Ensaio

Duas histórias

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Duas histórias Jorge Gerhardt (à direita) e Frederico Burmeister, seu compadre. Data deconhecida. Foto: Arquivo pessoal

Qual é a criança que não gosta de crescer ouvindo histórias de aventuras sobre os seus antepassados? Fatos heroicos, lutas, revoluções, guerras, fugas espetaculares e travessia de mares bravios em navios à vela, em meio a motins? Tudo isto meu pai contava sobre o avô dele.

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E eu ouvia fascinada, fantasiando sobre as minhas futuras aventuras.

Ele relatava que Georg era prussiano e havia pertencido à guarda pessoal de Frederico Guilherme IV, da Prússia. Homem culto e inteligente, teria se envolvido numa conspiração e ido parar nas prisões de Salzburg, a cidade dos telhados verdes. Depois de um tempo preso, sua pena teria sido comutada em degredo, tendo vindo para o Brasil deportado, e aqui chegado como mercenário. Ele teria sido um dos 1800 homens contratados pelo governo brasileiro para lutar contra Oribe e Rosas, aportando no Rio de Janeiro em 1856. Ao chegar, a guerra já tinha terminado, e este grupo ficou conhecido como os Brummers – os resmungões –, que reclamavam contra o parco soldo pago pela coroa brasileira. Ainda segundo ele, este grupo seria mais letrado do que os colonos alemães, que vieram para o Rio Grande do Sul a partir de 1824.

A história do meu bisavô continuava, incorporando alguns fatos que pareciam verídicos. Ele teria lutado na guerra de Schleswig (1848-1851), na qual a maioria alemã dos ducados de Schleswig-Holstein, na época pertencentes à Dinamarca, se rebelaram numa tentativa de associá-los à Confederação Germânica. Com auxílio do Reino da Prússia – em favor da revolta –, as tropas dinamarquesas foram expulsas, e um grande contingente de soldados foi desmobilizado, incluindo o seu avô. 

Ele teria vindo para o Brasil numa viagem cheia de perigos, motins, brigas e mortes. 

Como o meu bisavô, soldado prussiano treinado, teria se tornado guarda pessoal do imperador Frederico Guilherme IV, se metido numa conspiração preso e posteriormente deportado? Isto era um mistério sem solução.

Georg teria depois se estabelecido em Montenegro e se tornado tropeiro, ganhando o sustento no transporte de gado até São Paulo. Casou com Maria, que meu pai costumava dizer que era indígena e paraguaia, conhecida por meu bisavô em suas andanças. Nunca acreditei muito nesta história, pois os traços dela teriam sido forçosamente transmitidos aos descendentes e nenhum dos parentes que conheço, ou conheci, têm traços indígenas.

Enfim, o meu bisavô teve uma vida de aventuras.

Ainda segundo o meu pai, Georg e Maria teriam tido três filhos: meu avô Jorge Gerhardt Filho, Maurício, (Moritz) e Pauline. 

Criança, adolescente e mesmo adulta tomei como verdade absoluta o que meu pai contava sobre a família, cuja história sempre achei fascinante.

Talvez o fato de nunca ter havido muita proximidade com a família do meu pai, ao contrário do clã da minha mãe, que era composto por um verdadeiro bando, morando todos no mesmo edifício, fez com que eu incorporasse esta história às minhas origens. Não havia com quem comentar nem pedir detalhes adicionais. Além do mais, esta história me agradava bastante.

Meu pai, Paulo Gerhardt, era uma pessoa que logo chamava atenção pela figura, estatura, cultura e comunicação fácil. Aparentemente não tinha nada do mutismo de muitos dos homens de origem alemã que se conhece por aqui. Só aparentemente. Havia uma nele uma mudez seletiva. Era quase mudo em relação à sua família, e completamente mudo no que se referia à sua vida particular. Por isto, o que eu sabia dos seus se restringia, além das aventuras do bisavô, aos parcos relatos e às raras visitas dos mais próximos.

Minha avó paterna, luso-brasileira, havia falecido antes do meu nascimento, e meu avô, já idoso, nunca nos visitou. A maioria dos parentes morava no interior. Vi o vô Jorge uma única vez, quando fui a Montenegro, após completar cinco anos. Creio que a distância física tenha contribuído para este distanciamento familiar, mas o fator preponderante deve ter sido a peculiaridade dos parentes serem uma grande tribo de meios irmãos, frutos de três casamentos do meu avô e de um sem-número de aventuras do velho patriarca, além dos filhos das esposas, que casaram com ele já viúvas. Meu pai relatou que às vezes chegavam a ser quase vinte os filhos e enteados à mesa de almoço.

Os irmãos e sobrinhos do meu pai se dispersaram. Moravam em Montenegro, Triunfo, Antônio Prado, Carazinho, Passo Fundo e Porto Alegre. Alguns sobrinhos e sobrinhos-netos (havia uma diferença superior a 20 anos entre ele e o irmão mais velho) nos visitavam esporadicamente, da mesma forma que duas irmãs da minha avó. 

Num tempo ainda sem telefone, as visitas apareciam de supetão e sempre causavam tumulto em minha casa. Ora eram as tias do meu pai, que vinham do interior para passar alguns dias, sem conseguir compreender que num apartamento de dois quartos com quatro ocupantes não havia espaço para camas sobressalentes. Ora era um bando de sobrinhas que chegavam à noite para conversar até a madrugada, ou um sobrinho-neto, estudante de Direito que falava sozinho por horas.

Visitávamos esporadicamente as irmãs do meu pai, duas moradoras em Porto Alegre e uma em Montenegro. A tia de Triunfo vinha umas duas vezes por ano. Eu não conheci a maioria dos primos Gerhardt, apenas algumas primas, assim mesmo brevemente. Meu pai contava que, exceto pelos irmãos e sobrinhos, a família dele era muito pequena, pelo fato de seu avô ter chegado solteiro e sozinho ao Brasil. Além do mais, ele tinha tido apenas dois tios paternos: Maurício e Paulina, esta sem filhos.

Ainda no colo do pai, fiquei sabendo das histórias do meu avô, Jorge Gerhardt Filho, a quem ele demonstrava uma admiração distante, e da minha avó, viúva e com uma filha quando casara com ele, já duas vezes viúvo. Em poucas frases resumia a origem da sua mãe em alguns detalhes, enquanto olhávamos para o retrato pintado a óleo do rosto da vó Luiza, encomendado por ele a um pintor catalão, Sicart, contratado como ilustrador pela Revista do Globo, onde meu pai trabalhava como jornalista. 

Dez anos atrás, depois do falecimento de uma amiga muito querida, passei a refletir sobre a brevidade da vida e sobre os afetos que deixei de cultivar, regar e fazer florescer. Decidi, então, me aproximar das primas paternas, que pouco conhecia, reunindo-as num café ou almoço, no local de escolha das mais velhas, todas octogenárias. Duas logo ficaram entusiasmadas com a possibilidade do reencontro, prontificando-se mesmo a viajar para o local escolhido. 

O almoço aconteceu, reunindo três primas. Ali apareceram os primeiros indícios de que a história da família Gerhardt que eu conhecia poderia ser fantasiosa. 

O assunto família paterna ficou dormente até que, durante a pandemia, uma sobrinha bisneta do meu pai, que nunca conheci, mas de cuja existência eu tinha notícia, fez contato pedindo informações sobre os Gerhardt. Em troca recebi uma pesquisa sem fonte conhecida, e com muitas informações sobre uma família Gerhardt que eu acreditava que não fosse a minha, pois a história era completamente diferente daquela que eu sabia até aquele momento. Todavia, alguns dados eram, no mínimo, intrigantes. Obtive então o contato de outra prima-irmã desconhecida, e, ao trocarmos informações, novamente emergiu uma família Gerhardt inédita para mim, mas que tive que aceitar como minha.

Me dei conta, então, que meu pai havia inventado uma fictícia família aventureira e culta que ele queria que fosse sua. Eu havia acreditado nela por setenta anos da minha vida, mesmo quando pesquisava, incessantemente e sem sucesso, por um Brummer de nome Georg Gerhardt do qual não havia traços nos registros. Pudera, ele nunca existira! 

Minha ascendência só ficou clara depois de muita pesquisa em registros de cartórios, livros de igrejas e no site Familysearch, este dos Mórmons de Utah, USA. Meu ponto de partida foram os dados fornecidos pelos meus recém-descobertos primos Lélia, Marcio e César. 

Assim, sem fantasias de folhetim, e com base em dados certificados, descobri que meus antepassados foram imigrantes alemães que chegaram ao Brasil em 27 de fevereiro de 1826 a bordo do transatlântico Der Kranich, desembarcando no porto do Rio de Janeiro. 

Neste navio estava meu tetravô, Philipp Gerhardt, ferreiro e serralheiro, nascido em 1765, no Grão-ducado de Hessen-Darmstadt, atual Alemanha. Na época de sua chegada, ele já era idoso, estava com 60 anos e era viúvo.  Sua mulher faleceu durante a viagem e seu corpo foi jogado ao mar. Ele veio acompanhado por dois filhos: Anna Maria Gerhardt, solteira, com 26 anos, e Georg Jacob Gerhardt, meu trisavô, também ferreiro e serralheiro, com 31 anos e casado com Julianne Köhler de 28 anos. O casal atravessou o oceano Atlântico com três crianças: Elisabeth Margaretha de 7 anos, Carl Philipp de 4 e Philipp Wilhelm de um ano e meio. Esta deve ter sido realmente uma aventura! Meses no mar com três crianças pequenas, em condições precárias de acomodações e higiene. 

O casal teve mais 8 filhos no Brasil, incluindo meu bisavô Georg Gerhardt, nascido em Passo do Cahy, em 24/10/1832. Minha bisavó foi Maria Margaretha Nadler, nascida em Três Forquilhas. 

Assim, o pretenso Brummer, prussiano, aventureiro e soldado, que havia transposto o oceano num navio, enfrentando motins, nunca existiu, bem como o tropeiro que viajava a São Paulo, transportando gado. Ele era, na realidade, filho e neto de colonos alemães, nascido em Passo do Caí. Por outro lado, a “índia paraguaia” era também filha de imigrantes alemães. 

A família era de pessoas comuns, se é que imigrantes que fugiram da fome na Europa podiam ser considerados comuns. Além disto, meus bisavôs tiveram 11 filhos e 73 netos. Desapareceu também a família pequena.

Em vez de dois, meu pai teve cinco tios e tias e muitos primos. Dentre os irmãos e meio irmãos, filhos das esposas do meu avô (que foram três) e puladas de cerca, contam-se onze documentados. Enfim, uma família numerosíssima.

Foi duro descobrir que meu pai não falava a verdade…

A pergunta que eu mais faço hoje é por que ele fantasiou tanto sobre nossas origens. Por que ele negava que era bisneto de imigrante?

Por que ele queria se descolar da origem de colono? Por que transformar a avó Maria Margaretha Nadler numa índia paraguaia? 

Eu sempre pensei que as histórias sobre a bisa se resumiam ao desejo de ter uma identidade mais latino-americana, brasileira e menos alemã. Mas criar toda esta história? Logo ele, o único da sua geração a conquistar um diploma de curso universitário? A história real não deveria ser de muito orgulho para todos nós?

Até gostaria de pensar que esta lenda poderia ter sido criada pelo vô Jorge, escrivão de prestígio em Montenegro, pois o meu bisavô já havia falecido quando meu pai nasceu. Mas numa cidade pequena como a Montenegro do início do século XX, onde que todos se conheciam, esta lenda soaria completamente inverossímil.

Estas perguntas tem se repetido a cada primo que descubro, cuja origem eu não suspeitava, mas que sabiam de minha existência.

Só posso especular sobre as razões do meu pai. Será que foi só por ser mais charmosa a história que ele criou? Ou isto foi por causa da família da minha mãe, metida a aristocrata, como meu pai dizia, na qual um bisneto de imigrantes não seria aceito? Não creio nesta hipótese. Meu pai sempre foi um homem muito inteligente, dominando por teus méritos os ambientes onde se encontrava. Recusou mesmo um convite para trabalhar no famoso escritório de advocacia da família da minha mãe, apelidado na época de “Santíssima Trindade”.

Quem sabe ele queria apenas criar a sua própria história, sem estar atrelado a fatos reais?

Estas perguntas ficarão sem resposta para sempre.

Mas, pensando bem, a vida já é tão dura e difícil. Sonhar com um antepassado heroico, que havia lutado – e vencido – em guerras e motins em mares bravios, talvez fosse uma forma de amenizar a realidade e as dificuldades pelas quais meu pai passou durante a sua vida… 

Jorge Gerhardt Filho, meu avô

Esquerda – Vô Jorge e o filho Paulo, meu pai. Direita – Vô Jorge e vó Luiza.

Meus avós e as filhas, Jacy e Odette.

Foto da vó Luiza (que serviu de modelo para a pintura abaixo), com meu pai, vestindo o uniforme do Colégio Militar.

Óleo sobre tela. Luiza Cândida Brasil Ribeiro da Costa Gerhardt, pintado por Sicart.


Zara Gerhardt é geóloga, contadora de causos, e frequentadora cativa da Oficina de Textos do Prof. Luiz Augusto Fischer, publicou dois livros: “Causos do Brasil Profundo” (Class), em 2019 e “Mais causos do Brasil profundo”, em 2022 (Class). Este último foi indicado para o prêmio AGES – Associação Gaúcha de Escritores, 2023, na categoria crônicas.

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