Ensaio

Da catedral de Colônia à colônia em Santa Clara

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Da catedral de Colônia à colônia em Santa Clara Foto: Arquivo pessoal

Pedro Werner é o seu nome, meu bisavô materno. As informações a seu respeito sempre foram poucas no âmbito familiar. As urgências da vida de gerações por certo concorreram para o descuido com a memória do ancestral, que se sabia tinha atravessado o Atlântico, ainda criança, para vir ao Rio Grande do Sul. 

Dentre os avós, somente tive contato com Pedro Werner Filho, filho do bisavô Pedro. Ele residia na casa que antes fora de seu pai. Por vezes deixava sua moradia na Linha Santa Clara e vinha nos visitar em Santa Teresinha, à época pertencentes ao município de São Sebastião do Caí. Dele guardo a lembrança sentado numa cadeira de palha, ao lado do fogão à lenha. Ele me tomava em seu colo, sentava-me sobre suas pernas e dava início a um balanço. Quando ele faleceu, em 1962, eu tinha cinco anos. 

Há algum tempo, quando comecei a escrever sobre a memória de descendentes de imigrantes germânicos, é que saí à procura de informações acerca de meus ancestrais. Foi numa visita que fiz ao primo Roque Werner, que até hoje trabalha com sua mulher Jaci nas terras onde Pedro Werner trabalhou na roça com sua mulher e filhos, que comecei a saber mais do bisavô. A casa que construiu nos idos de 1870 ainda está de pé. Eu já estivera ali com minha mãe quando criança, no almoço dominical de uma festa do Kerb. Mas não me lembrava da casa e sim de termos atravessado a pé o arroio Forromeco para visitar a tia Maria, que morava do outro lado do arroio com esse nome. Ela nos esperava com café acompanhado de cuca, torta, bolos…

Roque me conduziu ao interior da casa, erguida em estilo enxaimel. O assoalho e o sótão são feitos de tábuas. Subi até a parte superior por uma escadinha, também de madeira, e vi feijão e outras sementes espalhadas no local. Era ali que, durante anos, a família de Pedro se recolhia à noite, uma vez que temia o ataque de indígenas kainkangues, com os quais os colonos não tinham relações amistosas.

Meu primo apontou para o pátio da casa, em que permanece até hoje um conjunto de pedras justapostas, mais ou menos planas. Disse-me que é o assoalho que resta da cozinha que fora erguida ali para o meu avô quando de seu casamento. Depois de identificar o Morro Canastra e o Morro do Diabo, situados do outro lado do Forromeco, Roque me levou até sua casa. E para minha surpresa, apresentou-me meu bisavô. A foto dele com minha bisavó Anna, cujo prenome eu desconhecia até então, acompanha este texto. E foi essa foto que deu início à vontade de conhecer melhor meu bisavô.

 

 

Meses depois, tornei a visitar o primo. Desta vez acompanhado por irmãos, que também demonstravam curiosidade acerca de nossos ancestrais. Roque não dispunha de documentos e, pesaroso, informou que o túmulo de Pedro e Anna não existia mais. A administração municipal removera, com máquinas, a parte antiga do cemitério. Fomos até lá e confirmamos o que o primo dissera. Na parede construída no local há muitas lápides com dados acerca de dezenas de pessoas falecidas ainda no século XIX e também no século XX, mas cujos restos não repousam em túmulos. Localizamos a lápide da bisavó Anna, mas não a do bisavô Pedro, o que despertou um misto de raiva e consternação em nós.

Mais recentemente, retornei à casa de Roque. Estimulado a abordar um tema que envolvesse uma pessoa que emigrara da Alemanha, veio a resolução pessoal de escrever sobre o bisavô. Não encontrei de imediato o meu primo. Depois de vinte minutos, ele apareceu com passos lentos e me disse que, desde uma encosta, em que ele e a esposa Jaci cortavam cana-de-açúcar destinada a fazer melado, me viram entrando no pátio. Foi então que o pus a par de meu propósito. E ele voltou a falar um pouco mais do bisavô, a partir de conversas que tivera com o próprio pai, Donato, que também morara na antiga casa. Disse que o apelido do bisavô Pedro era Der Pita, uma derivação de Peter, seu nome em alemão. E narrou mais alguns episódios que eu desconhecia.

Pedro fora casado com uma mulher de sobrenome Schumacher. Mas um fato trágico ocorreu com a jovem esposa. Quando sobreveio o final da gestação do primeiro filho, ela não conseguiu dar à luz. Na época, o parto era realizado na própria moradia dos pais com a ajuda de uma parteira. Tanto o bebê quanto a mãe acabaram por falecer. Tempos depois, Pedro casou com a minha bisavó, cujo sobrenome, por informações de minha mãe, eu sabia que era Wilhelm. Roque me contou que Der Pita mantinha visível, na parte posterior da calça, uma pequena adaga presa ao cinto. Imaginei que ela devia se destinar à defesa em eventual ataque de animal selvagem. O primo, entretanto, referiu que ela era um instrumento de trabalho, servia para cortar arbustos ou cana-de-açúcar, remover terra ou barro da lâmina do arado etc. 

Roque também me disse que soube por meio de seu pai que o bisavô Pedro, já na velhice, por vezes aparecia na janela da cozinha e cantava cantigas em alemão para os netos. Outras vezes, ficava parado na janela a mirar a extensão do vale e o horizonte, enquanto cravava as unhas de seus dedos sobre o peitoril de madeira. Suas marcas permaneceram visíveis ali por décadas.  

Uma pergunta sobreveio: quais eram os sentimentos de meu bisavô enquanto cravava as unhas na madeira?  Seria saudade de sua terra natal, sua antiga Heimat?  Meu primo me disse que tempos atrás encontrou no porão de pequeno depósito, local em que se acumulavam objetos antigos, uma lata redonda. Sabia que nela o bisavô guardava cartas trocadas com parentes e amigos que nunca mais vira desde a chegada ao Brasil. Mas o recipiente estava vazio.

Roque uma vez mais apontou para a parte mais elevada da colina, onde ficavam os limites das terras do bisavô, local em que tem início um altiplano. Em épocas passadas, os indígenas kainkangues passavam por ali quando voltavam de suas incursões pelas planícies. Quando eles eram vistos, os colonos corriam de volta para suas casas e se refugiavam nos sótãos. Antes de minha partida, ele ainda repassou o telefone de Jaci, com a qual eu poderia obter o contato da mulher de um primo, já falecido, o qual eu não conhecera. Sabia que ela guardava documentos acerca do bisavô, coletados por esse primo.

Foi por meio de conversa com Adriana e Betina, respectivamente esposa e filha de Miguel Werner, e da leitura de certidões que esta última me encaminhou semanas depois que pude levar adiante o trabalho de pesquisa acerca da procedência do bisavô Pedro Werner, seus pais, irmãos e as duas esposas.

Os pais de Pedro Werner se chamavam Johann e Susanna. Casados, tiveram seis filhos homens, dentre os quais meu bisavô, que nasceu em 6-7-1845. Eles eram lavradores e viviam em Eisenach, região de Trier, fronteira com Luxemburgo. É sabido que nessa época a pobreza afligia os agricultores dessa região, enquanto se processava a revolução industrial na Europa.

O jovem imigrante deixou sua terra natal a bordo de um navio de nome Maria, que zarpou do porto de Hamburgo em 20-5-1858, com sessenta e cinco passageiros. Acompanhavam Pedro os pais e quatro irmãos. Um irmão, de nome Mathias, já emigrara um ano antes. O destino final foi um imóvel rural ao pé da serra, de sessenta hectares segundo o primo Roque, parte do qual ainda hoje cultivado por ele e pela esposa Jaci. Mas não encontrei registro da data da chegada.

Em 24-5-1873, Pedro se casou com Isabel Schumacher, natural de São José do Hortêncio, que, como visto, faleceu ao não conseguir dar à luz seu primeiro filho. Viúvo, ele se casou em 21-10-1874 com Anna Wilhelm, minha bisavó, que também viera da Alemanha. Isso conforme certidões da Mitra Diocesana que Betina me repassou.

Na conversa que tivéramos ao telefone acerca da origem da família do bisavô, Betina havia lido o nome Rheinland. Confirmei isso depois, ao ler os documentos que ela me enviou. E recentemente identifiquei a região de Trier como parte do Reino da Prússia ao ter acesso a um atlas que aponta seus limites de 1815 a 1866. E também dei por acaso, em busca de informações acerca de Eisenach, que por essa região existia, desde 1535, um convento de nome Santa Clara…

Constatei que a origem do bisavô era mesmo a atual Rheinland-Pfalz (Renânia Palatinado), estado situado a oeste da Alemanha. A descrição fechava com informação acerca do bisavô que já ouvira de minha mãe e que foi confirmada pelo primo Roque: antes de viajar com a família para o Brasil, ele havia sido coroinha na catedral de Colônia, cidade que nos tempos da Prússia integrava a província de Rheinland. Hoje ela pertence ao estado da Renânia do Norte-Westfália, noroeste da Alemanha. Fato curioso, fiquei a pensar, é que eu vivi nesse estado no período de 2000/2001, porque tive a oportunidade de fazer o caminho inverso do bisavô e realizar estudos na Universidade de Münster. 

Faltava-me a data de falecimento do bisavô. Também por informações verbais soube que ele havia vivido noventa e dois anos. E foi o que confirmei mediante a certidão de óbito que obtive junto ao Cartório da cidade de Feliz, que dá conta de seu falecimento em 31-8-37. 

Como seu descendente, não tive a sorte de conhecer pessoalmente o bisavô, nem de saber acerca dos sentimentos que tanto ele quanto a bisavó guardavam na alma como emigrantes que atravessaram o Oceano Atlântico, numa jornada incerta, para refazerem sua vida numa terra desconhecida. 

Resta reverenciá-los espiritualmente, rever e conservar a moradia que edificaram nas terras íngremes de Santa Clara, casa na qual nasceram seus filhos, filhas, netos e netas, o bisneto Roque e a bisneta Lourdes. Afinal, seus descendentes devemos nossa existência a eles.

 


José Felipe Ledur é natural de Bom Princípio – RS. Juiz do trabalho de 1985 a 2017, é co-editor da revista científica do TRT4 e autor do livro de contos Lembranças de Eufrásio – Eufrasios Erinnerungen.

 

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