Crônica

Abraçar o antropoceno

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Abraçar o antropoceno Fumaça no céu de Porto Alegre em 9 de setembro de 2024. Foto: Reprodução RBS TV

Pouco antes da chuva começar a cair no fim de abril no Rio Grande do Sul, participei do meu primeiro evento acadêmico na condição de mestrando. Em Belém, em pleno Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da UFPA, apresentei um ensaio transformado em artigo que trata sobre como uma ciência mais formal se vê um tanto cautelosa em adotar o conceito de antropoceno, ao passo que o saber ancestral indígena não apenas já o acolhe, como adverte sobre seus riscos e consequências.

O texto narra desde a negativa da União Internacional de Ciências Geológicas em reconhecer o antropoceno como uma nova época geológica às reflexões de Davi Kopenawa, Ailton Krenak e Antonio Bispo a respeito da pegada humana neste planeta. 

Passados alguns meses me permito, voltando à condição de jornalista, avançar um passo nele e emitir uma opinião, a de abraçar de vez o antropoceno! E não é nem uma ideia minha. Essa posição é não mais que um eco do que Krenak prega há pelo menos dois anos. Para ele, um ancestral imortal, o antropoceno já faz parte do nosso cotidiano e deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. 

Agora motivos não me faltam para defender essa posição. Apenas para ficar próximo do artigo citado: ele havia sido escrito originalmente no fim de 2023, no rescaldo de uma sequência de duas enchentes no estado. De lá para cá, Porto Alegre encarou uma estiagem no verão e, desde que foi apresentado, a cidade passou por uma inundação histórica. Mais recentemente, há duas semanas, vê seu céu alaranjado por fumaça de queimadas de outros cantos do país. 

É claro, o mundo é maior que o meu quarto. Senão vejamos, então, os recordes consecutivos de calor planeta afora, os microplásticos presentes em oceanos profundos e mesmo em fetos de seres humanos ainda por nascer. A seca histórica de rios amazônicos enquanto cidadãos de Tuvalu já começam a se refugiar na Austrália antes que seu país, literalmente, naufrague com o nível do mar mais elevado. 

Isso tudo sem deixar de mencionar que praticamente 60% deste nosso país continental tem seu ar carregado de partículas originadas por queimadas. Passamos as últimas semanas calculando se o ar ainda está ok para ser respirável. Cá entre nós, isso não pode ser considerado normal ou rotineiro.  

Prezados geólogos: eu sei, eu sei – e vou citar. Nossas ocupações e ações sobre esta terra é não mais que uma fração mínima de tempo que este planeta tem de história. Se hoje a gente vê o Guaíba com receio quando ele sobe 4 metros, daqui a um punhado de milhares de anos, essa altura estará na casa das dezenas. Isso é fato, isso é ciência. 

Assim são as coisas – e algumas delas cíclicas em uma escala muito maior que a nossa – e assim são desde muito antes de nós e serão por muito mais depois que algo análogo à humanidade se esvair deste canto de galáxia. 

Mas insisto com a provocação: e o antropoceno, hein?! Já está na hora de incorporá-lo ao nosso dia a dia para lembrar de combatê-lo sempre quando for possível ou vamos empurrar com a barriga até o tal famoso e temido “ponto de não retorno” – que o hoje cumpre o papel de ser essa curva abstrata em forma de ameaça que está por vir em algum dia de algum ano futuro.

É preciso superar a burocracia das definições de comitês e agir no que for e onde for possível o quanto antes. Talvez contar com essa recém anunciada Autoridade Climática seja uma boa, mas também é preciso abrir mão da ideia de abrir poço de petróleo ali do lado da Amazônia. Além disso, precisamos ouvir mais Krenaks, Kopenawas, Marinas e Carlos Nobres, convencer até a galera do “agro é pop” que o antropoceno é, no mínimo, ruim para os negócios, que colocar fogo em planta não é só antiquado como deveria ser crime.

Algo está acontecendo. Abraçar o antropoceno, ainda que sua face seja atemorizante, talvez nos faça enfim acordar para o fato de que a emergência climática está posta e provavelmente irreversível para a nossa geração. Quem sabe a gente dá uma mão para a próxima? 

É preciso botar o antropoceno no meio da sala. Vê-lo, debatê-lo e se assustar com todas as suas faces, das geológicas às sociais. Tudo isso para ao fim enfrentá-lo de forma estratégica e tentar evitar que o céu caia sobre as nossas cabeças. 

 


Tiago Medina é um dos fundadores da Matinal e editor da Matinal News. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS.

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