Crônica

Crônicas Agudas

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Crônicas Agudas Foto: Padriñan/Pexels

Observando com atenção, podemos ver que a crônica deriva de um efeito ótico.

Ela sempre foi considerada um gênero menor, situado na fronteira entre a literatura e o jornalismo. Seu habitat original, a revista e o jornal impressos, hoje encontra-se em avançado processo de extinção. 

Seu nome, derivado do latim chronica, revela uma relação particular com o tempo. Não no sentido de uma dedicação ao passado, como a da história – que geralmente o abarca nas suas largas distâncias –, mas de um envolvimento com um tempo não apenas muito curto, mas ainda bastante colado ao presente. 

Cronos, como o tempo da incessante transformação das coisas, necessita passar pelas tramas da linguagem, para não ficar reduzido ao mutismo da sua existência bruta. Precisamos de mediações que reverberem os acontecimentos em múltiplos sentidos e, pelas narrativas, criem aberturas para outras formas de perceber e de viver. A crônica é essa pesquisa de novos ângulos e de novas impressões na superfície do mundo – uma operação de deslocamento de perspectivas.

O cronista geralmente é um sujeito um pouco estranho, que muitas vezes é definido pelo que ele não é: não é um romancista, não é um poeta, não é um jornalista. E, no entanto, ele pode ser tudo isso ao mesmo tempo.

O seu método lembra o do arqueólogo, com a diferença de que enquanto este escava os estratos do passado, o cronista dedica-se a escarafunchar as camadas do presente. Em certos casos, ele pode até parecer um bisbilhoteiro. Há um evidente voyeurismo nesse ofício – com o perdão do trocadilho – um voyeurismo crônico!

De certa forma, podemos dizer que o cronista é um sujeito que padece de uma anomalia do olhar. Na sua visão, encontramos sempre uma grave miopia, pois só escreve sobre as coisas vistas muito de perto. Mas não é todo míope que pode ser cronista, pois a crônica exige que esse olhar míope seja, ao mesmo tempo, um exótico olhar agudo. 

Para fazer sentido escavar um passado tão curto, é preciso ir muito fundo, só assim a crônica chega a desenvolver o seu longo alcance. No entanto, a profundidade buscada pelo cronista é de um tipo paradoxal, que podemos dizer – parafraseando o poeta –, é a da pele.

Quem sabe um dia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) venha a reconhecer uma doença comum aos cronistas na sua Classificação Internacional de Doenças (CID). Se esse dia chegar, podemos propor que ela seja batizada de Síndrome Manuel de Barros, pelo seu principal sintoma, que é o olhar fixo e agudo às miudezas do mundo.

 


José Mário Neves é psicólogo. Doutor em Psicologia Social e Institucional.

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