Ensaio

200 anos de imigração gay-alemã no Rio Grande do Sul

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200 anos de imigração gay-alemã no Rio Grande do Sul Revista Der Eigene. Foto: Wikimedia

Foi Marcos Renato Benedetti, em O corpo e o gênero das travestis (Garamond, 2005) – livro que resultou de seu mestrado em Antropologia Social, na UFRGS -, orientado por Ondina Fachel Leal, que escreveu algo que nunca saiu do meu horizonte. Ele fez um estudo sobre o universo trans de Porto Alegre, grifando que 45% de suas entrevistadas haviam migrado do interior gaúcho para a capital. Essa é uma característica dessa população, que vai de um lugar para o outro movida por desentendimentos com a família, por busca por espaço profissional, pela renovação da clientela, e por um sentido de encontrar a felicidade em algum outro espaço – a tal fantasmagoria do outro lugar, citada pelo filósofo Didier Eribon em Reflexões sobre a questão gay (1999).

Benedetti identificou que as regões da serra gaúcha e dos vales – Taquari e Rio Pardo – não tinham significativa representação nesse fluxo. Sobre esse fenômeno, aventurou: “Talvez seja demasiadamente singelo afirmar a existência de alguma ligação entre os diferentes tipos de colonização e um maior ou menor espaço social para as transformações de gênero. No entanto, é difícil não associar a rígida moral católica e a dura ideologia alemã no que concerne às diferenças entre os gêneros ao pouco espaço social para sexualidades e gêneros diferentes em algumas regiões do país.”

Salvo engano de leitura, ele propôs uma conjuntura sócio-cultural que, em partes específicas do Estado, operaria como restringente à possibilidade de vivências de dissidentes sexuais e de gênero. O gauchismo, por senso comum, sempre foi apontado como um elemento a ser considerado, específico do estado sulino. A religião católica tem espectro opressor maior, alcançando temporalidade e geografia mais amplas. Mas e a “dura ideologia alemã”, o que é?

Como estamos em largo período de comemoração da imigração alemã no Rio Grande do Sul, é desafiador fazer um panorama – provocativo – sobre a relação entre os alemães e as dissidências de sexo e de gênero. Uma revoada histórica com alguns pousos.

 

I – Deutsche: arcaicos ou vanguardistas?

É substancial observar os movimentos teórico-científicos que ganharam força ao final do século XIX. O psiquiatra alemão Richard Von Kraft-Ebing (1840-1902), católico fervoroso,  publicou Psychopathia sexualis (1886), observando que a sexualidade, quando não encilhada com o objetivo de procriação, era perversa. A homossexualidade masculina  apareceu associada ao travestismo. A lesbianidade era vista como decorrente de anomalias no cérebro. 

No campo legal, o Código Penal Alemão (1871) era claro: “ A fornicação não natural, seja entre pessoas do sexo masculino ou de humanos com bestas, é punida com prisão, com a punição adicional de perda imediata de direitos civis.” Na primeira década do século XX, o imperador Guilherme II (1859-1941), que governou entre 1888 e 1918, foi duramente atacado por seus opositores, que denunciavam a proximidade excessiva na relação dele com o diplomata Philipp Eulenburg (1847-1921). Essa quizila se tornou uma caça às bruxas. Exílios, condenações de oficiais, processos em que a homossexualidade era o motivo. A paranoia era amparada pelo famigerado dispositivo legal.

 

Magnus Hirschfeld

 

Na mesma Alemanha de estudos marcados pela associação à doença e de legislação restritiva e de perseguições políticas, surgiram deslumbrantes contestações. Movimentos individuais e coletivos que estão na base do que se entende por direitos conhecidos como LGBTQIAPN+. Karl-Heinrich Ulrichs (1825-1895), nascido em Aurich, foi um dos primeiros a levantar a bandeira gay. Ele mesmo era homossexual. Autor de vários ensaios, entre as quais as Pesquisas sobre o enigma do amor entre os homens (Forschungen über das Räthsel der mannmännlichen Liebe), empregava a palavra uraniano/uranista para os que se encantavam pelo mesmo sexo.

A revista Der Eigene começou a circular em 1896. Criada pelo escritor alemão Adolf Brand (1874-1945), era voltada para esse público. Brand defendia que não existia uma identidade específica, uma categoria, mas que a homossexualidade era uma manifestação do desejo possível a qualquer homem. 

No campo das ciências, Magnus Hirschfeld (1868-1935), médico e sexólogo alemão, homossexual, foi pioneiro.  Ele argumentava, diferente de Brand, que existiam diferenças e que a homossexualidade deveria ser vista em indivíduos em uma categoria. Hirschfeld empreendeu uma contundente campanha contra o Parágrafo 175, obtendo assinaturas de alemães renomados como o cientista Albert Einstein (1879-1955), os escritores Herman Hesse (1877-1962), Thomas Mann (1875-1955), Max Brod (1884-1968), o político Eduard Bernstein (1850-1932), entre muitos outros.

 

Revista Der Eigene. Foto: Wikimedia

 

A partir de 1919, quando surgiu a República de Weimer (1919-1933), houve um período de qualidade de vida para as diversidades sexuais e de gênero. O destino de gays se sentindo inseguros em seus países de origem era a Alemanha. Hirschfeld criou o famoso Instituto Para o Estudo da Sexualidade (Institut für Sexualwissenschaft), com uma grande biblioteca e rico museu. O local oferecia serviços educativos e médicos. Em 1919, surgiu o filme Diferente dos outros (Anders als die andern), uma produção do próprio Hirschfeld e de Richard Osvald, considerada a primeira película a abordar a relações homoafetivas. 

Esse rol poderia continuar, incluindo mais e mais nomes de alemães a favor do amor entre pessoas do mesmo sexo. Ressalte-se somente mais um: Karl-Maria Benkert (1824-1882), jornalista e escritor austro-húngaro que viveu na Alemanha boa parte de sua vida. Foi lá, devido a um amigo homossexual, que teria suicidado depois de uma chantagem, que decidiu se tornar um ativista em defesa dos direitos humanos. Manifestou-se contra o Parágrafo 143 (posterior Parágrafo 175 do Código Penal), em panfletos. Nesses documentos, em 1869, pela primeira vez, foi utilizada a palavra “homossexual”.

Infelizmente, a vanguarda foi soterrada com a chegada do nazismo. Todos os esforços não haviam conseguido eliminar o dispositivo legal – a maioria dos políticos eleitos era conservadora. A partir de então, o Parágrafo 175 foi incrementado. As penas se tornaram mais duras. Não era mais preciso de contato físico para a culpabilização, somente a intenção bastava. O destino dos gays em campos de concentração, marcados pelo triângulo rosa, é bem documentado. Infelizmente, esse passado germânico costuma ser esquecido para privilegiar marcos muito mais recentes, ligados aos Estados Unidos (Stonewall) ou até ao Brasil (jornal Lampião da Esquina…).

 


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com cinco livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. O gaúcho era gay? Mas bah! é seu último título, lançado em 2023.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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