Crônica

A última criança na natureza

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A última criança na natureza Foto: YoungApp/Pexels

“Prefiro brincar dentro de casa porque é onde há tomadas.”  Essa frase foi dita por um aluno de quatro anos de uma escola de San Diego, na Califórnia. Está na abertura do livro “A última criança na natureza”, de Richard Louv. Editada em 2005 nos EUA, a publicação só chegou ao Brasil em 2018. Quase 20 anos depois somos testemunhas dos hábitos tecnológicos a que essas crianças já estavam sendo expostas. E agora estamos vendo as consequências, com jovens e adolescentes apresentando crises de ansiedade e depressão, chegando ao suicídio, o que vem aumentando no RS.

É um livro muito inspirador. A natureza mostra às crianças que elas não estão sozinhas no mundo e que existem realidades e dimensões paralelas ao que elas vivem, pois a maioria das experiências transcendentes da infância acontece na natureza. Richard Louv defende que “para aumentar a segurança dos nossos filhos, devemos oferecer  mais tempo ao ar livre, na natureza. O brincar na natureza fortalece a autoconfiança da criança e desperta seus sentidos, sua consciência do mundo e de tudo que o move, visível e invisível”.

Estamos diante de um “déficit de natureza”! Hoje muitas crianças veem o meio ambiente como experiência de laboratório. Praticamente desapareceu da sala de aula, surgindo como tema apenas em discussões sobre catástrofes ambientais, como as que estamos vivendo no Pantanal, na Amazônia, no RS, em todo o mundo. As escolas estão trocando espaços ao ar livre por ginásios, locais cobertos. Com o aumento da violência as crianças não brincam mais nas ruas, nos parques. 

É urgente termos uma alfabetização ecológica! “Estamos criando consumidores, não cidadãos. Hoje as crianças têm noção das ameaças globais ao meio ambiente, mas seu contato físico, sua intimidade com a natureza, está diminuindo. Para a nova geração, a natureza é mais abstração do que realidade. Cada vez mais, a natureza se tornou algo a ser observado, consumido, vestido – ignorado”, diz o autor, que já escreveu nove livros sobre o tema e é cofundador da Children & Nature Network, organização que busca conectar pessoas e comunidades com o meio ambiente.

Entre os pesquisadores citados no livro está o professor David Orr, que é categórico: “Uma civilização saudável teria mais parques e menos shopping centers, mais pequenas fazendas e menos agronegócios, mais pequenas cidades prósperas, mais placas solares e menos cavas de mineração, mais ciclovias e menos estradas, mais trens e menos carros, mais comemoração e menos correria… Utopia?”

O livro trata também de como deveriam ser as cidades. O design urbano futuro deveria não apenas atender às necessidades  humanas em relação à capacidade das ruas e do trânsito, mas também atender às necessidades da natureza, pensando na mobilidade dos animais silvestres e nos ciclos de vida, como sustenta o biólogo Ben Breedlove.  Aliás, nesse sentido, por tudo que se viu e foi vivido pelos gaúchos e porto-alegrenses nesse ano, não há dúvidas do quanto precisamos cuidar dos fluxos da natureza na relação com as cidades.

O educador David Sobel (um dos pensadores mais importantes do universo da educação e da natureza) quer reinventar o terreno baldio. Ele quer usar sobras de terrenos,  ou terrenos não ocupados, para transformá-los em espécies de playgrounds naturais, com lagos, árvores com frutas para colher, colinas para escorregar, arbustos e lama para crianças brincarem de se esconder, cavar, se sujar. Alguns desses espaços que já existem foram criados pelas próprias crianças.

No livro, muitos dos pesquisadores consultados defendem a necessidade de construir vínculos mais fortes e significativos com associações de agricultura, centros de natureza, organizações ambientais e refúgios para aves. E afirmam que as crianças tenham aulas, se possível um dia por semana, em uma fazenda, como escolheram fazer os pais em uma escola da Noruega.

Em vários lugares do mundo, observa-se o renascimento dos acampamentos. A Finlândia, que há quatro rankings consecutivos lidera as primeiras posições do PISA (programa que avalia a qualidade de ensino em mais de 40 países), talvez seja o que mais valoriza o brincar. A tal ponto que, para cada aula de 45 minutos, os alunos vão para um ambiente ao ar livre por 15 minutos e andam descalços para liberar a energia. 

Criar espaços nas cidades e também hábitos de estar em contato com a natureza, limitar o uso das redes nas escolas, nos encontros de amigos e na família no dia a dia é questão de saúde pública. Em 20 anos estamos colhendo os frutos de uma geração conectada. O que será preciso acontecer mais para que possamos tomar consciência do que nos espera como sociedade no futuro com nossas crianças de hoje superconectadas?

Que possamos nos conscientizar diante de tantas tragédias! Para preservar a nossa espécie, precisamos buscar o caminho da verdadeira conexão que é com a natureza. Como já dizia o naturalista e filósofo americano Henry David Thoreau há mais de 150 anos: “A voz da natureza é sempre encorajadora”.

 


Alfredo Fedrizzi é pai da Lissa (38), Laura (34) e Maria (6 anos), fazendo Mestrado em Antropologia na Universidade de Lisboa, atuando em Conselhos de Administração no Brasil, ex-professor de Televisão na PUC, ex-publicitário.

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