Crônica

Por que alguém se torna leitor?

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Por que alguém se torna leitor? Foto: Pixabay/Pexels
É mais difícil entender por que alguém se torna leitor do que responder por que alguém se torna escritor. O escritor pelo menos a gente pode se apoiar na ideia de que ele virou isso porque gostava muito de ler, queria se envolver mais com a literatura e, diante da alternativa quixoteana (virar personagem), achou mais razoável se meter a escrever pra aliviar a comichão. Mas como é que a gente se torna leitor? A vida social está tão chata assim? Ou viramos leitores pra ter, finalmente, uma vida?  Esses dias, numa aula de português, distribuí aleatoriamente livros para os alunos, tudo de poesia. Gurizada de treze, catorze anos. Nunca ninguém ali tinha se interessado por literatura, mas naquela manhã uma aluna abriu por acaso um poema que dizia assim:  “Adeus, minh’alma, adeus! eu vou chorando…Sinto o peito doer na despedida…Sem ti o mundo é um deserto escuroe tu és minha vida…” E leu em voz alta para o resto da turma, que aí metade da gurizada ficou com uma cara que parecia que tinha morrido alguém. E tinha: o Álvares de Azevedo, de infecção, apaixonado.  Não tem como saber o que vai tocar a pessoinha, o que vai fazer com que ela passe o resto da vida em busca daquele prazer espantoso que a leitura, em certo momento, lhe proporcionou. Mesmo esse episódio aí da escola: não quer dizer que amanhã as estudantes vão continuar buscando o efeito que sentiram, inesperadamente, naquele dia. Mas ali, naquele poema, naquela leitura, abriu-se a brecha: tem gente que cai, eu caí, tu caiu, o Quixote então nem se fala. Talvez a graça no trabalho do professor seja abrir brechas, dar chance pra que o acaso aconteça. Em certo sentido, isso vai contra a ideia que se tem de aula de português. Tem gente que realmente pesquisa sobre formação de leitores (aceito indicações sobre o assunto). Só vim aqui, como leitor, expressar minha dúvida existencial e dizer que, até agora, me parece que a gente vira leitor por acaso mesmo. Porque eu sou desses aí que acham que estudar gramática serve pra formar gramáticos (hoje, alguns preferem ser chamados de linguistas textuais) e que, pra formar leitores de literatura, nada melhor do que a própria leitura literária. Como acho que a vida é muito curta pra decorar tipos de orações, e o salário não compensa essa chatice, levo poesia pro serviço. Se tudo pode acabar amanhã, que se parta com um poema na alma. Paulo Damin é tradutor e escritor, autor de Adriano Chupim (Martins Livreiro). Publicou na Parêntese o folhetim A lenda do corpo e da cabeça.

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