Crônica

Nascemos para correr

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Nascemos para correr Foto: Reprodução Youtube

Tem uma disciplina nova do Ensino Médio que tem uma pegada mais livre. Sem conteúdo didático, sem apostila, sem nada disso… Só tem um nome: Linguagem Técnica. 

*

Peguei ranço da palavra “técnica” quando li aquele livrinho do Walter Benjamin “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”. Ele já cantava a pedra, lá, na primeira metade do século passado… Ele sacou que a obra de arte, em si, perderia, aos poucos, sua aura estética, aquele manto mágico que a cobre e você a revela quando interage com ela. Mr. Benjamin nos fez pensar que a arte se transformaria num mero produto. 

Os malucos da Pop Art ganharam grana com isso (apesar de ainda tentar encobrir a obra com um manto quase transparente), dispensando a catarse e a epifania e inserindo a autocrítica. 

Os caras da Escola de Frankfurt escreveram textos e mais textos criticando o cerne desta questão que se refere ao desenvolvimento de uma “indústria cultural”. 

Esse papo percorreu o século XX todinho!

Mas…

O que dizer sobre o resultado disso tudo, quando olhamos ao nosso redor hoje, hein?

***

Bom, voltando ao lance da disciplina nova, meus alunos ficam lá, meio perdidos, porque estão acostumados com alguma coisa mais sólida, uma linha de conteúdos programáticos que organiza mais ou menos a parada. 

No entanto, aproveitei a liberdade de não ter que seguir nada pré-estabelecido e pensei em trabalhar “leitura” na tal disciplina que só tem nome. Curiosamente, não tem nenhuma disciplina de leitura na escola. As aulas de português tentam dar conta dessa parte, mas elas são mais focadas na estrutura da língua, e não é bem por esse caminho que pensei seguir.

A ideia é ler, mas não apenas leitura de literatura. Aprender a ler um quadro, um filme, uma música… ler arte.

Sem saber muito por onde começar, me dei conta de um lance. Sempre reparo a moçada enfurnada em si mesma com os fones nos ouvidos e pensei: música, é por aí…

*

Cheguei na aula e fiz uma pergunta: “Quem aqui escuta música?”. Quase todos levantaram a mão. Continuei: “Como vocês ouvem música?”. Aí é que a coisa pegou. Boa parte da moçada ouve música como trilha sonora – na academia; na cozinha; na rua. Trocam de faixa quando não gostam. Escutam só o refrão e pulam para a próxima. Não fazem ideia de quem está tocando. Botam o som para rolar enquanto estudam…

Mas raramente escutam. 

(Eles não param para escutar música simplesmente porque não conseguem parar para fazer UMA coisa apenas.)

*

Pensei: vou usar um clipe. É um lance audiovisual, parece melhor do que simplesmente botar uma música pra tocar.

Lembrei de um clipaço do Gojira… 

A música se chama “Born for one thing” – “nascer para uma coisa”, em tradução simples. A estética do clipe e a produção são impactantes. Movimentos frenéticos, efeitos especiais…tudo isso que a gurizada está acostumada!  

Mas não era isso que importava, no fim das contas. No fim das contas eu queria que alguém conseguisse me responder à pergunta: o que é essa “coisa” para que nascemos que o título da música nos provoca a saber?

Este exercício de leitura é que é o lance.

Brincar com a subjetividade…

*

Durante os quase seis minutos do clipe, vários personagens correm dentro de um museu, fugindo de um sujeito que os persegue sem trégua. Enquanto correm, eles tomam uma pílula misteriosa. Passam por seções diversas e não encontram a saída. No final, as pílulas acabam e o último corredor fica encurralado dentro de uma sala. O perseguidor força a porta da sala várias vezes, mas não consegue entrar, até que em um último esforço a porta se abre… Dentro está apenas um animal selvagem que ameaça atacar. 

Contado assim, o negócio parece meio sem fundamento, mas na verdade tem todo um lance metafórico. 

*

O clipe do Gojira resgata uma questão universal: nascemos para quê? 

A metáfora do clipe é bastante clara: fugimos de algo inevitável que, ao final, não temos como escapar (como qualquer animal).  

Nascemos para morrer. 

Ponto final. 

Mas por termos consciência da morte é que corremos todo o tempo… 

*

Claro que não esperava uma interpretação sofisticada por parte da gurizada assim, de cara – e isso não quer dizer que eles não consigam formular uma sentença complexa – mas queria ver um sinal de aprofundamento, mesmo que fosse algo meio delirante, sem pé nem cabeça (sempre tem algum maluco que fala uns lances meio doidos), uma tentativa de compreender e revelar o sentido daquele clipe.

Não rolou muito.

Fiquei pensando por quê…

***

Para a indústria cultural, a música é só mais um produto consumível. Mr. Benjamin tinha razão. A aura que reveste a música tem perdido espessura. 

Esse, me parece, é um ponto importante.

*

Conversando com um amigo, ele me disse um lance interessante. O tempo que a moçada dedica a uma música hoje em dia não permite que eles criem vínculos com ela. Lembro que, quando comprei o meu aparelho de som, eu só tinha um cd para escutar. Houses of the Holy, do Led Zeppelin. Sete músicas. Eu ouvia aquele cd todos os dias. Lia as letras. Traduzia com a ajuda de um dicionário. Comentava com os meus amigos sobre cada uma das composições. Criava vínculo.

Outro ponto curioso. 

*

(No meio disso tudo, ainda fui pego de surpresa por um devaneio da imaginação: já pensou o professor de história entrar na sala de aula daqui a cem anos – se isso ainda existir – e dizer para os seus alunos: “Pessoal, hoje vamos estudar aquele período em que eram as pessoas que faziam as músicas!”)

*

A relação que a galera tem com a música é, ao que parece, mais objetiva do que subjetiva. Eles escutam música para alguma coisa…

Talvez pela falta de vínculo, devido à escassez da atenção, ou, por outro lado, a indústria da música que tem se preocupado mais com o produto e menos com a obra, talvez por estes fatores, seja cada vez mais difícil extrapolar o aspecto aparente, a coisa primeira, e ler as entrelinhas para desvendar o “mistério da criação”, seja de uma música, seja de qualquer outra forma de comunicação da linguagem.

***

O clipe do Gojira nos leva a pensar que nascemos para morrer, mas o aforismo não é tão trivial assim. O ponto fundamental é a consciência que temos da morte, que nos faz correr o tempo todo, sem saber muito bem para onde. Nesse caminho, vamos lendo o mundo. Essa leitura aprimora nossa consciência e isso pode nos trazer um pouco mais de sanidade. 

Ensinar a ler o mundo é tarefa difícil para um professor! 

Mas parar de correr não é uma opção.

 

Você pode conferir o clipe:

 


Marcelo Santos é professor de História e Literatura e autor do livro A Educação é um Carro Enguiçado Empurrado por Malucos, publicado pela Editora Patuá. Formou-se em História pela Universidade Feevale em 2010 e é mestrando do Mestrado Profissional em Ensino de História na UFSC. Desde 2008 atua em escolas públicas e privadas no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Mora em Imbituba desde 2015. Atualmente publica crônicas relacionadas ao universo da educação nas redes sociais.   

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