Ensaio

Literatura de teutodescendentes – 1

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Literatura de teutodescendentes – 1 Uma das muitas traduções feitas por Carlos Jansen

Imigrantes de língua alemã começaram a chegar ao território do Rio Grande do Sul em 1824 e por mais de um século não pararam de vir, em ondas mais e menos fortes. Isso durou até a Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945. Até então, em Porto Alegre e numa extensa gama de cidades do interior onde havia forte presença de germânicos – São Leopoldo, Lajeado, Santa Cruz, São Lourenço do Sul, Cachoeira do Sul, Santa Rosa, Ijuí, para citar apenas algumas cidades de referência regional –, era bem possível viver em alemão: em incontáveis casas de comércio de todo tipo e finalidade, assim como em hotéis, bares, restaurantes, livrarias, igrejas e, até 1942, escolas, a língua alemã (ou alguma língua dela muito próxima, como o Hunsrik) era falada, compreendida e lida francamente. 

Mas não é de literatura em língua alemã que vamos tratar aqui, principalmente, e sim de gente germânica escrevendo em português. De todo modo, saber da imensa presença cotidiana de descendentes de imigrantes dessa origem ajuda a dimensionar nosso objeto. Terão sido talvez centenas de milhares de indivíduos que, ao largo desses quase dois séculos, de algum modo se conectam com essa experiência.

Será necessário ainda outro elemento essencial para caracterizar nosso assunto. Ocorre que justamente os vários povos de língua alemã – lembremos que, antes do processo de unificação que criou a moderna Alemanha em 1871, havia uma série de territórios, com diversas configurações políticas (ducados, condados, principados, reinos, províncias, cidades livres, etc.), pertencentes ao que hoje se distribui em alguns países (Alemanha, Áustria, Suíça, Luxemburgo, Lichtenstein, Polônia, Bélgica, República Tcheca, Itália, Croácia, Dinamarca) – justamente esses povos foram atingidos fortemente por um fenômeno letrado de escala mundial: uma tradução da Bíblia ao alemão, por Lutero, no século 16, texto que passou a ser mais lido por esse singelo motivo mas também por outro, justamente a tese luterana de que todos os cristãos deveriam saber ler para conhecer a palavra de Deus. Todos envolvia também as mulheres, o que implica uma revolução cultural.

Não se quer com isso fantasiar que no âmbito germânico as coisas sejam absolutamente letradas, racionais e humanistas – basta lembrar do horror do Nazismo, com ampla penetração entre germânicos, para atestar o oposto. O que interessa marcar aqui é uma condição objetiva, entre os imigrantes de língua alemã, muito mais favorável ao cultivo do texto, da palavra, até mesmo da literatura propriamente dita, do que aquela encontrada em outros imigrantes, por exemplo os lusitanos. Por aqui se pode começar a conceber o sentido de haver uma ampla produção de literatura, no Rio Grande do Sul, por parte de gente dessa origem, ao longo de várias gerações. 

Uma grande parte desses imigrantes e seus descendentes veio para trabalhar no mundo rural, nele permanecendo por gerações; entretanto outra parte, não desprezível em termos numéricos, migrou para as cidades, sendo composta de elementos já urbanos em seu ambiente de origem. Se entre os que foram para as colônias se pode imaginar um cultivo muito limitado das letras, não muito além da leitura religiosa, entre os que vieram para cidades havia desde gente com habilidades letradas mínimas até gente muito letrada. Para citar um caso relativamente recente e exponencial, um homem como Herbert Caro, um berlinense de origem judaica, doutor em Direito por Heidelberg, fugiu do nazismo e veio morar em Porto Alegre, onde foi tradutor de rara importância, ao alemão ao português, nos tempos áureos da editora Globo, desde o final dos anos 1930.

Mas mesmo nas cidades pequenas, com pouca distinção entre o mundo urbano e o rural – lembremos que entre os colonos, não só os germânicos, não foi raro o caso de transição entre o campo e a cidade, mediante prosperidade dos negócios – vale lembrar que houve uma forte presença de imprensa, o que incluiu a circulação e mesmo a produção local de narrativas seriadas em alemão sobre o mundo germânico. Dessa origem, associada com a imprensa, vamos encontrar um importante número de editoras, com atuação notável ao longo dos tempos. Em nossos dias, temos o exemplo da editora Oikos, de São Leopoldo, que tem em seu catálogo muitas obras dedicadas ao estudo da história desse mundo germânico no estado, sem prejuízo de manter interesses para muito além disso.

Para completar a moldura do tema aqui abordado, acrescentemos ainda o fato de que a prática religiosa, tanto entre protestantes quanto entre católicos, era regra para esses imigrantes e seus descendentes. Por isso, houve uma intensa contribuição letrada, direta e indireta, das escolas religiosas desse universo. Dos seminários católicos e luteranos, assim como das escolas de ensino fundamental e médio, saíram muitos indivíduos que teriam forte presença e grande contribuição para a divulgação e a produção de literatura, assim como de várias outras disciplinas letradas, do Direito às ciências sociais, passando pela Filosofia e pela Teologia. Para nomear apenas dois exemplos recentes, lembremos o caso de dois críticos literários e professores de literatura com grande importância entre os anos 1960 e agora, Donaldo Schuler e José Hildebrando Dacanal, ambos egressos desse universo. 

1. Nas primeiras décadas da presença germânica no Rio Grande do Sul não se registram feitos de relevo no campo letrado. Apenas a partir da quinta década do século 19 se pode documentar alguma movimentação, e mesmo assim apenas entre imigrantes muito especiais, conhecidos como Brummers, nome genérico que se deu a centenas de soldados dessa origem contratados pelo Império brasileiro para a guerra contra o argentino Rosas, em 1851. O destino dessa gente é variado: muitos desertaram, muitos morreram de frio, desnutrição ou doenças. Consta que menos de um terço dos contratados concluíram a guerra engajados no exército, e grande parte deles passou a viver no sul do Brasil. 

Ocorre que nesse contingente havia letrados, alguns dos quais gente com grande preparo intelectual, como é o caso exemplar de Karl von Koseritz (1830-90), que a partir de 1858 trabalha em jornais. Outro nome de relevo, maior ainda para o caso das letras, foi Carl Jansen (1829-1989), também jornalista, um dos fundadores da Sociedade Partenon Literário, em Porto Alegre, no ano de 1868, e posteriormente professor no Rio de Janeiro e importante tradutor de obras europeias para o português, entre as quais se notabilizam textos de Swift, Defoe, Cervantes, assim como contos da tradição das Mil e uma noites e As aventuras pasmosas do Barão de Münchhausen

Ao longo de todo o século 19, até o período da Primeira Guerra Mundial (1914-18), pode-se dizer que o panorama não se alterou muito: salvo exceções como essas, ao lado de outros brummers, não aparecem escritores de relevo de entre os imigrantes ou seus descendentes. Uma publicação de 1924 ajuda a dimensionar o caso: trata-se do livro Cem anos de germanidade no Rio Grande do Sul – 1824-1924, sem autor declarado mas provavelmente obra organizada pelo padre jesuíta Theodor Amstad (1851-1938), nascido na Suíça mas vivendo no Brasil desde 1885.

Nele se lê que em 1924 havia no estado não menos que 9 editoras, 30 impressoras, 31 livrarias e 22 encadernadoras, todas dirigidas por alemães. Um tipo de publicação de larguíssima penetração, os calendários – em formato de livro e edição anual, traziam datas e calendários da lua, mas também orientações práticas sobre plantios, assim como textos religiosos, contos, poemas e pequenas biografias –, alcançavam até famílias muito isoladas em colônias remotas. Na contabilidade do livro, em 1924 havia seis calendários em alemão atuantes, o de Koseritz desde 1874, o mais antigo, até outros criados em 1922.

No que se refere ao cultivo das então chamadas “belas letras”, a publicação relata ter feito uma consulta aberta, ao pedir que a rede de germânicos e teutodescendentes noticiasse a existência de poetas. Diz o texto que muitos foram indicados, mas poucos apresentavam qualidade suficiente. entre estes figuram padres, pastores luteranos e diversos outros, entre os quais professores, engenheiros, etc., e três mulheres, Erika Harbst, Elisa Protzen e Josefine Wiersch. Todos os poemas estão escritos em alemão, tendo um deles sido traduzido do português a essa língua, para figurar no livro.

A Primeira Guerra mudou bastante a situação dos germânicos no Brasil. Como se sabe, a Alemanha teve uma posição destacada, contra os países ocidentais de muito maior presença e prestígio, em qualquer sentido, para o Brasil, como França e Inglaterra. A Sociedade Germânia, fundada em Porto Alegre, em 1855, teve sua sede atacada, como reação aos ataques alemães a navios brasileiros, em 1917. O mesmo ocorreu com a sociedade Turnerbund, atual SOGIPA, e o jornal Deutsche Zeitung, no centro de Porto Alegre. 

Para marcar um contraste, veja-se que o primeiro romance escrito por um gaúcho, A divina pastora, de Caldre e Fião (1847), tem no centro do enredo o amor impossível de Almênio por Edélia — ele conhece outra moça, Clarinda, filha do velho Hendrichs, e vem a casar com ela. Uma germânica estava simbolicamente integrada ao mundo brasileiro, já naqueles tempos, em que a população dessa etnia deveria compor não menos de 10% do total dos porto-alegrenses, havendo nessa altura talvez mais de vinte representações consulares de lígua alemã na capital do Rio Grande do Sul. 

É certo que os germânicos, desde o começo, eram vistos como figuras respeitáveis no que se ligasse à cultura letrada, à escola, aos livros. Um exemplo possível é registrado em Pelotas, cidade que também contou com imigrantes germânicos, no livro Terra gaúcha – História de infância, um projeto mal-sucedido de Simões Lopes Neto. Escrito entre 1904 e 1908, o livro foi concebido para uso em escolas, para leitura e aprendizado, e que não chegou a ser publicado na época. Um menino, com seus dez ou doze anos de idade, conta o cotidiano que vive, na estância de seu pai e depois na escola. Aqui, há um personagem, o professor, o mestre Schultz, figura prussiana que dá aulas de ginástica e não perde ocasião de cobrar patriotismo de seus alunos brasileiros. 


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese.

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