Ensaio

Fukushima e Porto Alegre: paralelismos e perpendicularidades

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Fukushima e Porto Alegre: paralelismos e perpendicularidades Foto: Pedro Piegas/PMPA

Os leitores nascidos durante o século passado devem lembrar a famosa canção do grupo britânico Bee Gees, “How could you mend a broken heart?” (Como podes reparar um coração rompido?) Nem sempre é fácil aliviar as penas de um coração. Pode ser mais fácil consertar um sistema físico, mas, tanto na vida sentimental como na engenharia, na economia ou nas ciências da natureza, importa não somente como restaurar um sistema quebrado, mas como evitar que um ele quebre. E para isso quem desenha o aparelho deve considerar todos os caminhos possíveis que podem levar o sistema, ou o coração, a falhar, ou a parar. 

Será possível prever todas as alternativas que levam ao colapso de um sistema? O matemático Ian Malcolm, interpretado por Jeff Goldblum no primeiro filme Jurassic Park (1993), dizia que não. O livro de Michael Crichton (1942-2008) em que o filme se baseia, explica que os criadores do parque dos dinossauros, que obtiveram DNA de dinossauro a partir de resíduos de sangue encontrados dentro de um mosquito pré-histórico preso em um bloco de âmbar, alteraram parte desse DNA para que, ao ressuscitar os dinossauros, eles não pudessem se reproduzir. No entanto, os cientistas descobrem inclusive antes da inauguração do parque que alguns dos animais conseguiram gerar descendentes. “A vida sempre encontra seu caminho”, diz Malcolm-Goldblum. Quando escreveu o livro, Crichton inspirou-se nas teorias matemáticas dos fenómenos caóticos. Em 1970, o matemático francês René Thom publicou um livro com um título atraente: ” Teoria das Catástrofes”, que foi amplamente lido na época. Este livro foi uma semente da teoria dos fenômenos caóticos, caracterizada pela imprevisibilidade, uma vez que uma mudança muito pequena nas condições iniciais de um sistema pode levar a comportamentos extremamente diferentes. Um exemplo de comportamento caótico são as falhas em cadeia de sistemas que teoricamente deveriam impedir que eventos destrutivos ou catástrofes aconteçam. Os carros do século XX (e talvez os de hoje também, porém no passado a gente entendia melhor como um carro funcionava) tinham uma válvula que bloqueava a circulação da água que resfria o motor até que ele atingisse uma temperatura considerada adequada. Nesse ponto, a válvula se abria e permitia que a água circulasse pelo bloco do motor para resfriá-lo e depois pelo radiador do carro para esfriar a água. Por experiência própria, posso dizer que um fragmento insignificante de sujeira que contaminasse a água podia bloquear essa válvula e levar o motor a um aquecimento indesejado e, obviamente, se não prestássemos atenção aos medidores de temperatura (que nem todos os carros tinham na época) e as luzes de alarme, podíamos “fundir” o motor. Esse é o problema com motores e outras obras de engenharia: saber se podemos evitar todas as falhas possíveis. 

Exemplos impactantes de cadeias de eventos que geraram grandes catástrofes são os acidentes acontecidos em centrais nucleares. Os três maiores acidentes nucleares da história foram: Three Mile Island (1979), Chernobyl (1986) e Fukushima (2011). Em todos eles ocorreu um quadro muito similar ao de bloquear a válvula do circuito de refrigeração do motor do carro.

Em particular, o acidente da central nuclear de Fukushima, no Japão, ocorrido em 11 de março de 2011, e a inundação da cidade de Porto Alegre de maio de 2024, têm muitos pontos em comum e algumas diferenças importantes. Em comum, o fato principal foi que ambos os acidentes se originaram em desastres naturais: um terremoto no Japão e chuvas torrenciais e rios transbordados em Porto Alegre. A diferença principal é que em Porto Alegre não houve vazamento de materiais radioativos, mas sim vazamento de outros materiais, especialmente lixo e fezes. Vamos começar falando do acidente mais antigo.

Acidente de Fukushima I

A central nuclear Fukushima Dai-ichi ou Fukushima I é uma planta nuclear com um conjunto de seis reatores de água em ebulição, situada na vila de Ōkuma, no distrito de Futaba, na prefeitura de Fukushima, no Japão. Foi projetada pela empresa estado-unidense General Electric e foi a primeira central construída e gerida pela empresa Tokyo Electric Power Company (Tepco). Foi inaugurada em 1971. Com uma potência total de 4,7 GW, era uma das vinte e cinco maiores centrais nucleares do mundo. A central foi construída com uma ancoragem ao solo firme, escavando 25 metros abaixo do nível do chão, o que forneceu a estabilidade esperada para os edifícios dos reatores, embora tenha sido negligenciado um detalhe de extrema importância: a central estava localizada em uma zona costeira exposta às inclemências sismológicas. Apesar de se saber que na área poderiam ocorrer tsunamis com ondas de mais de 30 metros, a central contava com um muro de contenção de apenas 6 metros e numerosos sistemas essenciais estavam em zonas inundáveis, por exemplo os geradores de emergência que funcionavam com óleo diesel e estavam localizados nos porões.

O acidente foi provocado por um violento terremoto (grau 9,1 na escala Richter) seguido por um tsunami que afetou a costa leste do Japão em 11 de março de 2011. Ao detectar o terremoto, os reatores ativos (de 1 a 3) desligaram automaticamente. O reator 4 estava parado e os 5 e 6 estavam sobre um terreno elevado mais afastados da zona de desastre. Devido à parada dos reatores e a outros problemas da rede, o fornecimento de eletricidade parou e os geradores diesel das bombas de emergência dos reatores começaram a funcionar automaticamente. Essas bombas faziam circular o líquido refrigerante – água – através dos núcleos dos reatores para eliminar o calor residual, que continuava a fluir mesmo após a interrupção da fissão nuclear. Mas o terremoto gerou um tsunami com uma onda de 14 metros de altura que chegou 46 minutos mais tarde, superando o dique de contenção da planta de apenas 6 metros de altura e inundando com água de mar os terrenos inferiores da central. Ao redor dos edifícios das unidades 1 a 4, a água do mar encheu os porões e destruiu os geradores de emergência. A falta de circulação d’água levou à fusão os núcleos dos reatores 1, 2 e 3. O calor extremo liberou hidrogênio que explodiu. Houve três explosões de hidrogênio (acidente semelhante ao de Three Mile Island) e liberação de contaminação radioativa nas Unidades 1, 2 e 3 entre os dias 12 e 15 de março. Uma diferença importante com o acidente de Three Mile Island foi que em Fukushima as explosões danificaram as estruturas de contenção, especialmente a do reator 2, e houve liberação de radiação na atmosfera e de água contaminada para o mar. Para piorar as coisas, o reator 3 usava um combustível chamado MOX, mistura de óxido de urânio e óxido de plutônio. Este combustível era preparado pela empresa francesa AREVA e estava sendo testado em duas centrais japonesas. O plutônio, como se sabe, além de causar danos radiológicos, é um potente veneno químico.

Nos dias seguintes ao acidente, a radiação emitida na atmosfera obrigou o governo a declarar uma zona de evacuação cada vez maior ao redor da planta, zona que chegou a ter um raio de 20 quilômetros. No total, cerca de 154.000 residentes foram evacuados das comunidades ao redor da planta, número três vezes maior que no acidente de Chernobyl. 

Grandes quantidades de água contaminada com isótopos radioativos foram liberadas no Oceano Pacífico durante e após o desastre, até os dias de hoje. O acidente de Fukushima, apesar de não ter causado tantas mortes em um curto prazo como Chernobyl, foi tão grave quanto este último, e a central destruída continua emitindo material radioativo e não está totalmente controlada. Recomendo ver a série da Netflix “Os Dias”, que trata da primeira semana do acidente, assim como a serie Chernobil (Max). Curiosamente nenhum filme ou seriado foi feito sobre Three Mile Island 

Inundação de Porto Alegre

Se você mora em Buenos Aires e quer viajar para Porto Alegre pela Aerolíneas Argentinas (nos bons tempos em que Porto Alegre tinha um aeroporto operando), ao procurar na internet não vai encontrar esse destino, porque um tradutor compulsivo o rebatizou, no sistema de busca, como Puerto Alegre. Curiosamente, é a única cidade brasileira cujo nome foi traduzido na plataforma da Aerolíneas. Não encontramos Rio de Enero, nem Bello Horizonte, nem Navidad.

Enfim, alguma razão tem o tradutor: é verdade que Porto Alegre é um “puerto” e, assim como Buenos Aires, é um porto de rio. O rio que banha a cidade se chama Guaíba, e há uma grande discussão entre especialistas em hidrologia sobre se é um rio ou um lago, o que significa que seu fluxo é muito lento. Embora não seja um rio, não podemos aplicar ao Guaiba os belos versos que o folclorista argentino Jorge Cafrune dedicou ao rio Uruguai: “o Uruguai não é um rio, é um céu azul que desce”, o Guaíba pode não ser um rio, mas não tem nada de céu, e é tão marrom e barrento quanto o Rio de la Prata. O porto de Porto Alegre, propriamente dito, está na zona norte da cidade. E uma coisa que o visitante percebe é que um muro de três metros de altura separa o porto de uma avenida que poderíamos chamar de costaneira, se não fosse porque dela não se vê a costa. Do outro lado desta avenida está o centro da cidade, especialmente o centro histórico: prédios da administração pública, mercado, museus, bancos e o centro comercial. Na realidade, parte da cidade e o próprio porto foram construídos sobre terras ganhas ao rio, e ficaram a pouca altura acima dele. No centro da cidade corre uma rua chamada antigamente Rua da Praia, que estava à beira do rio. Hoje está a mais de duzentos metros da entrada do porto, e mudou de nome

Por que o porto está separado por um muro?

A explicação é que em 1941 houve uma enorme inundação em Porto Alegre, vários dias com a cidade submersa, quase um mês sem luz ou água corrente, a inundação foi tão grave que traumatizou a cidade. Por esse motivo, decidiu-se construir um sistema de diques, avenidas costeiras elevadas e no porto um muro (para proteger o centro da cidade) que superasse o nível máximo que a água atingiu em 1941, 4,5 m. Como toda obra pública, não se pense que esse muro foi construído nos anos 40, não, foi inaugurado apenas em 1970, quase trinta anos depois da inundação de 1941. Mas por que, se a água atingiu 4,5 m, o muro tem apenas 3 m de altura? No cais do porto havia uma régua graduada com divisões em vermelho e branco, medindo o nível do rio (ou lago). Ninguém sabe onde ficava o zero dessa régua, entre outros motivos porque foi arrastada pela corrente, nem se os 4,5 m eram medidos com referência ao nível do mar. O certo é que quando a água chegava, nessa régua, a pouco mais de três metros, inundava o cais. Três metros e alguns centímetros era a cota de inundação. O muro tem uma altura de 3 m acima do nível do cais, ou seja, poderia prevenir uma inundação de até 6 metros.

Um detalhe significativo é que, como o porto está entre o muro e o rio, tinham que existir formas de entrar no porto (quando ele não está inundado). O muro tem 14 comportas, sobre trilhos e com motores elétricos. Detalhe à margem: como entre 1941 e 2024 não houve inundações importantes, o muro foi frequentemente considerado inútil e feio e foram apresentados diversos projetos para derrubá-lo. Mas, graças à inércia burocrática das diferentes administrações públicas, o muro chegou inteiro até 2024. Inteiro, mas não em boas condições. O rio (ou lago) Guaíba subiu até 5,30 m na inundação de maio passado, mais de dois metros acima do nível dos cais e a apenas setenta centímetros da altura máxima do muro. O muro resistiu bem. Mas não as comportas. Muitos dos motores não funcionavam, foi necessário fechá-las manualmente. E não eram herméticas, (nunca tinham sido testadas). Para tapar os vazamentos, colocaram-se sacos de areia… muitas vezes do lado de fora, onde foram facilmente deslocados pela força da água. Além disso, uma das comportas foi totalmente arrancada pela pressão da água.

Outro problema: os bairros mais próximos do rio têm um sistema de drenagem pluvial com circulação forçada, tem bombas que empurram a água para o rio. Essas bombas são elétricas. Lembram-se de  Fukushima? Sim, aconteceu o mesmo, as bombas ficaram debaixo d’água e a companhia de eletricidade cortou a corrente, por segurança. Com as bombas paradas e como o sistema não conta com nenhuma válvula como as que temos no coração e que impedem que o sangue retroceda, o sistema de esgoto permitiu que a água do rio penetrasse na cidade por baixo do muro. A cidade inundou-se pelo sistema de drenagem, o rio entrou por onde a água devia sair.

Algo semelhante aconteceu com o abastecimento de água. Mentes previdentes colocaram as bombas que trazem água do rio para as estações de tratamento em subsolos, alguns até seis metros abaixo do nível do rio. Não pensaram, como em Fukushima, que o rio podia subir acima de 4 m. Claro que as bombas ficaram também debaixo d’água, e foi necessário cortar a eletricidade. Não apenas inundaram, estragaram, assim como os painéis elétricos que as controlavam. Demorou-se vários dias para tirar a água desses porões, mais alguns dias para substituir as bombas e os painéis e alguns dias mais para começar a tratar a água, muito mais contaminada do que em condições normais. Entre outras razões porque a inundação cobriu também as piscinas das estações de tratamento de esgotos cloacais. Não foi o sangue que chegou ao rio. Foi a m…

Dessa forma e por vários dias, os bairros não inundados tinham luz, mas não água, e caminhões-pipa vendiam água de origem desconhecida a preço de champanhe francês. Já os bairros inundados não tinham nem água nem luz, e as pessoas que deviam abandonar suas casas o faziam com relutância, por medo dos saques, sim, porque o que não foi destruído pela água: móveis, geladeiras, máquinas de lavar etc., foi muitas vezes levado por delinquentes profissionais ou oportunistas. Isso mesmo, muita gente ajudou, houve muitos voluntários nos resgates e muitas doações significativas. Mas muita gente roubou, concessionárias ou supermercados inundados foram saqueados. Roubaram até tratores e colheitadeiras. Pior ainda: o governo concedeu auxílios e empréstimos a juro baixo a famílias e empresas, e quando começaram a analisar os pedidos, mais de metade eram de pessoas que não haviam sido afetadas pela inundação, nem moravam perto das regiões devastadas. No Brasil, esse comportamento é chamado de esperteza, a capacidade de tentar se aproveitar de qualquer oportunidade para lucrar e roubar sem esforço. Não há diferença entre o vilipendiado saqueador e o empresário que quer aproveitar-se de uma ajuda destinada a outros.  Será que também existiu “esperteza” em Three Mile Island, Chernobyl e Fukushima? É provável. Chico Buarque diz que não existe pecado do lado de baixo do Equador. Não é verdade, existe sim, e do lado de cima também.

Corolário: A terrível inundação aconteceu há quase três meses. Arrumaram as bombas do sistema de drenagem pluvial? Colocaram os sistemas elétricos a uma altura razoável? Não sabemos. As únicas notícias que vi é que decidiram tapar 7 das 14 comportas do muro, para evitar infiltrações. E reduzir os gastos de manutenção, se é que foi feita manutenção nas 7 restantes. E o diretor do Departamento Municipal de Água e Esgotos propôs criar um novo imposto para financiar a modernização do sistema. Mentes brilhantes.

Enquanto esperamos a próxima inundação, estudar a teoria do caos seria um bom exercício.


José Roberto Iglesias é professor emérito do Instituto de Física da UFRGS. http://iglesiassicardi.blogspot.com / www.if.ufrgs.br/~iglesias 

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