Crônica

A melhor casa que eu já tive

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A melhor casa que eu já tive Foto: Teo Tajes (Arquivo Matinal)

Ouvi esta frase do título em entrevista de uma pessoa que teve a casa alagada e que ainda está em um abrigo de Porto Alegre. Ela dizia que se dependesse dela não voltaria mais para onde vivia. Lá não tinha a comida que come hoje, roupa de cama limpa, banheiro com água quente, em um lugar seguro e bem iluminado. Acima de tudo, lá não tinha ninguém que lhe desse atenção e servisse como no abrigo. Ela gostou de ter suas necessidades básicas atendidas. De ser respeitada. De comer três vezes por dia ou mais. De se sentir gente!

O problema que essa senhora tem pela frente é que, em algum momento, esse abrigo será desativado, assim com tantos já foram. E ela terá que voltar para aquele local que chamava de casa ou um outro bem distante da sua realidade, planejado pelo poder público como abrigo para os desabrigados. Isso na melhor das hipóteses. Sem falar que corre o risco de ter que ir em busca de um lugar (com ou sem ajuda de governos). Não se trata de reconstruir uma casa. Trata-se de construir. Muitas dessas pessoas nunca tiveram um lar. Moravam em barracos. Talvez essa seja a sua única chance de ter um lar, de que o poder público olhe pra elas. Sonha que sua nova casa possa ser uma residência decente e segura, tanto quanto esse abrigo está sendo. As dores, os traumas são imensuráveis. Há os que perderam seus lares, suas casas, suas memórias e também os que perderam o lugar do abandono. Essa mulher que tinha sua vida estruturada e acolhida por um barraco, deixou para trás essa realidade e sonha com uma nova vida. Deseja preservar no seu íntimo um pouco da dignidade e do acolhimento que recebe no abrigo. Essa triste realidade nos convida a refletir que não é verdade que a chuva só trouxe desgraça. Para aqueles que estavam no lugar de abandono, trouxe esperança e condições melhores do que alguns chamavam de dias “normais” da vida cotidiana antes das enchentes.

Para aqueles que foram invadidos, de repente por essa triste realidade, talvez seja exigente acreditar que possa existir quem esteja melhor diante de tanta tragédia. Isso só demonstra o quanto vivemos uma desigualdade profunda, a ponto de termos realidades tão distintas em meio a um fato que atingiu pessoas do mesmo bairro em realidades muito distintas. Agora que as águas baixaram, muitos estão limpando suas casas, outros sonham em ter, talvez pela primeira vez, uma casa para voltar.

De tudo isso, muitos aprendizados. Um deles é que todos nós merecemos um lugar para chamar de lar, onde possamos nos sentir seguros, com nossas necessidades básicas atendidas, alimentadas e respeitadas. Essa senhora, entre muitas outras pessoas, experimentou um pouco do que todo ser humano precisa: Dignidade humana. É fundamental que essas pessoas possam sonhar e realizar o sonho da construção da sua casa em um local fora das zonas de risco. É preciso cuidar das fontes de renda e da vida prática, sem ignorar os traumas e os medos provocados pela tragédia. Há muito a fazer pela frente.

Todos os sinais foram dados. Agora é muito trabalho, muita escuta e acolhimento. Precisamos olhar para o outro, cuidar do meio ambiente e da sociedade em que vivemos. É urgente diminuir a desigualdade econômica e social, respeitar os movimentos da natureza, buscar mais segurança e cultivar a alegria de viver em comunidade, com menos desigualdade e mais dignidade.


Alfredo Fedrizzi é pai da Lissa (38), Laura (34) e Maria (6 anos), fazendo Mestrado em Antropologia na Universidade de Lisboa, atuando em Conselhos de Administração no Brasil, ex-professor de Televisão na PUC, ex-publicitário.

Durga Curtinaz é mãe da Maria, fazendo Mestrado em Antropologia na Universidade de Lisboa, atuando como Advogada Colaborativa, Mediadora de Conflitos Privada e na Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, Professora e Mentora de Comunicação.

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