Crônica

O que mais a enchente levou?

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O que mais a enchente levou? Foto: Pedro Comerlato

Porto Alegre está estranha. 

Parece que, depois da enchente, ainda não se reencontrou. 

Muitos perderam pessoas queridas, perderam casas, empregos, animais de estimação, fotografias, noites de sono, sonhos… impossível fazer um inventário de tantas aflições. Aflições que surgem na lembrança mescladas com a solidariedade e o carinho inesperado de tantas pessoas.

Vai levar algum tempo para que tantas coisas vividas possam se assentar. O sentido dessas múltiplas tragédias está sendo escrito nas vidas e nas almas de cada um. Há uma lenta tecitura a ser feita, até conseguir dar contorno para os buracos deixados pela enchente.

Além do que cada um perdeu, parece que todos juntos, como cidade, também perdemos alguma coisa. 

Nos momentos mais corriqueiros, quando menos se espera, um vestígio da enchente retorna. Em um comentário de um desconhecido, em uma preocupação silenciosa despertada por um céu cinzento, em uma pilha de entulhos avistada na beira da calçada… e somos transportados para aqueles intermináveis dias de maio. 

O que será que a enchente levou de todos de nós, como cidade, que estamos sentindo falta e não sabemos onde procurar? 

É certo que levou a tranquilidade diante de um anúncio de chuva forte. Levou a confiança de que o “nosso” rio era apenas a mais bela moldura para o pôr do sol. Também levou a arrogância – sentimento tão gaúcho – da certeza de que tínhamos domado as águas do Guaíba.

Essas respostas não encerram a questão, que segue nos interpelando silenciosa em cada olhar vago que cruzamos.  Vacância que nos revela que Porto Alegre está estranha, porque a enchente também levou a imagem que tínhamos de nós mesmos. 

Não somos mais os mesmos que, até pouco tempo atrás, falavam com orgulho da enchente de 1941, como algo do passado. O Mercado Público cercado pelas águas, registro em preto e branco daquela enchente, retornou como um enigma em imagens coloridas, embaçando a nossa biografia.

A nossa autoimagem – tanto tempo refletida nas águas do Guaíba – ficou irreconhecível. O espelho turvou-se com a água barrenta da enchente e perdemos o nosso contorno. Não sabemos mais dizer quem somos. 

Por isso, também não sabemos direito como falar dessa enchente. Ainda não temos as palavras para narrar o muito que aconteceu nesse entretempo. 

O Guaíba baixou, mas a enchente ainda não se foi. Seguimos no trânsito desse acontecimento, entre o que passou e o que ainda está por passar. Um trânsito em que se alternam atmosferas de melancolia, angústia, indignação e afetos ainda intraduzíveis. 

Além da costura dessas intensidades a cargo de cada um, há também uma longa elaboração coletiva a ser feita. Junto com a reconstrução das coisas e dos sonhos que a enchente levou, temos que recompor a nossa autoimagem de cidade. 

O que Porto Alegre vai querer para si depois de tudo o que aconteceu? 

Será possível esquecer tudo o que passamos e negar que precisamos de um serviço público robusto e verdadeiramente comprometido com o bem estar e a segurança da cidade?

Será possível negar tudo o que passamos e esquecer que estamos em uma das localizações mais vulnerável à crise climática e que o nosso destino está profundamente enlaçado com o do resto do planeta?

Não há um roteiro a ser seguido para esse trabalho de elaboração. O que podemos dizer é da responsabilidade coletiva perante o que nos aconteceu. Não apenas para que essa tragédia não se repita, mas também para que possamos reconhecer-nos novamente em nosso reflexo no Guaíba, confiantes de que Porto Alegre está fazendo a sua parte para que haja futuro – futuro para nós e para todas as outras cidades do nosso vasto mundo.

Estaremos à altura deste acontecimento?


José Mário Neves é psicólogo, doutor em Psicologia Social e Institucional. Contato: [email protected]

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