Crônica

Precisamos falar mais sobre isso

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Precisamos falar mais sobre isso Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

Como explicar para quem não é daqui o que está acontecendo aqui? Como explicar o que vem depois que a água baixa, depois que o Jornal Nacional, o Fantástico e a GloboNews vão embora? Como explicar o silêncio do centro histórico da capital – onde só se ouvem geradores e lava-jatos? Ou melhor, como explicar que há um silêncio estranho pairando sobre a cidade, quiçá sobre o estado inteiro? 

Ouso dizer que ninguém no Rio Grande do Sul, ou em Porto Alegre, de onde escrevo, está normal, se sente normal. É impossível se sentir assim. Uma das razões é que não sabemos mais o que é isso. Basta ouvirmos cinco pingos de chuva, e o coração acelera. A mão aflita procura o celular, abre o site de notícias, sintoniza no rádio. Desânimo e medo. Medo e aflição. Ansiedade e angústia. 

Nos bairros não atingidos pela inundação finge-se certa normalidade. Os carros circulam, há engarrafamento, buzinadas, pessoas subindo e descendo dos ônibus. A academia funciona, o comércio local também. Os jardins seguem verdes, as gramas seguem sendo cortadas. Não há marcas na parede, nem jardins secos, nem montanhas de lixo. Não há sinais de que uma grande parte da cidade ficou submersa e, muito pior, de que alguns bairros da cidade ainda estão cheios de água. 

Mas é só andar um pouco, ir mais adiante, em direção às áreas próximas ao Guaíba, ao Menino Deus, Cidade Baixa, Centro Histórico e Quarto Distrito, ou sair da cidade em direção à região metropolitana para entender o que tento dizer: não temos como explicar o tamanho do trauma coletivo que vivemos. Nem nós, gaúchos, temos dimensão do que aconteceu. As estatísticas não dão conta desse estrago que também é interno, silencioso e subjetivo.  

Andar por esses locais faz a gente se sentir em um pesadelo, daqueles em que as cenas passam e a gente quer muito acordar. Tentamos, fazemos força, mas continuamos presos ali. Mas estamos de olhos bem abertos, acordados e seguimos caminhando, atônitos, olhando tudo em volta. O cheiro de água podre e umidade nos cerca.

O tempo também passa diferente. Amanhece e anoitece, e milhares de pessoas continuam vivendo em abrigos provisórios. Amanhece e anoitece, e milhares de pessoas continuam não tendo mais suas casas, não tendo um lugar para voltar. Amanhece e anoitece, e as pessoas continuam limpando. Amanhece e anoitece, e mais empresas pedem ajuda porque contabilizam os prejuízos e eles são enormes. No supermercado, damos falta de alguns produtos que vão demorar a voltar para as prateleiras porque as fábricas ficaram embaixo d’água ou porque não conseguem chegar aqui. Nada mais é como era antes. Nada. Muito menos nós mesmos.  

Hoje desci do ônibus na parada que eu costumava descer quase todos os dias da semana, em frente a um restaurante que eu gosto e a um grande galpão dos correios, outrora sempre cheio de caminhões do Sedex. Ali, até um metro e oitenta de altura, mais ou menos, tudo é marrom. A água baixou há 10 dias e ainda é marrom. As cadeiras do restaurante estavam todas na rua, as portas e as janelas abertas, lá dentro o barulho inconfundível do lava-jato. Na avenida, uma das principais do centro da cidade, muitos caminhões pipa e trabalhadores de galochas e calças embarradas, com olhares perdidos de tanto cansaço. No meio de uma viela ainda cheia de lama, vejo sentado em um degrau de um prédio um desses trabalhadores. Todo encolhido, encurvado em si mesmo, a cabeça entre os joelhos. 

Quando me dou conta que estou participando ativamente da paisagem distópica, com meus tênis brancos, óculos escuros, recém-saída de um bairro seco, me sinto estranhíssima. Cá estou eu, fingindo normalidade, rumando para uma reunião em um prédio símbolo da cidade, onde ainda não há energia elétrica – portanto não há elevador, não há água, não há banheiro. Mas, ufa!, tem gerador, tem barulho de lava-jatos. Isso deveria ser um alívio, porém não é. Deveria ser o som da reconstrução, mas por enquanto ainda é o som do trauma.  

Então, é muito difícil explicar. Acho que ninguém nunca imaginou que viveria isso na sua cidade, na nossa cidade. A mídia pode emocionar os que assistem de longe, pode despertar empatia, mas certamente não dá conta da dimensão da coisa toda. A história não é só da Maria, do João, do Renato, da Carla. Talvez esses sejam os casos mais tristes, os mais sofridos, os inimagináveis e que, infelizmente, aconteceram. Mas a história é de todos nós que aqui vivemos. 

Se não houvesse tantas imagens — e a perspectiva de que desastres climáticos se intensifiquem —, talvez, no futuro, nossos relatos fossem tomados por ficção. Museus, centros culturais, praças, mercado público, restaurantes, padarias, bares, lojas, shoppings, escritórios, escolas, estádios, aeroporto, estações de trem, rodoviária, paradas de ônibus, casas e mais casas e mais casas: tudo debaixo d’água. Mesmo agora é difícil voltar para os nossos lugares habituais e imaginar que, semanas atrás, a água me cobriria se eu estivesse na parada de ônibus. Que as vias da cidade eram canais para barcos. Mas se olharmos bem as marcas estão lá. Elas não nos deixam esquecer que tudo isso foi e ainda é bem real por aqui. 

Em Porto Alegre, e em quase 95% do estado, está tudo fora do lugar. Mas está todo mundo tentando. Por enquanto, o que não podemos fazer é parar de falar sobre isso, é fingir normalidade, é achar que porque estou seguro, minha casa segue ótima e meu bairro também, a enchente já deve ter passado. Não passou. Não vai passar tão cedo. 

Em outubro tem eleições e mais do que nunca precisamos falar sobre isso sem parar. Precisamos falar dos culpados – porque, sim, choveu demais, mas temos culpados que tornaram o desastre mais grave e para quem devemos apontar o dedo. Precisamos falar sobre as mudanças climáticas e o nosso papel enquanto humanidade. Só assim, talvez, a gente consiga, algum dia, explicar algo do que aconteceu por aqui.


Luísa Kiefer é jornalista e pesquisadora. Editora da Parêntese. 

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