Crônica

As brasileiras debaixo d’água

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As brasileiras debaixo d’água Foto: autor desconhecido

Meu avô materno, Carlos Barth Jr., era proprietário de uma loja de tecidos chamada A Brasileira. Sua primeira sede, no início do século 20, ficava no Quarto Distrito de Porto Alegre. Nos anos 1920, mudou-se para a rua Uruguai, entre a José Montaury e a rua da Praia. Depois de sobreviver à grande crise de 29, o negócio prosperou. Em 1941, as águas do Guaíba invadiram a loja, e o prejuízo decerto foi grande. Há fotos que registram este fato. Tentei descobrir sua autoria, mas não foi possível (pelo menos até agora). Talvez sejam do grande Sioma Breitman, que registrou vários momentos da enchente com extraordinário apuro técnico e faro jornalístico. Contudo, as imagens podem ser de outro fotógrafo da época. O que mais nos interessa agora é que, em maio de 1941, o Guaíba chegou na frente d’A Brasileira. Depois de uma limpeza geral, a loja foi adiante. 

Contam as crônicas da família que, pouco mais de um ano depois, em agosto de 1942, A Brasileira foi novamente ameaçada. Nosso país havia entrado na Segunda Guerra devido aos torpedos lançados contra navios mercantes brasileiros por submarinos do Eixo. Getúlio Vargas declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista. Houve violentas manifestações populares em Porto Alegre. A turba caminhava pelas ruas do centro histórico apontando para estabelecimentos cujos donos fossem descendentes de imigrantes alemães. A acusação era de que estes poderiam formar a famosa “quinta coluna”. Em frente à loja de meu avô, alguém gritou: “Essa é de um alemão. Vamos quebrar tudo!”. A invasão era iminente, mas então seus filhos (meus tios) Harry e Egon, em cima da marquise, agitaram a bandeira nacional e gritaram: “Olhem o nome da loja. É A Brasileira!” Esse detalhe fez o povo hesitar, e nisso um outro alguém berrou: “Vamos adiante!” A turba então terminou de subir a Uruguai e vandalizou algumas lojas da rua da Praia. A Brasileira escapou por pouco. 

A loja seguiu como referência em seu setor nas décadas seguintes. Nos anos 1980, com meu avô já falecido em 1965, chegou a abrir filiais na subida da rua da Praia e na José de Alencar, sob a liderança de seus filhos e depois de seus netos. Porém, o incêndio da filial da rua da Praia, sucessivas crises econômicas e, principalmente, cambiais, levaram ao seu fechamento. Algum tempo depois, um dos prédios em que funcionava (eram dois, relativamente estreitos, grudados um no outro), foi vendido para um cidadão português, que ali abriu um café, mantendo o nome da loja com uma alteração sutil: Café À Brasileira. Esse café passou de pai para filha e continua no mesmo lugar, com o mesmo nome e a mesma crase. Aliás, o pastel de Belém é ótimo, os sanduíches são um lanche consistente e o café é bem tirado. Gosto de ir lá. Me sinto mais ou menos “em casa”, lembrando quando ia visitar meu avô no mezanino, de onde podia controlar o movimento. O cofre da loja ainda está lá. Meu irmão Antônio Carlos o identificou. Ninguém conseguiu movê-lo. 

Por isso, quando fui ao centro de Porto Alegre no sábado, dia 4 de maio de 2024, acompanhado da Luciana Tomasi, para testemunhar a nova tragédia porto-alegrense, foi com grande tristeza que constatei a volta das águas do Guaíba ao endereço que eu conheço há muito tempo. Acho que fiquei tão abalado que minhas fotos ficaram péssimas. Ainda bem que a Luciana estava lá e teve mais sangue frio para registrar o que estava em frente aos nossos olhos. Não sei se, nos dias seguintes, a água subiu mais ainda, ou se ficou no mesmo nível. Espero que o café se reestabeleça rapidamente.

Fotos: Luciana Tomasi

O que fica disso tudo é que qualquer atividade humana, da mais simples à mais complexa, depende de certas circunstâncias históricas para seguir em frente. Às vezes, até guerras e crises econômicas podem ser superadas. O que estamos vivendo agora é uma circunstância ambiental planetária, que terá reflexos em vários lugares e será muito difícil de superar. Porto Alegre não foi a primeira cidade, nem será a última, a enfrentar catástrofes. As Brasileiras e Os Brasileiros seguirão sofrendo com todo tipo de desastre, enquanto não forem tomadas medidas sérias e consistentes contra a destruição do meio ambiente.

É preciso, sim, politizar a crise. Mais do que nunca. Precisamos de políticas públicas emergenciais, fortes e confiáveis. E, como as secas e enchentes vão continuar, talvez piorar, políticas permanentes que dialoguem com a crise ambiental, em vez de negá-la. É preciso ter órgãos públicos devidamente financiados (com impostos específicos recaindo sobre quem ataca a biosfera), para que haja capacidade de enfrentamento das emergências climáticas. É preciso ouvir os pesquisadores das universidades. É preciso deter as iniciativas empresariais e legislativas, ambas pérfidas, que pretendem “flexibilizar” a regulamentação que protege, a duras penas, o meio ambiente. E fazer leis mais severas e mais eficientes contra os desmatamentos, contra a mineração absurda em locais protegidos, contra a especulação imobiliária, contra as agressões às terras dos povos originários e contra o crescimento urbano desenfreado. É preciso lutar por essas leis e pelo seu cumprimento.

A boa política serve para promover o bem comum, e a natureza é o bem mais comum de todos (ou deveria ser). A hora do voto é importante, mas a política não pode ficar restrita às eleições. Fazer política, neste momento, é dever de cada cidadão consciente. Sei que tudo que escrevi é bastante óbvio, mas não para todos. Na verdade, muita gente continua apostando num “progresso” cego que levará o planeta para o beleléu. E A Brasileira, com crase ou sem crase, dessa vez não vai escapar.


Carlos Gerbase é cineasta, professor e escritor, mítico baterista da banda Os Replicantes.

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