Crônica

Rios aéreos

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Rios aéreos Foto: Airton Cattani

Décadas atrás, fui amigo de um grupo que se propunha a fazer literatura explorando apenas a banalidade. Um exercício recorrente era escolher de modo aleatório uma pessoa na rua e escrever listas de possibilidades sobre a vida dela. Por exemplo, um homem esperando um ônibus: está indo pra casa, onde o espera um filho desempregado; quando criança, queria ser gari ou vendedor de gás, só pra ficar dependurado num caminhão; vai entrar no ônibus e continuar o assunto de ontem (rios aéreos) com o motorista.

O jogo não se limitava a traçar perfis por meio de descrições. Havia, inclusive, uma regra tácita que privilegiava a subjetividade contra o objetivismo. As listas eram infinitas e não precisavam manter a coerência. O homem na parada poderia ser viúvo e casado ao mesmo tempo; poderia ser gremista e colorado, pois o fundamental, na brincadeira, era vasculhar a potência criativa da ignorância.

Mais do que sobre personagens, escrevíamos a partir de cenários. O exemplo que quero abordar me parece paradigmático.

Havia uma casa rosa na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Alguém, um dia, deve tê-la citado de modo particularmente raro, porque depois fomos visitá-la em grupo. Em seguida, um dos colegas chegou a se candidatar àquele curso de escrita criativa na PUC, usando nossas hipóteses sobre ela como mote. Transcrevo aqui umas notas que guardei:

“Foi construída em homenagem a uma moça que se casou aos quinze anos. A única exigência do pedreiro foi colocar balaústres na sacada. Ali, durante um alagamento, um jovem delirou febril sobre amarrar ideias como talharim. Uma descendente dele virou bibliotecária. Me deixariam podar a cerca-viva? Vera Karam pediu emprestado um paninho de limpar óculos a um passante, sem saber que se tratava de alguém que queria morar na casa rosa. Diz o que tu pensa sobre a casa rosa que digo quem tu é.” 

Hoje acordei com duas coisas na cabeça: a casa rosa da CB e os rios aéreos. Comecei a escrever sobre a primeira e dei um jeito de mencionar a segunda, quando falei sobre o homem na parada. Daí, agora, me bateu a curiosidade de saber o que de fato são os rios aéreos. Encontrei um vídeo da BBC Brasil sobre o fenômeno. No meio dele, aparece a casa rosa. 

 


Paulo Damin é tradutor e escritor, autor de oAdriano Chupim (Martins Livreiro). Publicou na Parêntese o folhetim A lenda do corpo e da cabeça.

 


As opiniões emitidas pelo autor não expressam necessariamente a posição editorial da Matinal.

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