Ensaio

Baú de memórias: Uma família de alemães-russos em Ijuí

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Baú de memórias: Uma família de alemães-russos em Ijuí Os emigrantes, passageiros do navio Artus que participaram do ofício religioso ministrado pelo pastor Freier da Igreja Evangélica Luterana, em Hamburgo.

Caçula, eu começara o primário em Ijuí em 1958, no Colégio Evangélico Augusto Pestana, então dirigido pelo professor Arno Sommer. Meus irmãos, mais velhos, Rolando e Edgardo, ingressaram direto no ginasial, vindos de uma escola pública de Buenos Aires. Sim, minha família deixou uma das mais avançadas cidades da América do Sul e mudou-se para o pacato interior do Brasil. 

Lembro-me da calma no caminho de volta para casa, ao final da tarde. Logo na calçada, ouvia o som do piano saindo pelas janelas da escola de Belas Artes. A música preenchia aquela quadra de casas antigas, algumas já desabitadas, até a esquina da Rua Coronel Dico, onde o comércio fervilhava. Agora vinha o burburinho do Bar Boa Vista, da Loja de Calçados de Adolfo Boger e das Lojas Gressler, que dispunham desde alimentos até materiais de construção. Eu observava o corre-corre dos funcionários, cuja fisionomia me era familiar.

Em seguida apareciam casas bem conservadas das décadas de quarenta, cinquenta, o antigo hotel, com viajantes mateando na calçada frontal. A loja de máquinas e implementos agrícolas já estava lá para assistir o nascimento do agronegócio da região. O posto de gasolina à direita era bonito. 

Quebrando a esquina, a linda casa amarelo-colonial abrigava a família Roos. A residência das irmãs Hintz era rodeada por um jardim enorme, onde flores e árvores cresciam profusa e desordenadamente. Do lado oposto acomodavam-se casarões escuros de madeira castigada pelo tempo.

As edificações ficavam então mais modernas, influenciadas pelo estilo de Brasília. Terrenos baldios, aqui e ali, oportunizavam atalhos no percurso, sombreado por ligustros e pereiras. 

Depois do Hospital de Caridade, acabava a pavimentação de paralelepípedos da Rua 21 de Abril (hoje David José Martins) e o chão batido entregava poeira de sufocar em tempo seco, barro de atolar quando chovia. As casas, na maioria de madeira, eram poucas, habitadas por operários do curtume Geiss, do frigorífico e do comércio em geral. Pelas capoeiras, escondiam-se gambás, porcos-espinhos, lagartos, preás, graxains e cobras. Potreiros forneciam pasto a vacas e cavalos. Em roçados feitos com esmero se cultivavam milho e mandioca. 

Frau Embrecht me oferecia bergamotas e um café. A dona Amália me alcançava ameixas de inverno. Trocava palavras em alemão com o Sr. Piel, vendedor de loterias. Uma família de suecos me convidava para visitar o pomar. Os lusos vindos de Júlio de Castilhos e de Tupanciretã eram carinhosos. Aprendi a apreciar o pão, a polenta e o tempero dos italianos com a família Deboni. 

No inverno, o aroma da fumaça expelida pelo labor das chaminés temperava as manhãs esbranquiçadas pela geada. Ao pôr do sol, eu apanhava gravetos na capoeira para iniciar o fogo alimentado por achas de cedro, angico e canjerana, que cresciam nas redondezas. 

Na primavera, floriam pessegueiros, pereiras e ameixeiras. Os parreirais brotados prometiam o caramanchão sombreado para abrigo do calor no verão. Cinamomos enfeitavam os passeios. As hortas verdejavam. 

O sol a pino castigava no verão. A sombrinha colorida era acessório indispensável para as mulheres. Os animais se protegiam sob as árvores. Nós nos refrescávamos nos rios da Ponte e Ijuí. Era época de colheita de uvas e de melancias. 

O gato Missi e o cão Picho – todos os gatos eram Missi, todos os cães eram Picho – me recebiam na chagada a casa, no topo do morro. Num terreno de 1.000m2, tínhamos um teto de cerca de 100 m2, um banheiro de alvenaria, o forno do pátio e um bom fogão à lenha, um jardim com flores e frutíferas, visitado por muitos pássaros. Sentia aconchego. Meu pai dizia que estávamos em paz na “fortaleza”, como chamava nosso lar – na nova pátria.

Minha mãe, Wanda Freier, conheceu meu pai, Juan Godofredo Axt, em Viale, Entre Rios, Argentina. Casaram-se em 1941. 

Wanda nasceu em 1920, em Nemmersdorf, Kreis Gumbinnen (hoje Gusev, Rússia), então Prússia Oriental. Descendia de alemães que no século XVIII haviam ido para a Rússia e para a Polônia, à procura de terras e de trabalho, seguindo promessas de liberdade cultural e religiosa, acompanhando ondas migratórias apoiadas pelos governos. As famílias Freier (meu avô), de Lodz, e Siepert (minha avó), de Varsóvia, transferiram-se no século XIX para Marinkow, na Volínia, onde araram florestas e banhados. Em razão do cenário de guerra, desde 1915 o governo russo forçava a deportação de colonos. Meus avós, amparados pela Igreja Luterana, conseguiram rumar para a região de Königsberg (hoje Kaliningrado), em 1917, quando Rússia, já bolchevique, e Alemanha celebravam um armistício. Com documentos retidos na fronteira pelas autoridades russas, tornaram-se apátridas. Mas escaparam, desse modo, à migração forçada para a Sibéria imposta pelo regime soviético, no âmbito da qual muitos pereceram, bem como, posteriormente, ao trágico deslocamento dos remanescentes para a Alemanha nazista. Minha tia-avó Pauline Siepert passou com a família por um tormentoso campo de refugiados na miserável Pabianice, em 1940, depois de uma insalubre viagem de trem, na qual muitos sucumbiram ao frio, à fome e às doenças. 

Com a falta de opções na Alemanha de Weimar, emigraram, em 1926, para o Brasil. Quis, assim, o destino que se livrassem do massacre de Nemmersdorf, em 1944, quando soldados soviéticos estupraram mulheres e crianças do vilarejo e mataram mais de 70 pessoas. 

Após um período de trabalho nos cafezais de São Paulo, fixaram-se na localidade de Mambuca, em Ijuí. Caçula de uma prole de sete irmãos e com a família enfrentando dificuldades, Wanda foi residir com o casal Maria Magdalena e Ludwig Spittler, veterano da Primeira Guerra e pastor da Igreja Evangélica Congregacional do Brasil. Aos 18 anos, em 1940, acompanhou-os a Viale, para onde a Igreja o transferira. Com a viuvez e a aposentadoria, o pastor Spittler decidiu retornar ao Rio Grande do Sul, falecendo em 1958, em Panambi, onde uma filha residia. Wanda, para estar mais perto dos parentes, trouxe o marido e os filhos de Buenos Aires. 

Meu pai, Juan, nasceu em Quebracho, Entre Rios, em 1919. Seu pai, Godofredo, plantava trigo, mesma ocupação dos antepassados, no Volga, onde haviam se fixado no reinado de Catarina II, a czarina alemã que atraíra conterrâneos para a Rússia. Em 1870, com as guerras de unificação da Alemanha, os privilégios dos colonos no Volga foram revogados pelo Czar: doravante pagariam impostos e prestariam serviço obrigatório no Exército russo. Sentindo-se pressionados, muitos começaram a migrar, para os Estados Unidos, o Canadá e a Argentina. Os que permaneceram, viram lideranças serem deportadas para a Sibéria depois da Revolução de 1917 e enfrentaram a grande fome daqueles anos tristes. Tentaram uma república socialista autônoma nos anos 1920, que foi extinta em 1941 quando Hitler invadiu a Rússia. Stálin enviou então milhares a campos de concentração no Cazaquistão e na Sibéria. Os sobreviventes, depois da Guerra, tentaram migrar para a Alemanha Oriental e, depois, para a Alemanha reunificada. A região praticamente não mostra mais sinais da presença teuta. 

Juntamente com outras famílias, os Axt saíram da aldeia de Orlowskoje, no Volga, em 1877, embarcando com destino ao porto de Paranaguá, no Brasil, onde foram recebidos, depois de dois meses de viagem no vapor Buenos Aires, com banda de música. O Imperador Dom Pedro II, filho de uma princesa Habsburgo, os convidara para se instalarem em Ponta Grossa, aonde chegaram depois de quatro meses viajando em carroções puxados por parelhas de sete cavalos. 

No início da década de 1880, o Imperador e a Imperatriz Teresa Cristina visitaram a colônia. Os Axt emprestaram os cavalos para a carruagem imperial. Mas o empreendimento não deslanchou. A região era farta no afloramento de pedras, o que dificultava a cultura do trigo. Por esse motivo, transferiram-se para a Argentina. Ali, prosperaram.

Meu avô casou-se com Amália Usinger, nascida na Rússia em 1897. Anualmente, a fazenda recebia leva de trabalhadores vindos da República Autônoma do Volga para a colheita sazonal do trigo. Os filhos foram educados por um preceptor trazido de Berlim. Falavam espanhol, alemão e rudimentos em russo. Vestiam bombachas, à moda gaúcha, e se tornaram excelentes ginetes. Aos domingos, iam ao culto num Studebaker. Os Ford 29 e Modelo T eram usados para o trabalho no campo. 

Minha avó faleceu cedo, dando à luz o terceiro filho. Godofredo casou-se novamente, com outra moça de nome Amália, também do Volga, mas, então, não fez boas escolhas nos negócios. Em alguns anos, os filhos, especialmente os do primeiro casamento, estavam na ruína. 

Meus pais foram tentar a vida em Buenos Aires, em Villa Ballester, um reduto de teuto-russos. Duas primas de minha mãe haviam vindo da Polônia, em 1936, fugindo da guerra que se preparava. A decisão de migrar para o interior do Brasil em 1957 não foi fácil – a Argentina era um país promissor. Em Ijuí, meu pai garantiu o sustento com uma oficina de concerto de máquinas de costura. 

Muitas famílias que colonizaram a região de Ijuí têm seus nomes ligados à Volínia. Na lista de jovens de 1866 a 1890 da Comunidade Luterana de Marinkow, em Wladimir Wolinsk, estão os sobrenomes Schweigert, Drescher, Strohschein, Friske, Lange, Matschinski, Penno, Guse, Werner, Rode, Freier, Reschke, Schwanke e Winter. Noutra lista, de falecimentos, de Karlswalde, de 1875 a 1908, aparecem os sobrenomes Hinz, Bender, Hoffmann, Wilhelm, Siwert, Wagner, Krause, Gerke, Albrecht, Görke e Ditrich. 

Entre Rios, Villa Ballester, Ijuí… havia sempre essa tessitura entre a Volínia e o Volga, como se o mundo dos teuto-russos permanecesse vivo, a despeito dos deslocamentos forçados, das migrações voluntárias, dos massacres. Quando o eminente historiador René Gertz se perguntou se os teuto-russos existiam, como entidade étnico-cultural no Brasil, num dos poucos artigos sobre o tema, me veio à mente a permanência das lealdadas comunitárias que trançaram destinos ao longo dos anos, entre dois, três, mais mundos. 

Foi preciso que eu descobrisse documentos sobre os pais dos pais, e os pais deles, e outros mais, para compreender o que meu pai queria dizer com “nossa fortaleza na nova pátria”, ao se referir à nossa aconchegante e modesta casinha em Ijuí. Como lembrou certa vez meu irmão Rolando, Heimat na língua alemã é torrão natal. Tem a ver com zuhause sein, estar em casa, tem a ver com sich ausfinden, se achar, estar familiarizado. Heimatland é pátria. Estar familiarizado, protegido, em casa, era também estar junto com sua experiência comunitária e em paz.

Olho para os filhos, sobrinhos, netos, e vejo três gerações de brasileiros que prosperaram em paz, porque este país tolerante um dia acolheu imigrantes espoliados, refugiados e apátridas. Pelas frestas do tempo escaparam da morte, tantas vezes certa, nos terríveis sucessos que sacudiram a Alemanha, a Rússia, a Polônia e a Ucrânia no século XX. Outros vizinhos, parentes, não tiveram igual sorte. Como se uma benção do destino os tivesse guiado até aqui. Nas minhas orações, peço então que esta benção siga se estendendo sobre as gerações vindouras, e que o Brasil, a nossa pátria, se conserve próspero e pacífico. 

 

Família Abram. Plantação de fumo em Misiones, Argentina, 1937. Recém-chegados da Polônia, migraram para Buenos Aires e, em 1958, para os Estados Unidos.

 

Família de Juan Godofredo Axt, em frente à casa de Buenos Aires, em março de 1956.

 

Casamento de Emil Freier, irmão de Daniel, meu avô, em 1919, Saskatchen, Canadá.

 

Passeio com a prima Ana Abram, de Nova Iorque, no velho Chevrolet 28, interior de Ijuí, 1960.

 

Pastor Spittler, sua esposa Maria Magdalena, pais adotivos da minha mãe Wanda Axt, na casa pastoral em Linha 15 de Novembro, Santa Rosa/RS, em 1940.

 

Casamento na família Freier, na década de quarenta. Ajuricaba/RS. Todos são alemães da Volinia e seus descendentes.

 

Escola de costura em Santa Rosa/RS, na década de 1930. Ao centro, sentada, Wanda Freier. No município havia muitos alemães da Volinia.

 

Cartão postal do navio Artus, da empresa de navegação Hugo Stinnes Linien. Nele, viajaram, partindo de Hamburgo ao Brasil, as famílias Freier, Dahlke e Ziemer, em 1926.

 

Picho, meu herói, e eu. Ao fundo o curtume Geiss, e o pequeno mato que abrigava uma nascente, salvação para muitos em períodos de seca. Ao horizonte, a lavoura.

 

Erich Freier à direita, nascido em Nemmersdorf, nas ruínas de São Miguel.

 

Máquina para sapateiro projetada e fabricada pelo meu pai, Juan Godofredo Axt.

 

Caroline Freier, nascida Wössner, minha bisavó, ladeada pelos filhos Bertha e Ferdinand. Início do século XX, em Marinkow, Volinia, hoje Ucrânia.

 

 

 


Ursula Axt Martinelli nasceu em 1951. Graduou-se em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, onde foi professora no Departamento de Química Orgânica. Foi também professora do Departamento de Química da Fundação Universidade Regional de Blumenau, cidade na qual atualmente reside. É autoria do livro Imagens de um álbum de família, de 2016. Colaborou neste texto seu sobrinho, Gunter Axt. 

 

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