Crônica

Cheiro de roupa limpa

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Cheiro de roupa limpa Foto: Ekaterina Belinskaya/Pexels

Estamos hospedados na casa de um amigo. Estamos fora de casa há vinte e cinco dias. A água ainda não baixou. Embora as preocupações básicas sejam comer, se vestir, ficar de olho nos guris e trabalhar quando e o quanto possível, ninguém quer, no fim do mundo, se ver sem grana ou endividado. E é muito difícil controlar o orçamento numa condição tão anormal. São muitos e muitos gastos extras e começamos a ter verdadeiros êxtases quando encontramos alguma oportunidade de economia.

Nesta semana, por exemplo, achamos uma lavanderia onde nós mesmos colocamos as roupas. Custa quinze ou vinte reais o cesto, a depender do dia da semana. É um extra, claro, porque a gente não tinha isso em casa, mas o preço não se compara a mandar lavar roupa em um lugar que cobra a quilo ou por peça, numa dessas lavanderias inflacionadas de shoppings e supers. Tem ainda as três horinhas esperando para lavar e secar a roupa de uma semana – tempo é dinheiro –, mas tampouco tínhamos esse tempo na vida de antes, então não sabemos bem como contabilizar esse prejuízo de tempo. Aliás, enquanto não se volta pra casa, pra alguma casa, vivemos em compasso de espera, como num tempo suspenso, e mesmo as tarefas mais corriqueiras demandam enorme concentração e demoram muito mais para serem feitas. É como fazer algo num lugar sem gravidade…

Tenho uma tia de criação que foi lavadeira. Ela lavava pra fora, mas um dia por semana lavava também a roupa na casa da minha avó, onde morávamos. Sempre nos demos muito bem e, dentro dos alcances de uma criança, conversávamos um tanto. Eu me sentava numa mesa próximo ao canto em que ela passava roupa e falávamos da vida, da escola, de banalidades, dos segredos da família. Ela foi sempre muito religiosa, então não me espantei quando virou neopentecostal e, depois, bolsonarista. Mantivemos relações até quando foi possível, mas um dia se foram, nessa espécie de enxurrada que levou uma boa parte das famílias brasileiras. 

Naquela época, minha tia só ralhava comigo em uma ocasião, em uma ocasião apenas, e hoje entendo perfeitamente, que era quando ela acabava de dobrar as roupas lavadas e passadas sobre a cama grande da minha avó (será que era grande mesmo?) e eu pulava com as costas em cima, bagunçando tudo. Nessas horas era um salseiro e eu tinha que sair correndo pra não levar um belo puxão de orelha. Tia, a senhora há de me desculpar, era mais forte do que eu! Como resistir ao cheiro que subia das roupas e só subia quando meu corpo pesava sobre elas?

Hoje é algo parecido o que sinto quando terminamos de lavar e secar nossas roupas nessa lavanderia de autosserviço. O perfume! O perfume que liga agora ao antes! Um perfume do mundo que existia até abril! Chego a colocar a cabeça dentro do saco de roupas, como um marginal, e aspirar fundo. Tu há de me desculpar, leitora ou leitor, mas como resistir, numa cidade fétida como a Porto Alegre das últimas semanas, à possibilidade de sentir o cheiro, e sentir só esse cheiro, de roupa limpa?


Guto Leite é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na UFRGS.

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