Ensaio

200 anos de imigração gay-alemã no Rio Grande do Sul – parte 2

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200 anos de imigração gay-alemã no Rio Grande do Sul – parte 2 Carlos von Koseritz

Esta é uma série em três partes. Leia a primeira aqui.

II – Rio Grande do Sul: realidade e ficção

É preciso considerar que imigrantes “alemães” chegaram ao estado sulino desde 1824. O primeiro aporte compreendeu quase quatro dezenas de pessoas, que se dirigiram para São Leopoldo. Eram agricultores, soldados e artesãos. Seis católicos. Trinta e três evangélicos. Mulheres e homens. A maioria casais com filhos. Essa narrativa é conhecida, repetida com ornamentos há décadas. A epopeia dos bons alemães, que atravessaram o perigoso oceano para chegar em terras com matas fechadas e animais perigosos, onde, apesar da desilusão com as promessas do governo, com muito trabalho e espírito comunitário, apegados a Deus e à família, construíram a sociedade atual, trazendo o progresso ao recôndito sulino do país.

Eventualmente historiadores têm tocado em assuntos não bem-vindos nessa narrativa: a derivação religiosa (os muckers, por exemplo); a relação dos imigrantes com os escravizados; a insistência em histórias de supremacia racial; os conflitos, por terra, com os povos originários; as disputas entre luteranos e católicos; a adesão ao (neo)nazismo. O homoerotismo continua tema sem investigação. Existe uma dura ideologia, um conjunto de razões, que impede a investida até por parte dos pesquisadores?

Quando trabalhei com as fontes para redigir O gaúcho era gay? Mas bah! (1737-1939), publicado em 2023, pela Estúdio-Mar, me deparei com algumas informações. A pesquisa de Caroline von Mühlen, que resultaram no trabalho de mestrado Trajetórias de ex-prisioneiros de Mecklenburg-Schwerin no Rio Grande de São Pedro Oitocentista, em uma nota de rodapé, mostrava que várias pessoas de prisões, entre vagabundos, beberrões, ladrões e incendiários, foram candidatas à emigração para o Brasil. 

Em uma relação da prisão de Rostock, datada de 22 de julho de 1824, foi nomeado Albrecht, criado de aluguel, que fora “penitenciado por sodomia e expulso do território”. Quando resolveu voltar ao território do qual foi expulso, acabou na Casa de Correção. Não se sabe o destino final do sodomita, mas é suficiente para mostrar que pessoas homossexuais fizeram parte desse processo de emigração/imigração – e o casamento, bem se sabe, não é impeditivo para a bissexualidade, sendo, ainda, comum subterfúgio para muitos homossexuais sem saída – por pressões familiares.

Muitos anos depois de Albrecht, chegou ao Brasil Karl von Koseritz (1830-1890). Ele estava em uma leva de brummers, como ficaram conhecidos os soldados alemães contratados pelo governo brasileiro, em 1851, para irem à guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852) – uma intrincada disputa entre Brasil, Argentina e Uruguai.  Kosertiz desertou, vindo a se estabelecer no Rio Grande do Sul. 

Ele se tornou um dos mais influentes escritores, jornalistas e pensadores políticos do estado sulino. Defendia os imigrantes, identificando a etnia alemã como fundamental para o crescimento do país. Críticas aos jesuítas, ao catolicismo, aos francófilos, ao positivismo e a sua adesão ao evolucionismo de Darwin formaram um rio caudaloso – onde ele mesmo tinha que ter cuidado para não se afogar. Em razão da não localização do processo judicial, não se sabe, até hoje, se foi alvo da oposição política, que pode ter criado uma fake de época, ou se há fundamento na denúncia, em 1863, de pedofilia homossexual, na qual se viu envolvido. 

Os jornais acompanharam o imbróglio. O Diário de Rio Grande, em 8 de novembro de 1863, desenhou Kosertiz como “um homem depravado, imoral e indigno de tomar a si a educação de meninos.” Essas acusações de assediador, na escola em que dava aulas, o perseguiram vida afora. O escritor e pesquisador Athos Damasceno Ferreira (1902-1975) coligiu uma troça da agremiação carnavalesca Sociedade Esmeralda, na qual Koseritz e a germanidade foram espezinhados:

 

O capiton

Póves, m’escute. Eu vai falle,
Vai faz meu proclamaçon.
Munte brigade por tudes,
Que ganhe minha eleiçon!

 

Minhas patrices, eu, agórre,
Vai enche pem meu parrique.
Não quer come mais patate,
Queste faz munte lombrique.

 

Tampem não tome cerveche,
Não pépe mais lampissóle,
Não chore mais pela Blume,
Não quer mais menines d’escole.

 

Conforme os estudos de Guilhermino César (1908-1993), Koseritz teria traduzido um livro erótico alemão intitulado Memórias de uma cantora alemã, atribuído à Wilhelmine Schröder-Devrient (1804-1860). O título teria circulado, em edição clandestina, no final do século XIX. Esse livro comprova que, em terras alemãs, a lesbianidade era, ao menos, tema compartilhado – alcançando, aqui, os descendentes.

Em um novo salto no tempo, em 1924, tem-se Vivaldo Coaracy (1882-1967) ambientando o romance Frida Meyer em Porto Alegre. No livro, a personagem principal, de origem alemã, conhece o “safismo” com a colega de aula, a também alemã Erna Busch.  

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