meyer (São Paulo: Annablume/FAPESP, 2009). O livro parte das imagens de Brasil concebidas e divulgadas em língua alemã no mundo germânico europeu, para depois analisar as imagens do Brasil concebidas pelos dois poetas teutodescendentes.
2 – Para este e mais dados, ver a edição das Poesias completas de Raul Bopp, organizada por Augusto Massi.


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese.

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