Ensaio

200 anos de imigração gay-alemã no Rio Grande do Sul – 3 

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200 anos de imigração gay-alemã no Rio Grande do Sul – 3  Foto: Fundação Scheffel

Esta é uma série em três partes. A primeira está disponível aqui e a segunda aqui

 

III – A arte (homo)erótica de Ernesto Frederico Scheffel

 

Além da literatura, um outro segmento das artes mostra pujança homoerótica: as artes plásticas. São vários pintores, descendentes de alemães, homossexuais. Raramente assumiram a orientação sexual para além de um grupo de amigos. Tampouco se arriscaram nas obras que iam para o público. Mas houve exceções. Conforme a autobiografia, Ernesto Frederico Scheffel nasceu em Campo Bom, à época São Leopoldo, em 8 de outubro de 1927. O pai era Albano J. Hans Scheffel (1898-1893) e a mãe Hilda Feltes Jacobus (1904-1976). A família veio da Europa em 1825, portanto nos primórdios da imigração. 

Em 1935, Scheffel seguiu com a família para Novo Hamburgo. As mulheres da casa, vendo talento no rapaz, resolveram comprar material para que pudesse pintar. Hamburgo Velho, onde residia, era uma fonte de inspiração, local “estruturado como uma aldeia germânica”. Residências com jardim e pomar. Religião católica e luterana e os casamentos somente com a aprovação dos pais estão nas rememorações do pintor.

Dos familiares, recordou que, muito cedo, os filhos eram coagidos a trabalhar, tendo que entregar o salário para o chefe da família, o pai. “Meu pai, Albano, não falava comigo e não dava tempo para demonstrar algum afeto ou interesse em saber se estávamos, de algum modo, satisfeitos […].” Albano tampouco entendia bem a propensão para as artes no filho. Em um raro diálogo, o acusou de ser um “lump” – ofensa vinculada ao fato de não estar trabalhando como os demais da casa.

Scheffel estudou em Porto Alegre, na Escola Técnica Parobé, como interno, e no Instituto de Belas Artes, onde teve como professores João Fahrion (1898-1970), Fernando Corona (1895-1979), Ângelo Guido (1893-1969) e Luiz Maristany de Trias (1885-1964) e o teuto-brasileiro Joseph Franz Seraph Lutzenberger (1882-1951). Formou-se aos dezoito anos. 

Do período conturbado antes da Segunda Guerra Mundial, comentou a respeito das intervenções do governo Getúlio Vargas sobre descendentes de imigrantes alemães, mencionando, entre os “excessos”, o confisco de livros e documentos, a proibição da língua alemã, a invasão de instituições, igrejas e associações. Nos anos 1940, Scheffel teve que prestar serviço militar.

Na década de 1950, começou a viajar, indo ao Rio de Janeiro em função de uma bolsa de estudos. O companheiro de quarto, José, achou de bom-tom levá-lo para conhecer as prostitutas da Lapa. “Pensava em encorajar-me, porque eu era quieto e tão distante do mundo simples dele.” Durante boa parte da autobiografia, o pintor retomou, como características suas, a timidez e a dificuldade em manter conversações.

Em 1952, pintou a tela Rixa Gaúcha, na qual figurou Paixão Côrtes (1927-2018), óleo em grandes dimensões, que foi recusado para a mostra no Salão Nacional de Belas Artes, pelo tamanho. A pintura acabou integrando ao esdrúxulo “Salão dos Recusados”, um deboche com o evento oficial, evento no qual foi muito apreciada e, pela qualidade, muito mencionada – havia dificuldades para entender como aquela maravilha havia sido rejeitada no Salão Nacional. O fuzuê lhe rendeu ótima propaganda.

A pintura erótica, com camadas psicológicas, começou tendo por modelo a de si mesmo. Em Despertar da adolescência (1953), apareceu jovem, nu, de costas, cabeça baixa. “Essa composição revela parte do meu secreto conflito da puberdade à adolescência, enquanto estava internado no colégio Parobé, dos treze aos dezenove anos de idade.” Relacionado à obra, comentou: “O problema é a corporeidade animal do ser humano, negada pela sociedade educada e condicionada para a hipocrisia, que considera o sexo objeto de escândalo. A única informação útil dada à juventude do meu tempo, nas décadas de 1940-50, era relativa às doenças venéreas propiciadas pela prostituição – terrorismo social.” Adiante, abordou as práticas de masturbação – que vinham associadas à culpa.

Em 1956, retratou-se nu em Signo da balança, obra que entendia que “desencadearia uma revolução contra o normalíssimo e falso pudor da sociedade, não só do Rio de Janeiro.” Quem o viu antes de pronto lhe fez advertências para não ser tão “libertário”, o que o levou a cobrir “a vista do órgão masculino, inominável na década de 1950.” Curiosamente, Scheffel insinuou que a obra poderia, no futuro, ser radiografada para que se veja o original.

Em 1957, participou do Salão Nacional de Belas Artes com o famoso Tríptico, no qual pintou o halterofilista Geraldo Batista Soares e a ele mesmo sem roupa. O escultor Deocleciano Martins (1906-1974) o aconselhou a cobrir “a parte que me define do sexo masculino”. Uma folha de parreira atendeu ao pedido. Alfredo Galvão (1900-1987), integrante do júri, o declarou “pornográfico”. Esse tipo de balbúrdia fez com que, na autobiografia, Scheffel se reconhecesse como um “tímido audacioso”.

Nos anos 1960, o pintor seguiu para a Europa. Radicado na Itália, em Florença, ganhou renome. Dedicou-se à composição musical, à escultura e à pintura. Não encontrei menções ao que acontecia no Brasil nesse período, fase da Ditadura. Sabe-se que pintou familiares de Ernesto Geisel (1907-1996), chegando a presentear o então presidente com uma tela na qual representou o município de Estrela, terra natal da esposa Lucy Geisel (1917-2000).

 

Município de Estrela. Presente à família de Geisel. Coleção de José Eduardo Barbosa Cunha.

 

Já sobre o período de efervescência na Europa, a partir de 1968, quando greves gerais e ocupações estudantis agitaram a França, foi comentado rapidamente. Scheffel mostrou certo ânimo com parte do que ocorria, mas via o todo como infrutífero, longe de alcançar os propósitos. Desse período, pode-se dizer que as a liberdade sexual foi o que mais lhe impactou, porque manifestou maior segurança para, a partir dos anos 1970, assumir uma “nova fase de erotismo. Com provocação.” 

Certamente o “tímido audacioso” passou a fazer arte que hoje se chama de homoerótica. Mas ele não conseguiu exprimir textualmente sobre o assunto e sobre a própria orientação sexual. Sua arte deveria ser suficiente para o dizer. Assim aconteceu comigo logo que visitei o museu com o seu nome, em Novo Hamburgo. Mas em um mundo em que as pessoas têm dificuldades gigantes de entender o óbvio, quando escrito de forma cristalina, dificilmente o pictórico de Scheffel alcança muita gente.

 

Páris. Florença (1970).

 

Coma mais pão. Florença (1975).

 

 

Amigos comentam que ele era muito discreto e que se realizou nas obras. Um deles me disse que, ao conhecer um rapaz de nome Guilherme, em uma janta, teria ficado encantado com a possibilidade de fazer uma pintura do ninfeto. A discrição, em si, é algo extremamente difícil de ser compreendido. Pode ser decorrente de fatores biológicos ou do meio. Sabe-se que há várias síndromes, por exemplo, que configuram dificuldades para lidar com situações sociais. Por outro lado, a impossibilidade de um diálogo sem freios, a realidade dos homossexuais no contexto em que viveu Scheffel, pode contradizer a noção de que seria, por natureza, introspectivo.

Nas últimas décadas, ele permaneceu entre o Brasil e a Itália. Na Europa, sem especificar de que forma, dizia ser possível sentir-se senhor da sua individualidade. A partir de meados dos anos 1970 e até a sua morte, em 2015, Scheffel se envolveu em projetos grandiosos. Um deles foi a criação do Museu de Arte Ernesto Frederico Scheffel, ideia lançada durante o Sesquicentenário de Imigração Alemã. Seu suor também foi gasto para a defesa do patrimônio histórico-arquitetônico de Novo Hamburgo, no que se incomodou com os locais, enfrentando o que chamou de “adversidade e incompreensão”. Até hoje, em qualquer lugar, o processo de tombamento gera tensões. Esses projetos, largamente dependentes dos senhores do poder, poderiam ter sido prejudicados se ele mantivesse uma afirmação homoerótica? 

Para a construção desse texto, entrei em contato com algumas pessoas-chave que, em 2024, se esquivaram do tema ou simplesmente não responderam a e-mails e outras tentativas de conversação. Remanesce um pacto pelo silêncio enquanto a obra de Scheffel grita. De momento, enquanto contra-argumento a possibilidade de uma dura ideologia alemã inata, perene e homogênea, não posso deixar de concordar com Marcos Benedetti em alguma medida. Ainda hoje –  afastando algo exclusivamente atrelável à sonsice da extrema direita, na pauta de costumes -, alguma coisa paira. E pode ter alguma parcela de explicação nesse descendente de alemão que aqui se formou.

Recomendo um passeio presencial e virtual na fantástica Fundação Scheffel: https://www.fundacaoscheffel.com.br/ .

 


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. O gaúcho era gay? Mas bah! é seu último título, lançado em 2023.

 

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

 

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